“A CEDEAO talvez tenha de repensar o seu funcionamento e estas crises são alertas”

PorSara Almeida,25 fev 2024 7:57

Num momento em que a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) enfrenta a pior crise de sempre, e a partir de Adis Abeba, onde acompanhou o Presidente da República para a 37.ª sessão Ordinária da União Africana (UA), o chefe da diplomacia cabo-verdiana fala sobre as preocupações e as principais linhas da política externa do país. A necessidade de fortalecer as instituições dos Estados africanos e a reformulação da intervenção regional, bem como a importância do diálogo e da diplomacia para resolver diferendos entre as Nações, são alguns dos temas abordados nesta conversa com Rui Figueiredo Soares, em que se traça a integração de Cabo Verde – pequeno Estado insular, mas que é “um grande Estado oceânico” - na sub-região, na região e no mundo.

Antes de abordarmos a crise da CEDEAO, falemos deste evento na UA. Que preocupações e inputs veio trazer a agenda cabo-verdiana para estas reuniões e cimeira?

As principais preocupações prendem-se com a questão da segurança; a questão da paz, a questão das rupturas não constitucionais de governos e com alguns desafios ligados ao terrorismo, nomeadamente no Sahel. São desafios enormes e Cabo Verde trouxe a contribuição de, como pequeno Estado insular, defender que devem ser reforçadas as instituições dos diferentes países para que tenhamos boa governança, democracia e salvaguarda do Estado de Direito.

Nessa reforma institucional, como a União Africana poderia intervir, tendo em conta que é uma questão que envolve a soberania dos Estados?

É verdade, mas quando se pertence a uma União, como é o caso da União Europeia, da União Africana e outras Uniões que existem pelo mundo, uma parte da soberania é cedida em favor da entidade supranacional. Neste caso, haverá questões que têm de ser analisadas no seu todo, considerando o conjunto de países que compõem a União Africana. Na reforma em curso, que o Presidente Paul Kagame irá apresentar aos seus pares na reunião de amanhã [NR: a entrevista foi realizada na sexta-feira, 17], devemos encontrar espaços adequados para que a União Africana tenha mecanismos eficazes de intervenção em situações extremas, como são os golpes de Estado que temos vivido, as ameaças terroristas à paz, mas também questões económicas que têm a ver com o desenvolvimento, com a juventude, com a educação e com a saúde. Isto é, é preciso pensar seriamente no novo papel daquilo que era a Organização de Unidade Africana, a OUA e depois passou a ser União Africana, UA. Agora quer-se que esta União Africana efectivamente assuma o papel que lhe compete em matéria de políticas para o continente.

Entretanto, uma das razões por trás dos golpes de Estado na sub-região terá sido a incapacidade de combater os extremistas que ameaçam estes países do Sahel. A União Africana e a CEDEAO terão falhado no apoio a esses países na sua luta contra o terrorismo?

Terá havido, eventualmente, algumas dificuldades e falhas de ambas as partes, mas para nós a questão central tem a ver com a fragilidade das instituições desses países. É certo que essas instituições têm um papel fundamental que devem desempenhar, mas não podemos pensar que a estabilidade, seja em qualquer país, seja ditada exclusivamente por instituições externas. A CEDAO tem estado a procurar, e nem sempre tem conseguido da forma mais feliz, posicionar-se em matéria de questões que têm a ver com a segurança, com a paz, com os golpes de Estado. Aliás, houve muitas discussões sobre uma possível intervenção militar [nos países onde ocorreram golpes de Estado], que Cabo Verde não apoiou na altura e que acabou por não se concretizar. Então, reconhecemos a responsabilidade dessas organizações, mas temos de pensar, acima de tudo, em como internamente reforçar as instituições dos países em prol da democracia, da boa governança e do Estado de Direito, como referi. Esta será a via para se conseguirem avanços significativos.


A CEDEAO vive aquela que já é considerada a sua pior crise de sempre, com três países [Níger, Burkina Faso e Mali] a anunciar a sua saída da Comunidade. Que consequências é que Cabo Verde antevê? Uma CEDEAO dos 12? Uma implosão?

Cabo Verde tem sugerido, em todos os fóruns, muita ponderação à CEDEAO e aos Estados-membros, nomeadamente aos países que anunciaram a sua saída, defendendo que qualquer diferendo deve ser resolvido com diálogo, com contenção e com muita diplomacia. Não parece que tenha sido esta a via utilizada até agora. Existem protocolos sobre a matéria, o próprio Tratado Revisto [da CEDEAO, de 1993] tem os seus mecanismos para a desvinculação - ninguém é obrigado a ficar eternamente vinculado a qualquer contrato -, mas parece-nos que, apesar da posição reafirmada pelos governos que perpetraram os golpes de Estado nestes países, haverá ainda espaço para o diálogo e para se encontrarem soluções que evitem a implosão da CEDEAO. A CEDEAO, como dizia o Presidente da Comissão da União Africana, na abertura da reunião do Conselho Executivo [da UA], é uma das regiões mais prósperas e uma das organizações mais consolidadas na União Africana e é pena que se esteja a assistir a este cenário. Portanto, temos aqui um caminho a percorrer para incluir a todos, restabelecer o diálogo com esses países e conseguir que todos se comprometam com o desenvolvimento regional, bem como com o desenvolvimento da União Africana, no seu todo.

Mas, além destes três países, temos outros que enfrentam graves deficiências na governação democrática. Cerca de metade dos Estados-membros, pelo menos, enfrenta instabilidade política (e não é de agora…). Sendo a boa governança um dos princípios da CEDEAO, como é que isto vai impactar o projecto de integração regional?

A instabilidade, incerteza e, em alguns casos, violência em alguns países da nossa sub-região são muito prejudiciais para a nossa sub-região. O impacto é enorme, de facto, e Cabo Verde olha para essas situações com muita preocupação. O Sr. Presidente da República e o Sr. Primeiro-Ministro já se exprimiram sobre o assunto e eu, pessoalmente, também já o fiz. Aliás, na última reunião do Conselho de Mediação e Segurança, Cabo Verde demonstrou a sua preocupação relativamente a estas questões e pensamos que é preciso reformular a própria CEDEAO, partilhando responsabilidades com a União Africana. É necessária uma cooperação mais estruturada entre a União Africana e as organizações regionais para uma intervenção mais eficaz nos nossos países. A CEDEAO talvez tenha de repensar os quadros do seu próprio funcionamento e estas crises - os golpes de Estado nos países referidos e igualmente na Guiné Conacri, que também é governada por uma junta militar; a situação no Senegal; na Guiné-Bissau; as tentativas de golpes de Estado em outros países – são alertas que devem ser lidos com muita atenção. Vemos que a segurança global é uma questão interconectada. Ninguém vive isolado no mundo de hoje, cada vez mais global, e a solução terá de ser comum para que possamos conhecer dias melhores. Relativamente à situação no Senegal, em particular, há indícios de abertura para o diálogo. O próprio presidente já tomou algumas medidas que se destinam a apaziguar os ânimos e o Conselho Constitucional anulou os decretos que propunham o adiamento das eleições. Vamos seguir a situação com muita atenção, mas estamos certos de que o Senegal e os senegaleses, na sua experiência, na sua tradição de democracia, encontrarão uma saída para esta crise que estão a viver.

Quem também enfrenta múltiplos desafios internos é a Nigéria, que é a grande força económica da CEDEAO. Como é que estes problemas internos afectam a Comunidade e suas instituições?

Na verdade, todos os grandes desafios e conflitos mundiais têm repercussões em Cabo Verde, apesar de estarem a acontecer a milhares de quilómetros de distância. Têm repercussões directas e não desconsiderar essa interconexão, não podemos esquecermos da abrangência das situações vividas em todos os países: as questões do terrorismo, insegurança, dificuldades, guerras ou epidemias. A epidemia da covid-19 deu-nos, aliás, um exemplo acabado daquilo que é este mundo cada vez mais global em que vivemos. Todas essas questões estão imbricadas e nenhum país consegue viver isolado, mormente nos dias de hoje. Por conseguinte, a instabilidade em qualquer país da CEDEAO, mormente num país gigante como é a Nigéria, tem impactos directos na organização no seu todo. Cabo Verde estará um pouco alienado, separado fisicamente da repercussão directa, por exemplo, nas questões do terrorismo, mas a insegurança, o terrorismo e o terrorismo são ameaças globais que devem ser entendidas como tal.

A segurança foi um escopo introduzido com o Tratado Revisto da CEDEAO. Falou reformulação do funcionamento da Comunidade. Será necessária uma revisão do Tratado refundador?

Sim, certamente. O Tratado terá as suas limitações. [É de frisar que] Cabo Verde, como pequeno Estado insular, merece um tratamento diferenciado e temos estado a batalhar, desde há muito tempo, sobre este ponto. O Artigo 68 contempla a possibilidade de tratamento diferenciado, mas esta previsão demanda uma análise mais aprofundada não só da questão das contribuições para a Comunidade - uma questão irritante da nossa integração na CEDEAO - , mas também de questões que têm a ver com os grandes investimentos feitos pela CEDEAO em vários países do continente, dos quais Cabo Verde não se tem beneficiado. Temos aqui uma vasta possibilidade de reequacionar a própria CEDEAO e a inclusão dos pequenos estados insulares, como é o caso de Cabo Verde. Embora a Guiné-Bissau também possua uma parcela insular, é Cabo Verde que vivencia predominantemente os impactos da insularidade e teremos de repor este dossiê em cima da mesa.

A integração de Cabo Verde é um compromisso político assumido, inclusive consagrado pela Constituição da República. No entanto, sempre houve algum cepticismo e estes conflitos também geram desconfiança na população. Como é que isto impacta a vontade de Cabo Verde apostar na integração regional?

É verdade que a integração regional enfrenta alguma resistência e cepticismo na sociedade cabo-verdiana. Mas, há também resistência e cepticismo por parte dos países continentais em relação ao Cabo Verde, que olham com alguma desconfiança para a nossa realidade insular e avanços que temos feito em termos de Índice de Desenvolvimento Humano, em termos de crescimento, de reforço das instituições, do funcionamento do Estado de Direito Democrático e do respeito dos direitos humanos. Há, de facto, alguma desconfiança também por parte dos nossos vizinhos continentais. Superar esses desafios é um trabalho que tem de ser feito com afinco, por todos. A imprensa, por exemplo, terá um papel fundamental nesta matéria, permitindo que as pessoas expressem seus pontos de vista - isto é que é a imprensa livre -, mas também de transmitindo informações sobre aquilo que acontece no nosso continente, um continente repleto de potencialidades. É um território que não se caracterizar como um continente do futuro: é um continente do presente, com tudo aquilo que oferece ao mundo e com as parcerias que todos os blocos estão a procurar com a África. Temos riquezas inesgotáveis a explorar e seria bom que Cabo Verde pudesse visualizar a sua integração na CEDEAO de uma forma positiva; que os países da CEDEAO, e do continente africano em geral, pudessem olhar para Cabo Verde como parte do seu processo de desenvolvimento, com uma especificidade pelo facto de sermos ilhas, e todos representássemos um “mais” nesta equação. É um trabalho que deve ser feito também pelas classes empresariais de todos os países. As trocas comerciais, as trocas de experiências de empresários devem ser um ponto fundamental e é o que estamos a procurar fazer. Estamos empenhados em atrair mais investidores e incentivar os cabo-verdianos a estabelecerem joint ventures com empresas congéneres nos países vizinhos.

Mas sabemos que há divergências várias, na governação, nos projectos monetários, etc. Então, onde encontrar pontos de convergência nestes e outros aspectos, que são eixos de uma integração mais robusta?

As convergências devem ser encontradas no meio das diferenças existentes entre os países. Não podemos anular-nos uns aos outros, as nossas experiências não podem ser mudadas e cada bloco, cada país, cada conjunto deve olhar para o outro com interesse em conhecer e aproveitar o que há de positivo. Temos muita coisa boa em Cabo Verde, mas teremos também aspectos menos bons, em que os países vizinhos da nossa sub-região são melhores. A palavra-chave será essencialmente a tolerância também entre as Nações. Reconhecer as diferenças culturais, os diversos níveis de desenvolvimento e as distintas formas, por exemplo, de fazer de negócios, que são completamente diferentes em algumas realidades. No meio das diferenças é importante encontrar os pontos comuns, isto é, os nossos interesses comuns. Os Estados guiam-se pelos interesses, não por sentimentos e devemos, pois, de forma serena e objectiva, olhar para os interesses de Cabo Verde na CEDEAO.

Temos vários conflitos na nossa sub-região e outras partes do continente (Guerra do Sudão, a situação de Tigrey aí na Etiópia, …), mas a crise não é só em África. O Mundo, no seu todo, atravessa a pior crise bélica nos últimos 50 anos (Ucrânia, Gaza…). No meio desta crise global, que linhas é que Cabo Verde vai adoptar na política externa para se posicionar na instável ordem mundial?

Cabo Verde continua a defender as grandes bandeiras do desenvolvimento. Quando os colegas me perguntam qual é o segredo de Cabo Verde, um país desprovido de recursos naturais, lembro sempre que Cabo Verde, apesar de ser um pequeno país insular, é um grande Estado oceânico. Nós somos 99,6% mar. Aqui, destaca-se, por exemplo, a questão da economia azul e os Oceanos estiveram na ordem do dia nesta Cimeira de chefes de Estado e de Governo da União Africana. Nós defendemos, como referido, as grandes questões que têm a ver com o reforço das instituições, o Estado de direito democrático, a boa governança, a democracia, o respeito dos direitos humanos, como elementos intangíveis, de grande valor para os países conseguirem o almejado desenvolvimento. Cabo Verde também tem defendido a sua posição enquanto pequeno Estado insular em desenvolvimento (SIDS). Realizamos, em Setembro do ano passado, uma reunião preparatória da grande conferência sobre os SIDS que terá lugar em Antígua e Barbuda [em Maio de 2024], em que se irá definir o novo programa de acção [depois da aprovação, em 2014, do plano de acção intitulado SAMOA Pathway]. O secretário-geral das Nações Unidas irá organizar, em Setembro de 2024, à margem da Assembleia Geral da ONU, a Cimeira do Futuro, onde todas essas questões estarão em análise e onde Cabo Verde pretende ser uma voz audível, nomeadamente na adopção de um Índice de Vulnerabilidade que tenha em conta a situação dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento, que são aqueles que menos poluem, mas são os mais afectados pelas alterações climáticas. Então, no meio desta conturbação geral, destes problemas, Cabo Verde tem de procurar o seu lugar na arena internacional como parceiro útil, credível e previsível, com posições claras que defende e mostrando-se sempre aberto a que todos os conflitos e situações sejam resolvidos pela via do diálogo e da diplomacia. Esta é a nossa via de integração no mundo e de participação no desenvolvimento global.

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É necessária uma cooperação mais estruturada entre a União Africana e as organizações regionais para uma intervenção mais eficaz nos nossos países

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Cimeira UA

A 37.ª Cimeira da União Africana decorreu em Adis Abeba, Etiópia, na sede da organização regional entre os dias 17 e 18 de Fevereiro, e foi precedida de vários encontros e reuniões entre os representantes das Nações africanas.

Cabo Verde fez-se representar pelo seu Presidente da República, José Maria Neves, acompanhado pelo chefe da diplomacia cabo-verdiana, Rui Figueiredo Soares.

José Maria Neves defendeu uma “profunda reforma na União Africana”, propondo a adopção um modelo de governação multinível com melhor integração dos Estados e organizações regionais.

Durante a sua estadia em Adis Abeba, o chefe de Estado promoveu ainda a ampliação de parcerias e conduziu a agenda como Champion para a Preservação do Património Natural e Cultural de África até 2025, sendo de destacar que os Presidentes da Guiné Equatorial e do Quénia, Teodoro Obiang e William Ruto, concordaram em assumir o papel de co-champions para as regiões central e oriental do continente

UA no Conselho de Segurança da ONU

Entre os temas em destaque nesta Cimeira estiveram os desafios enfrentados na região, nomeadamente a instabilidade política e o agravamento de conflitos regionais, especialmente no Sahel, que colocam à prova os princípios constitutivos da UA e a vitalidade e credibilidade da organização.

No final deste encontro de chefes de Estado e do governo, o Presidente da Mauritânia e novo presidente da UA, Ould Cheikh El Ghazouani, afirmou no seu discurso que uma das principais metas do continente para 2024 é assegurar uma posição permanente no Conselho de Paz e Segurança das Nações Unidas.

Saúde e educação também foram temas abordados na Cimeira, com a UA a adoptar como lema para 2024 “Educar um Africano apto para o século XXI”, um aspecto também frisado no discurso final com El Ghazouani a insistir na necessidade de preparar as novas gerações para os futuros desafios.

No próximo sábado, 24, realiza-se em Abuja, Nigéria, uma reunião para analisar a situação política e de segurança na CEDEAO, na sequência do anúncio de saída do Burkina Faso, Níger e Mali da Comunidade sub-regional. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1160 de 21 de Fevereiro de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,25 fev 2024 7:57

Editado pormaria Fortes  em  26 abr 2024 23:28

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