Carlos Veiga, Ex-Primeiro-ministro e ex-presidente do MpD : “A chama do 13 de Janeiro continua perfeitamente viva”

PorAntónio Monteiro,16 jan 2021 8:20

Carlos Veiga
Carlos Veiga

Comemorou-se a 13 de Janeiro o 30º aniversário do dia em que pela primeira vez os cabo-verdianos exerceram o seu direito de voto nas primeiras eleições multipartidárias, após 15 anos de regime de partido único. Carlos Veiga, considerado o pai da democracia cabo-verdiana, embora recuse o epíteto, recorda as principais etapas deste processo que começou em Fevereiro de 1990 e culminou com a estrondosa vitória do MpD nas eleições de 13 de Janeiro de 1991. Foram 11 meses que mudaram Cabo Verde –“para melhor”, considera o ex-presidente do MpD.

O que representou na altura o 13 de Janeiro para os cabo-verdianos?

Representou uma mudança positiva, muito grande mesmo e que persiste até hoje. Nesse dia o povo cabo-verdiano fez uma opção clara por um projecto de liberdade, de democracia, de estado de direito, respeito pelos direitos humanos em Cabo Verde. Isso é a marca de Cabo Verde ainda hoje. Uma marca positiva e respeitada no mundo inteiro. Mas com certeza que há um antes e um depois do 13 de Janeiro, porque essa grande manifestação do povo cabo-verdiano, uma votação com uma maioria expressiva a favor do partido que se apresentava, defendendo esses ideais mudou Cabo Verde radicalmente, para melhor.

Continua ainda viva a chama do 13 de Janeiro, sobretudo para a geração com menos de trinta anos?

Nessa geração entre os 20 e 30 anos continua, porque essa geração está próxima daquela que viveu e fez o 13 de Janeiro. Se calhar a geração mais jovem até os 20 anos, conhece menos o 13 de Janeiro, até porque não houve, no fundo, uma grande preocupação de dar a conhecer à sociedade cabo-verdiana tudo o que aconteceu. Portanto, penso que esses jovens conhecem menos. Mas pelo eu me apercebo, quando contacto com as pessoas, já há muitos jovens que interpretam o que aconteceu no 13 de Janeiro. Por isso penso que a chama do 13 de Janeiro continua viva, porque hoje em dia ninguém quererá voltar para um regime de partido único, ou para um regime que seja autoritário, não democrático. Portanto, penso que a chama do 13 de Janeiro continua perfeitamente viva.

Acho que o PAICV nem nenhum partido político iriam pôr hoje em causa os ideais do 13 de Janeiro.

Vejamos. Tudo isto está corporizado na Constituição. No fundo, com a revisão consensual de 2010, em que o PAICV participou, eu penso que houve assunção dos princípios e valores que estão na Constituição e que foram os princípios e valores que prevaleceram no dia 13 de Janeiro. Eu penso que é preciso dar o passo seguinte no sentido de algumas pessoas ligadas ao PAICV reconhecerem que a marca de Cabo Verde é feita da independência e é feita da democracia e liberdade e, portanto, as duas datas são importantes – cada uma com o seu significado. O Dia Independência, ou o Dia da Liberdade e Democracia são datas nacionais importantes que devem unir os cabo-verdianos.

O PAICV é e foi sempre ciente do seu papel na luta pela independência, já ao MpD parece que falta um pouco de historicidade em relação ao seu papel no advento da liberdade e democracia em Cabo Verde. Qual a razão?

Eu penso pela própria natureza do partido como nasceu e como tem agido ao longo dos tempos, quando governa ou está na oposição. De facto, o MpD tem sempre como perspectiva ir para a frente. Mas, na verdade, é necessário ter em conta a história. Aliás, eu penso que o ponto mais fraco [do MpD] é que aos nossos meninos nas escolas não se ensina qual é o significado do 13 de Janeiro. Eu penso que este é o ponto mais fraco. Os programas estão errados em relação ao que aconteceu naquela altura, fazem uma revisão da história recente de Cabo Verde, nomeadamente daqueles 12 meses de 1990.

Penso que fazem uma história que não é verdadeira. Elevam uns, diminuem outros. Eu penso que era preciso aprofundar mais a questão: por que é que aconteceu o 13 de Janeiro? Qual era a situação que se tinha, por que é que aconteceu e qual foi a resposta. E isso não está a ser ensinado aos nossos meninos nas escolas. É um erro grave que se está a cometer, porque o ensino nas escolas não tem em conta a realidade histórica que ocorreu durante todo o ano de 1990 e princípios de 1991, depois durante todo o ano de 1991 até se chegar à Constituição de 1992.

Para que serve a história?

Vejamos. A realidade é dinâmica. Há um passado, há um presente e haverá um futuro. Eu penso que a história deve servir-nos para encararmos o presente e o futuro. Deve servir-nos com o que de bom e com o que de mau teve; devemos valorizar aquilo que de bom a nossa história teve, mas não devemos nos esquecer daquilo que de mau teve e a partir daí tirar lições das lições negativas que a história nos possa ter dado. E tirar lições positivas das lições positivas que a história nos dá. Eu penso que é este o balanço que tem que ser feito. O presente é presente, o futuro é futuro. Claro que não há um corte abismal, o presente vem um pouco do passado, o futuro virá um pouco do presente, mas há sempre uma evolução. É o balanço.

Uma pergunta já estafada, quando haverá a reconciliação das duas datas históricas de Cabo Verde: o 5 e Julho e o 13 de Janeiro?

Eu creio que é preciso contar todas as histórias e deixar às novas gerações fazer o seu juízo. É isso que se tem que fazer e tem de começar nas escolas. Temos que assumir a história na sua plenitude: o nosso passado; o nosso presente e perspectivar um futuro melhor para todos os cabo-verdianos. Mas todos temos que assumir isto. Repare, no MpD há também combatentes da liberdade da pátria, há gente que lutou pela independência. Todos quiseram a independência e de alguma forma quem pôde, fez aquilo que pôde. Uns fizeram com certeza muito mais; uns estiveram na frente da luta mais dura. Naturalmente, fizeram sacrifícios maiores, outros fizeram outros tipos de sacrifício e outros ainda sentiram e apoiaram todo o movimento para a independência. Na democracia é a mesma coisa. Eu digo sempre que o 13 de Janeiro não é um dia do MpD, o 13 de Janeiro é um dia dos cabo-verdianos. No dia 13 de Janeiro o vencedor foi o povo cabo-verdiano. O povo cabo-verdiano optou por uma larga maioria por um programa que foi executado na prática e que hoje continua a ser a nossa marca. Claro que não há democracias perfeitas, claro que não há nada que não possa ter defeitos, mas eu penso que ao longo destes 30 anos a nossa democracia provou que funciona. Nós temos estabilidade política, temos um sistema político que favorece o desenvolvimento. Temos tudo isso, temos liberdade, eu penso que gozamos de grande liberdade em Cabo Verde. Não creio que se possa dizer que isto está mal. Não é isso.

Voltando à história. Quando se fala da independência surge logo o nome de Amilcar Cabral. Em relação ao 13 de Janeiro tem recusado o epíteto de ‘pai da democracia’. Como se justifica?

O rosto posso aceitar, pai é que não aceito. Paternidade não. Que eu fui o rosto, naturalmente. Porquê? Porque eu fui o primeiro coordenador do MpD e fui coordenador durante dez anos, no início, e depois voltei a sê-lo durante mais alguns anos. Portanto, aceito que seja o rosto, com tudo o que isso implica: responsabilidade, aquilo que foi feito… mas o ser rosto, não significa que seja obra de um homem só. Não é possível a uma pessoa só conseguir aquilo que se conseguiu, o 13 de Janeiro, e fazer com que o 13 de Janeiro fosse cumprido. Então aceito que fui o rosto de uma geração que assumiu as suas responsabilidades perante a história de Cabo Verde e que pode orgulhar-se disso. Aceito isso.

Foi o rosto do 13 de Janeiro por ter sido mais carismático que os seus companheiros do grupo?

Não é uma questão de carisma. Eu tinha mais carisma que o Jacinto [Santos]? Se calhar não. Eu tinha mais carisma que o Eurico [Correia Monteiro]? Se calhar também não. Foi uma opção do grupo. Nós reuníamos sem direcção; em cada reunião tínhamos uma direcção ad hoc para dirigir os trabalhos. Entretanto, o grupo foi aumentando e decidiu-se que havia que haver um mínimo de coordenação. Então, elegemos um coordenador, havendo mais que um candidato. Eu não tinha mais carisma que os outros. Depois, tudo foi construído, nós construímos um programa em conjunto. Eu fui no fundo o mensageiro desse programa. Aliás, o texto inicial da declaração política do MpD é da autoria de Jacinto Santos. Não é por acaso que ele é o primeiro a assinar esse texto. Quem assistiu aos comícios dos anos 90 sabe que o Eurico foi fundamental na mobilização das pessoas. Portanto, não foi uma questão de carisma. Eu tive o privilégio, por escolha dos meus companheiros, de ser o líder desse movimento. Por um lado, pago as favas, como se diz, e às vezes também acabo por receber os encómios por causa disso.

Também, como e diz, não foi escolhido pelos seus bonito olhos.

Também não. Eu já era um advogado conhecido aqui na Praia, eu era deputado. Tinha sido escolhido num processo de lista única, mas em que foi auscultada a sociedade aqui na Praia e em quase todos os lugares o meu nome foi indicado. Portanto, eu já era uma pessoa conhecida, de uma família bem conhecida e respeitada na Praia. Eu tinha muitos amigos. Eu cresci aqui nesta cidade, com muitos amigos. Estudamos juntos, vivemos juntos a mesma juventude. Portanto, eu era uma pessoa com alguma simpatia aqui na Praia. Por isso eu me considero muito honrado e um privilegiado por ter tido a oportunidade de estar ali na primeira linha deste processo.

O 13 de Janeiro não caiu do céu. Quais as causas da mudança do sistema político de partido único em Cabo Verde?

Bom, Cabo Verde era um daqueles países que mais ajuda internacional recebia. Acontece que em finais de 1989, os doadores, em França, sob a liderança do então presidente francês [François Mitterrand] decidiram que iria ser introduzido um condicionamento para a ajuda ao desenvolvimento. O condicionamento era que os países tinham que se democratizar. Isso para Cabo Verde era, no fundo, uma pressão muito forte. O regime de partido único sentiu que se quisesse continuar a beneficiar de ajuda tinha que se democratizar e propôs uma abertura. Na mesma altura o Papa João Paulo II esteve em Cabo Verde e disse aos cabo-verdianos que não desistissem e lutassem pelos seus direitos. Eu acho que essas duas conjunturas encontraram eco em vários grupos, pelo menos aqui na Praia. Vários grupos de quadros cabo-verdianos não estavam satisfeitos com a situação de partido único em que a gente vivia. Queriam que o país, depois de alguns anos da independência, iniciasse a senda da sua democratização. Portanto, não estavam satisfeitos. Aliás, nos últimos anos tinha havido até cenas muito complicadas, cenas de tortura a pessoas, prisões arbitrárias, perseguições com a polícia política a intimidar pessoas. Isso tudo já tinha provocado reacções por parte dos advogados reunidos no IPAJ [Instituto do Patrocínio e Apoio Judiciários]. Portanto, esse quadros que conheciam bem o país estavam a reunir-se com a intenção de concorrer às eleições autárquicas marcadas para o fim de 1989, mas que acabaram por não acontecer. Entretanto, esses grupos continuaram com as suas reuniões e quando a abertura é proposta, e nos termos em que é proposta, nós decidimos que era altura de darmos uma resposta clara, dizendo que não queríamos aquela abertura e a abertura que queríamos era outra. A declaração política do MpD é simples, ela contém todos os pontos…porque a abertura dizia que haveria eleições com partidos políticos apenas em 1995. E nós dissemos que queríamos eleições democráticas com partidos políticos imediatamente. Essa abertura não falava de uma série de coisas como o fim da polícia política, a eleição directa do presidente da república, a representação das nossas comunidades, a separação de poderes, a independência da justiça. Não falava. E a declaração política do MpD pôs tónica nesses pontos. Mas nós não dissemos que íamos fazer isso na rua, à força. Dissemos que essas eram as nossas ideias e que se havia uma intensão verdadeira e autêntica da abertura, então era preciso discutir isso. E nós fomos apresentá-la. Tivemos mais de quinhentas assinaturas na declaração política e fomos apresentá-la ao então presidente da república, Aristides Pereira, que era também presidente do PAICV. E assim surge o MpD. Nós fomos para o terreno apresentar as nossas ideias. Em Santiago, vimos facilmente que as nossas ideias eram muito bem aceites, mas não sabíamos como era no Barlavento. Fomos a São Vicente e tivemos uma recepção fantástica; fomos a Santo Antão, tivemos uma recepção fantástica e convencemo-nos de que estávamos no bom caminho. Portanto, o Movimento para a Democracia nasce assim. Até Setembro de 1990 estivemos praticamente sozinhos no terreno. Enfim, o PAICV estava a nos desvalorizar, pois achava que tinha o controlo total da situação. Do nosso ponto de vista não tinha. Assim vamos às eleições e saímos com uma maioria qualificada. Aliás, que as sondagens nos davam. Disseram-nos isso em Setembro, não acreditamos. Disseram-nos isso em Dezembro, já acreditamos um pouco mais.

Vencidas as eleições, em 1992, Cabo Verde é dotado de uma nova Constituição que marca a ruptura definitiva com o sistema de partido único. Como decorreu esse processo?

Se você ler a declaração política do MpD de 1990, o primeiro documento, encontra aí a necessidade de uma nova Constituição. Está ali dito. Depois, o programa político do MpD, também de 1990, tem essa ideia de que haverá uma nova Constituição e aquilo é extremamente desenvolvido nesse documento, estabelecendo, no fundo, o que deveria constar da Constituição. Se compararmos o que está no programa político do MpD e o que está na Constituição, verá que efectivamente nós cumprimos aquilo que estava plasmado no programa político, basicamente cumprindo também as orientações que estavam nesse programa político. Para nós, a LOPE [Lei sobre a Organização Política do Estado] não era uma Constituição, a Constituição de 1980 não era a Constituição de um Estado de direito democrático como nós queríamos, nem era uma Constituição que garantisse as liberdades fundamentais e os direitos dos cidadãos. Nós entendemos que aquela Constituição não podia manter-se, face ao que está no nosso programa político. Portanto, utilizamos as regras da revisão da Constituição, mantivemos um artigo da anterior Constituição e substituímos os demais com as maiorias qualificadas que estavam estabelecidas nessa antiga Constituição. Aliás, esse foi o único artigo que se manteve. Obviamente que era necessário uma nova Constituição democrática, porque aquilo que nós propúnhamos não teria cabimento no quadro da Constituição então em vigor.

É consensual que em 1992 Cabo Verde foi dotado de uma Constituição moderna que serve ainda os desígnios do país. Entretanto, os pais da Constituições não poderiam ter sido mais ambiciosos?

A Constituição de 1992 continua moderna ainda hoje. É claro que há coisas que não estavam previstas na Constituição. A pandemia não estava e nem podíamos tê-la prevista em 1990. Mas uma Constituição não é uma realidade eterna. Por isso é que há prazos ordinários de revisão, mas pode haver uma revisão extraordinária, havendo consenso para isso. Portanto, a Constituição nunca é pétrea, digamos assim. Nunca é uma pedra que não se muda. A Constituição pode ser melhorada, tem sido melhorada ao longo dos tempos nas revisões que foram introduzidas. Eu penso que está na altura até de, se calhar, haver uma nova revisão. Mas isso é um problema dos deputados. Penso que a Constituição, até pelo exemplo da pandemia, que não está prevista. Pode aplicar-se à pandemia o que está ali no estado de emergência, mas na realidade não tinha sido prevista. Portanto, a Constituição precisa de se adaptar e de se ir adaptando aos novos tempos, pois toda a realidade económica, política e social do país vai mudando. E a Constituição pode ser mudada para se adaptar e para ser cada vez mais o guia de toda a sociedade cabo-verdiana. Eu acho que hoje todos os cabo-verdianos se reveem nessa Constituição.

Se a Constituição não deve ser petrificada, também não deve ser ultrapassada nos seus limites.

A Constituição é para respeitar, sempre. A Constituição tem que ser sempre respeitada. Ela não tem que ser interpretada sempre à letra. Quer dizer, há as regras de interpretação, permitindo interpretação extensiva… mas a nossa Constituição é relativamente flexível. Permite uma adaptação quase que natural. Há certas coisas que não previu, é necessário que seja prevista, procura-se até onde seja legítimo, portanto que tenha cobertura constitucional, onde a Constituição não diz, não se pode ultrapassar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 998 de 13 de Janeiro de 2021.

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Autoria:António Monteiro,16 jan 2021 8:20

Editado porFretson Rocha  em  14 out 2021 23:21

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