“Devemos valorizar cada vez mais os nossos profissionais de saúde”

PorAndré Amaral,30 abr 2023 8:03

Filomena Gonçalves, ministra da Saúde
Filomena Gonçalves, ministra da Saúde

Em entrevista ao Expresso das Ilhas, a ministra da Saúde traça um retrato do sector. No período pós-pandémico, Filomena Gonçalves traça os caminhos a seguir num futuro próximo.

Que radiografia se pode fazer do sector da saúde?

O sector está bem e recomenda-se. Recomenda-se porque temos um sector de saúde forte, muito bem estruturado. Com desafios sim, mas a covid mostrou que, de facto, valeu a pena todo o trabalho feito ao longo dos anos em Cabo Verde para se montar o sistema de saúde que temos hoje. É um sistema em construção, sim, em que todos os dias aparecem desafios novos. Sabemos que ainda temos muito que fazer, mas a base que temos neste momento permite-nos dar passos gigantescos rumo a uma saúde para todos e em todos os lugares.

Quais foram as lições aprendidas com a pandemia?

Uma das lições que, no nosso ponto de vista, e é fundamental, é que a covid mostrou que a união faz a força. A covid mostrou que o sector da saúde ou a segurança sanitária é algo transversal, que temos de ter saúde em todas as políticas, em todos os sectores. Também aprendemos, ou reafirmamos, a solidariedade, a resiliência dos cabo-verdianos. Também aprendemos que devemos valorizar cada vez mais os nossos profissionais de saúde, porque são pessoas como nós que enfrentaram algo desconhecido que metia muito medo a todos. Estes profissionais, para além de serem pessoas, de terem as suas famílias, as suas vidas, também tiveram de enfrentar o desconhecido tudo isso por amor ao próximo, tudo isso para valorizar a dignidade da pessoa humana. O que nós vimos é que, de facto, a maior riqueza, se não a única riqueza que o nosso país tem, são as pessoas e que temos de investir cada vez mais nas pessoas.

Quanto a doenças infecciosas, o país está bem equipado para as combater?

Sim estamos bem preparados. Eu digo e repito, sempre com desafios. A título de exemplo, em termos de sucesso em relação às doenças contagiosas é o facto de estarmos na recta final neste momento de certificação de país livre de paludismo. Foi um processo longo e muito exigente. Cabo Verde apresentou esta candidatura porque nós passamos 3 anos consecutivos sem nenhum caso autóctone de paludismo e a partir daí preenchemos os requisitos para se avançar com a candidatura. Já se passaram 5 anos que nós não registamos nenhum caso autóctone isso, graças à conjugação de esforços, à dedicação e a políticas. Nós temos ligações praticamente diárias com países onde o paludismo é uma doença que mata, ceifa muitas vidas. Posso dar um exemplo: não obstante as previsões que existiam em relação a óbitos que a covid poderia ter causado no nosso continente, os dados mostram que só os óbitos registados diariamente por paludismo são no geral de longe muito superiores quando comparados a qualquer doença. Nós estamos a falar de países onde esta doença é uma doença endémica. Isto quer dizer que mais do que termos a certificação temos é que ter um plano de não reintrodução do paludismo em Cabo Verde. Temos que ter aqui estratégias muito bem delineadas, porque a manutenção é o que custa mais. Mas é o que dá maiores frutos. Agora com a pandemia a segurança sanitária passou a ser prioridade das prioridades por recomendação tanto da OMS como das Nações Unidas. E tendo em atenção que a nossa principal actividade económica é o turismo, nós temos que ter a segurança sanitária para transmitirmos confiança aos países emissores de turistas para poderem continuar a visitar o nosso país.

As evacuações têm sido o calcanhar de Aquiles do sector da saúde. É um cenário que vai mudar em breve?

Eu discordo. Se me disser que é uma área que tem trazido muito debate, muitas reclamações mediáticas, aí concordo consigo, porque ano a ano nós vimos um aumento de número de doentes evacuados. É um desafio, sim, mas eu quero aqui analisar pela positiva. É um desafio, mas temos um país irmão, que é Portugal, que assinou um protocolo de evacuações com Cabo Verde em 1976. Este protocolo consiste no seguinte: Cabo Verde manda doentes que carecem de evacuações, por razões de diagnóstico ou tratamento, e Portugal assume todas as despesas. Nós temos que pôr a tónica em como todo e qualquer cabo-verdiano que é evacuado, nos termos deste protocolo, entra no sistema de saúde português como se fosse um português que contribuiu para sua vida para o sistema de saúde. É muito importante. Quando nós introduzimos os dados de um doente evacuado, esse doente ou este processo vai entrar no processo do sistema português e, nem Cabo Verde, nem o paciente, nem os seus familiares pagam absolutamente nada por tudo aquilo em relação ao qual o paciente vai ser beneficiado. Nós temos que ver o seguinte, Portugal como qualquer país do mundo, sobretudo na era pós pandémica, está a enfrentar os seus problemas com o sistema de saúde. Nós assistimos todos os dias as notícias de Portugal e sabemos que também há muitas reclamações. Portugal tem de dar resposta à demanda dos seus nacionais e, dentro dessa resposta, ainda consegue dar resposta às nossas demandas. Entretanto, temos desafios em como investir para vez mais nas capacidades técnicas nas infraestruturas, nos equipamentos para que possamos ter condições a nível interno para que todo e qualquer diagnóstico possa ser feito no país assim como o tratamento. Nós estamos a trabalhar para isso.

Mas 47 anos depois desse acordo ter sido assinado já não foi tempo de se terem dado esses passos?

Esses passos foram dados. Ainda não chegamos ao fim da linha do processo, mas os passos foram dados. Se recuarmos a alguns anos atrás vemos que os nossos pacientes iam para Portugal para diagnóstico, o que já não acontece. Há muitas intervenções que hoje fazemos em Cabo Verde que antes não fazíamos. Neste momento, a maior demanda, em termos de números de evacuações que nós temos, esão de doentes oncológicos, sobretudo na fase da radioterapia. Hoje já temos condições de diagnóstico, de tratamento, quimioterapia e só na fase de radioterapia é que os pacientes são evacuados para Portugal. Já é um grande passo. Ainda não chegamos lá, ainda não. Temos que ter investimentos em termos das infraestruturas e equipamentos, mas também dentro do quadro da infraestrutura legal. Estamos a trabalhar para isso. Outro exemplo, saindo da oncologia, vamos para as doenças renais: demos um passo gigantesco, o que também diminuiu consideravelmente as evacuações para Portugal, porque criamos as condições para que fossem realizadas hemodiálises em Cabo Verde. Para as pessoas terem a noção, neste momento temos dois centros que fazem hemodiálises nos dois hospitais centrais. Em São Vicente, o Hospital Baptista de Sousa neste momento tem cerca 114 pacientes que fazem hemodiálise e no Agostinho Neto há 141 pacientes. Há tendências para aumento, ainda estamos a conseguir dar resposta às demandas, mas perguntamos até quando. Esses avanços mostram que, de facto, muito se tem feito. Nós temos a consciência que temos de fazer mais e melhor e estamos a caminhar para isso. A partir do momento em que tivermos as condições, com o Hospital Nacional, de termos os cuidados terciários também teremos melhores condições, o que irá contribuir para a diminuição das evacuações externas.

Depois também temos evocações internas.

Exactamente, o que é um grande desafio. Que é colocado pela própria realidade do nosso país, porque somos um país arquipelágico e tudo tem de ser multiplicado por nove. Portanto, é um desafio enorme, sendo nós um país de parcos recursos. Mas temos dado respostas, temos diminuído consideravelmente as evacuações e o recurso às novas tecnologias, nomeadamente a utilização da telemedicina, também tem facilitado e muito. Têm diminuído as evacuações, sobretudo as que eram feitas para diagnóstico. Porque muitos exames já são feitos nas estruturas nas ilhas. Temos é escassez de recursos humanos, de especialistas. Mas a telemedicina permite que um especialista que esteja num dos hospitais centrais possa fazer a leitura do resultado de exame e, a partir daí, pode ser prescrito ao paciente o tratamento. Mas eu quero aqui pôr a tónica no seguinte: nós não queremos encarar o sector da saúde como um sector que trata e cuida. Quero apelar à comunicação social e à sociedade cabo-verdiana para que juntemos as nossas forças para trabalharmos nos cuidados primários, na educação e prevenção, porque irá contribuir para a educação e formação para a saúde, sobretudo nas crianças. Nós temos que apostar cada vez mais na educação e promoção para saúde porque as doenças crónicas que nós temos neste momento são doenças derivadas, na maior parte das vezes, de maus hábitos. Nomeadamente, consumo abusivo de álcool, vida sedentária, maus hábitos alimentares, etc. Havendo uma educação, desde criança, para a saúde, com hábitos saudáveis, com consciencialização dos riscos, nós acreditamos que dentro de pouco tempo teremos menos pessoas doentes, teremos um país mais saudável, teremos pessoas mais felizes, teremos famílias bem estruturadas e isso irá contribuir para que tenhamos maior esperança de vida e para que tenhamos maiores progressos no país.

Falava há pouco do novo hospital central que será construído na Praia. Quando é que teremos esse hospital?

Construir um hospital de cuidados primários é muito exigente e delicado. Por quê? Porque tendo em atenção ao fim a que se destina, exige-se que o projecto seja muito bem aprimorado e também que analisemos muito bem a questão da sustentabilidade. Vou dar um exemplo: num hospital terciário nós poderemos e teremos que ter cirurgiões de ponta. A nível internacional um cirurgião, para ser considerado um bom cirurgião, tem de realizar no mínimo mil intervenções e no nosso no nosso país chegar lá é um desafio enorme. Isto para dizer que o primeiro objectivo deste Hospital Nacional é responder às demandas dos cabo-verdianos. Mas para que este hospital tenha condições de responder a essas demandas, nós temos que ter aqui uma engenharia de sustentabilidade. Isto para dizer que nós estamos a contar que, dentro em breve, nós teremos o lançamento do concurso para a realização do projecto. Muito trabalho já foi feito até este momento e continua a ser feito, é algo em relação ao qual nós temos a consciência que irá fazer uma diferença enorme no sistema de saúde e nas vidas dos cabo-verdianos. Mas também, dada a sua importância e dados os custos que envolve, exige muito trabalho, muita ponderação, muita competência para que os objectivos sejam alcançados.

O sector da saúde tem dependido muito da cooperação. Em Cabo Verde há médicos de várias nacionalidades. Isto mostra que Cabo Verde é um país pouco atractivo para os estudantes cabo-verdianos que vão para fora estudar medicina e que depois acabam por não regressar?

Eu não concordo com esta constatação e vou explicar porquê. Se formos ver em termos de número de estudantes que vão para fora, os que não regressam são uma minoria. Eu já disse e repito: a maior riqueza do sistema de saúde são os seus profissionais. E a medicina e o sector da saúde em geral são para aqueles que têm uma vocação. Nós, se ainda estamos a precisar de cooperação, é porque ainda não conseguimos ter todas as especialidades que são necessárias. É porque atingimos um nível de desenvolvimento que levou ao aumento da esperança de vida e, agora, a transição epidemiológica faz com que o sector da saúde esteja em constante construção. Estamos a trabalhar num plano estratégico de recursos humanos. Já começamos a formar em casa os profissionais de saúde, sobretudo na área da medicina e isso é um grande passo. A nossa aposta, neste momento, é no relançamento. Para que possamos formar cada vez mais profissionais em função das necessidades. Tudo dentro de um plano estratégico existente para que possamos ter a planificação e saber daqui a 10 ou 15 anos o que é que será preciso e o que é que nós teremos. Mas eu quero aqui realçar a importância da cooperação para o sector da saúde. Vou voltar ao exemplo da covid. Durante a pandemia, no âmbito da cooperação internacional, existe um princípio em como se fazem as cooperações, mas menos para o investimento em recursos humanos. Mas por causa dos desafios da pandemia abriram-se excepções. Houve disponibilização de meios para contratação de mais recursos humanos e esse investimento veio mostrar, de facto, a escassez que nós temos. Com a vitória que nós tivemos em relação à covid, e com a descontinuidade da disponibilização desses meios para recursos humanos, estamos a enfrentar alguma instabilidade. Já conseguimos contratar a maior parte dos profissionais que haviam sido empregados no âmbito da pandemia, mas ainda não na sua totalidade. O Estado, pelas suas capacidades, não consegue num único ano, no Orçamento, ter a provisão orçamental para alojar a verba que tenha em atenção a necessidade do país. Mas a cooperação vem ajudando. Nós acreditamos que com um bom plano estratégico nos próximos anos estaremos em condições de responder às demandas. Mas quero aqui também destacar o papel da nossa diáspora, dos nossos quadros na diáspora. Chegou ao país uma equipa de médicos especialistas cabo-verdianos residentes nos Estados Unidos que tem dado um contributo incomensurável para o sector da saúde com os quais pretendemos assinar um protocolo.

Dentro desse plano de recursos humanos de que estava a falar, está prevista a criação da figura do médico de família?

Está prevista a criação no médico de família. Aliás, nós já temos médico de família. Porque a formação já está na sua reta final. É uma necessidade fundamental porque uma casa bem feita é estruturada de base. E também, para termos a sustentabilidade e a robustez que são precisas no sistema de saúde, temos que apostar nos cuidados. Os médicos de família irão trabalhar directamente com as pessoas, sobretudo na educação, na prevenção e irão fazer uma diferença enorme depois no sistema de saúde. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1117 de 26 de Abril de 2023.

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Autoria:André Amaral,30 abr 2023 8:03

Editado porSara Almeida  em  23 jan 2024 23:28

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