Luís José Landim, Procurador-Geral da República : “Em tempos de crise é que se deve investir ainda mais na Justiça”

PorSara Almeida,31 out 2020 8:31

Faz, este mês, um ano que Luís José Landim tomou posse como Procurador-Geral da República. Um ano diferente de todos os demais, marcado por uma pandemia que “baralhou tudo”.

Em alguns aspectos houve retrocesso, mas há agora a expectativa de que, com as várias mudanças que estão a ser feitas ao nível da Justiça, e alguns ganhos já alcançados, se consiga colmatar pelo menos parte dos problemas que atingem o sector. Numa visita guiada pelo Ministério Público (MP), suas funções, números e prioridades, o PGR destaca ainda a importância da formação contínua, da inspecção e o papel de todos os actores da Justiça para se chegar ao patamar desejado.

Que balanço da Justiça em Cabo Verde, particularmente no que tange ao MP?

A Justiça é a garantia de concretização do Estado de direito democrático o que só se atinge de pleno se as instituições judiciais estiverem a funcionar plenamente, com as condições necessárias e conseguirem dar resposta aos anseios das pessoas. Em Cabo Verde, apesar dos problemas crónicos – a morosidade, a pendência, a produtividade – temos de admitir que desde há alguns anos tem havido algum progresso, alguns investimentos que se reflectiram na produtividade do MP, concretamente. Se analisarmos os relatórios vê-se que havia uma tendência clara de aumento de produtividade, tendência essa quebrada, eu diria, pelo contexto da pandemia. Nos últimos anos, foram recrutados 24 magistrados do MP, dentre os quais nove estão na fase final do estágio, e foram também recrutados cerca de 30 oficiais de justiça. As procuradorias foram equipadas com meios técnicos, de modo que houve investimento, que correspondeu a alguma produtividade que se pode constatar. Mas isso não quer dizer que estejamos satisfeitos porque é sempre necessário mais e mais investimentos. Ainda são insuficientes. Temos o cálculo feito, no âmbito do debate sobre a Justiça e Paz Social que decorreu recentemente no “Cabo Verde Ambição 2030”, que entregamos já ao governo, daquilo que precisamos, com dados concretos. Foram traçadas metas para se chegar a 2030 com uma redução considerável de pendência e um aumento da produtividade. Estamos engajados, e podemos, sim, atingir essa meta desde que concomitantemente haja meios à disposição do MP.

Entretanto, houve uma inversão na tendência de redução das pendências. Em contexto de pandemia, isto mostra que a justiça não estava preparada para o choque?

Naturalmente. Este ano foi um ano muito atípico. Tivemos de tomar algumas medidas e seguimos as instruções recebidas das autoridades sanitárias. Mas, o ano começa em Outubro. É a época de marcação das diligencias, das delegações, das notificações e a partir de Janeiro/Fevereiro é que se começam a produzir despachos. Então, as coisas não foram ainda piores porque muitos processos foram trabalhados em casa, uma vez que nesta altura já havia alguns resultados das delegações e das investigações. Entretanto, viu-se que este ano entraram mais de 5 mil processos-crime, um aumento de 25%.

Um dado estranho, tendo em conta que o país estava parado. Terá a ver com o aumento da criminalidade em finais de 2019?

Pode ser. Tem de ser estudado para se poder afirmar claramente o que estará na base deste aumento de crimes. No MP entraram 28 mil e tal processos e foram despachados mais de 26.500, ou seja, houve um aumento de 2,3% de pendências. Isso demonstra que apesar de todas as adversidades fomos respondendo dentro do possível.

Até porque os valores de referência processual foram ultrapassados...

Foram, em 14 das 16 comarcas. O grande problema que temos é o da comarca da Praia, que tem um peso muito grande seja nas pendências, seja na morosidade, seja, portanto, na produtividade. A nível geral, dos cerca de 28 mil processos entrados, mais de 15 mil entraram na Praia. Mais de metade. A Praia conseguiu resolver 11 mil e tal, o que corresponde a 44% de produtividade do país. A nível geral transitaram cerca de 68.900 processos, dos quais mais de 46.700 são da Praia. A Praia é um problema muito sério, mas houve um esforço grande dos magistrados. Foram criadas equipas especiais para tentar reduzir a pendência e conseguimos dar um grande contributo para essa redução. Em relação ao tipo de crime, os crimes contra a propriedade, roubo e furto, são os mais os mais frequentes: entraram cerca de 13.400 processos, e foram resolvidos 14 mil, mais do que entraram. Entretanto, uma grande intervenção do MP é o cível. O MP representa o Estado, e temos um departamento central com a competência de defender os seus direitos, onde este ano houve uma grande realização: o Estado foi demandado em cerca de 10 milhões de contos e, com a intervenção do MP, foi absolvido em cerca de 7 milhões – os outros processos estão a andar. A intervenção do MP não é, pois, só e na área criminal, é em várias áreas muito importantes na sociedade, áreas de menores, trabalho, cível, autarquias, área constitucional, etc. E também assessoria e consultoria ao Estado, que é outra questão que nos preocupa porque não temos, às vezes, capacidade suficiente de resposta, em tempo útil.

Sobre a inspecção: os planos, diz o relatório, não foram completados. Será retomado?

O Conselho aprova um plano de inspecção para o ano judicial todo. Em relação aos magistrados foram inspeccionados praticamente todos nas grandes comarcas e faltou inspeccionar três que estavam previstos. Mas não adianta muito inspeccionar apenas os magistrados e não inspeccionar os serviços. O magistrado pode trabalhar muito bem, mas se não tiver uma secretaria eficiente e eficaz não consegue dar resposta às solicitações. Tínhamos um plano de inspecção dos serviços e conseguimos fazer inspecção à secretaria de Santa Cruz. Vamos retomar agora para tentar cumprir aquilo que não foi possível fazer antes. Mas foram, de facto, constrangimentos ligados à pandemia, aos voos, viagens, o que nos levou a não conseguirmos cumprir esse plano aprovado.

Uma das aspirações do MP é ter um Campus da Justiça. Numa cidade relativamente pequena como a Praia, justifica-se?

Justifica. Temos procuradorias e tribunais repartidos em vários espaços, distantes, o que traz alguns riscos no transporte de processos, no controlo e coordenação da própria comarca em si. Há um espaço, que sabemos estar disponível. Já tivemos contactos e vamos continuar a encetá-los, no sentido de conseguirmos o espaço no Palmarejo onde funciona a Uni-CV. A Universidade vai para novas instalações e esse seria o espaço ideal para a Justiça instalar os serviços de tribunal e da procuradoria. Os dois conselhos superiores já formalizaram o pedido e aguardamos a decisão do governo, mas a questão é urgente, iria resolver muitas questões e poupar ao erário público. Sabemos que há outros interessados nesse espaço. Mas, como costumo dizer, em tempos de crise é que se deve investir ainda mais na Justiça. E esse investimento, conseguir um espaço que concentre todos os serviços, seria um grande passo.

Passando para o virtual, para o Sistema de Informatização da Justiça (SIJ). Há seis anos que arrancou na Praia e São Vicente mas ainda não é usado em pleno. O que está a falhar?

De facto, tem-se detectado algumas dificuldades na sua aplicação, mas que têm a ver mais com a própria concepção do SIJ.

Não há resistência ao seu uso?

Não há. Na Praia alguns magistrados têm trabalhado no SIJ, mas não conseguem ter todas as funcionalidades que o SIJ devia ter. Por isso mesmo é que recentemente é que os Conselhos Superiores e o Ministério da Justiça chegaram à conclusão que convém criar espaços de experiência piloto em algumas comarcas mais pequenas. Começamos pela de São Domingos e as três de Santo Antão e as coisas começaram a funcionar. Na Praia e São Vicente, os processos foram sendo digitalizados, e já estão bastante avançados, mas na Praia, no MP, há um atraso de dois meses na digitalização. Mas não é só isso. Os procuradores têm algumas dificuldades em dar a acusação no próprio SIJ e poder tramitar para o tribunal, ou então em dar algum despacho. Entretanto, os conselhos superiores também criaram uma equipa conjunta para acompanhar mais de perto essa questão. Até porque mais do que nunca, com essa pandemia, viu-se que é necessário dar muita atenção à tramitação digital e tecnológica dos processos.

Ainda sobre o SIJ, um reparo que está no vosso relatório é o facto da polícia criminal não ter acesso...

Como disse, o problema do SIJ começou pela sua própria concepção. O SIJ diz o que o processo é tramitado desde o início até ao fim em termos eletrónicos. Então, devia ter sido pensado, e não foi, que as queixas entram pela polícia. É daí que se devia começar, mas pensou-se apenas do MP para a frente. Essa falha foi detectada mais tarde e tenta-se agora conectar os programas: o da PN, o da PJ, e o SIJ. Ou seja, quando se devia fazer um único programa, existem três que vão ser agora conectados. Mas são coisas que estão a ser ultrapassadas.

Falava das polícias. Tem sido uma queixa recorrente, o próprio Dr. Landim referiu no ano passado de que “o relacionamento [do MP] com as polícias já devia estar num patamar muito melhor”. E neste momento?

Refiro-me, naturalmente, ao relacionamento em termos de investigação, de função de cada órgão. Ao MP compete a entrada de acção penal, tem que investigar, delega, tem uma relação funcional com as polícias Judiciária e Nacional no sentido da investigação. Este ano as coisas melhoraram um pouco, temos isso no nosso relatório também, mas ainda falta fazer muito. Vimos recentemente que foi lançado o concurso para entrada de mais 120 efectivos da PN, o que aplaudimos, porque a PN tem, de facto, várias atribuições e as vistas como mais importantes são as que têm a ver com a segurança pública, o que é normal. Também é preciso haver Segurança, é um complemento da Justiça. O que se diz sempre é que, por falta de efectivos, não podem dar atenção a todas as atribuições da PN. E a pandemia veio fazer com que grande parte do efectivo [da PN] tivesse sido afectado ao controlo da própria situação social que surgiu. Mas somos afectados, porque o MP não funciona se não houver um bom serviço de investigação nas polícias. Cada vez mais os magistrados investigam directamente os seus processos, mas o MP não consegue investigar tudo sozinho – só este ano entraram 28 mil processos Não seria possível. Há departamentos que estão criados por lei e que não foram instalados, e não podemos deixar de dizer que isso afecta a produtividade do MP. Por isso é que há a Lei da Investigação Criminal, que vem esclarecer melhor as competências da Polícia. Há instruções internas do MP, no sentido de cada magistrado seguir de perto os processos que delega nas polícias, e tem havido maior entendimento. Mas continua a haver essa falha da capacidade de resposta da própria PN. De qualque forma, este ano tudo ficou comprometido por causa da pandemia que veio baralhar tudo, mas sei que está prestes a ser instalada a Direcção Central de Investigação da PN.

Uma aspiração antiga do MP é a criação de uma escola especializada. Quais as mais valias desta escola?

Nos termos da nossa lei orgânica, os novos magistrados fazem um estágio de 18 meses, incluíndo um formação de seis meses no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) em Portugal, no âmbito da cooperação existente.

Este centro substituiria essa formação no estrangeiro?

Não é substituir, queremos começar por um centro de uma formação contínua, porque para além dessa formação inicial os magistrados têm de se actualizar e essa formação contínua faz-se também nos CEJ. Na CPLP só dois países não têm um Centro de Formação Judiciária – um deles é Cabo Verde. Todo os outros têm, o que demonstra a importância dos mesmos. Quando há necessidade, mandamos magistrados para o CEJ. Isso implica alguns encargos financeiros. Tendo esse centro cá, pouparíamos e seria uma formação mais próxima da realidade nacional. Esse centro não serviria só os magistrados, mas também oficiais de justiça e, inclusive, outros sectores ligados à Justiça e ao Direito. Hoje os crimes são mais complexos, surgem novos tipos de crime e temos de ter alguma formação para poder acompanhar essas mudanças. Já criamos uma equipa conjunta entre os dois conselhos, para tentar apresentar um modelo ideal, o melhor para Cabo Verde. E sabemos que o governo também está interessado na criação do centro. Para o MP, o Centro de Formação Jurídica e judiciária é uma prioridades.

Além do Centro, o que destacaria como prioridade do MP?

Reforçar a inspecção. A inspecçao revelou-se de grande utilidade, porque, a partir daí, vimos que aumentou a produtividade, a qualidade, e a morosidade baixou. Mas repare-se que os inspectores são formados, mas também têm necessidade de uma capacitação permanente, a tal formação contínua. E depois, temos o problemas das instalações, sobretudo na Praia, como disse, mas também em outros sítios, como Brava, Maio, Porto Novo, Boa Vista, que necessitam de novos espaços.

Há 3.429 averiguações oficiosas de paternidade, processos em que o exame de ADN é fundamental. Qual a importância do Instituto de Medicina Legal, na óptica do MP?

Há um projecto do governo e para nós seria uma ferramenta auxiliar importante. Temos muitos processos pendentes, precisamente, por causa dos exames de DNA que, no entanto, já começaram a ser feitos na PJ. Há um protocolo com o Ministério da Justiça de Cabo Verde e o de Portugal e já enviamos muitos testes. Estamos a tentar resolver a situação. Mas sim, o IML seria importante.

Como antevê a rentrée e o novo ano judicial?

Foram desdobrados juízos, foram criados tribunais e tudo isso requer que haja meios, ou seja, magistrados para serem colocados nos serviços. Temos várias reformas legislativas, que estão sendo feitas e que são uma grande iniciativa. Se se entender que essa lei não é eficaz, há que fazer alterações. É o que está a acontecer e cremos que com estas alterações as ferramentas serão muito maiores e os magistrados terão muito mais margem para tentar aplicar com maior eficácia as leis existentes. As expectativas, portanto, para a rentrée são boas. Os grandes desafios e objectivos do MP são os de sempre: baixar a morosidade, baixar a pendência e aumentar a produtividade. Agora, tudo isto implica vários outros aspectos que têm de coexistir – os órgãos de auxiliares da justiça, a formação, a capacitação, entre outros. O MP já deu mostras claras de que com meios consegue avançar e mostrar resultados. Entretanto, temos visto tentar-se atribuir aos Conselhos Superiores a culpa pela morosidade, porque se entende que os magistrados não são responsabilizados. Creio que isso é uma ideia feita, que se aplica com alguma ligeireza. Não corresponde à verdade, porque o Conselho Superior do MP é multifacetado. A sua composição não pode permitir que haja corporativismo e protecção exagerada: são 5 não magistrados, indicados pelo parlamente ou governo, e apenas 4 magistrados, logo se o conselho funciona em termos de consenso, ou de maioria, dificilmente se pode fazer isso. E os factos também mostram o contrário. A inspecção funciona muito bem e temos algumas situações de processos disciplinares, mas controlar o magistrado ou a Justiça não é só actuar em termos disciplinares. É detectar falhas para tentar remediar o que está mal e a inspecção tem essa função. Tem havido avaliações e resultados bastante palpáveis. Depois, o próprio magistrado está sempre sob escrutínio da sociedade, temos a preocupação de não sermos vistos como incompetentes ou preguiçosos. Os próprios conselhos são controlados, apresenta-se o relatório anual, há a audição dos presidentes do CS. É certo que há ainda falhas, mas temos de ver que estas têm de ser colmatadas no seu todo. A própria Constituição fixa claramente o papel do tribunal, do MP, dos advogados e todos tem a sua quota-parte de subsidiariedade nessa situação. Porque a morosidade deve-se a factores exógeneos e endógenos. Há coisas que dependem dos magistrados, sim, mas outras que não. Há a questão da própria lei em si e é por isso que está a haver agora várias reformas legislativas… Isto para dizer todos temos um pouco de culpa, que tem de ser assumida por todos e todos têm de fazer um esforço para tentar melhorar a situação.

É um sistema.

É. Todo um sistema...

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 987 de 28 de Outubro de 2020. 

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Autoria:Sara Almeida,31 out 2020 8:31

Editado pormaria Fortes  em  5 ago 2021 23:21

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