Governo e câmara receberam ‘cartão vermelho’ da população

Na maior manifestação dos últimos anos, milhares mostraram o seu descontentamento com a situação da ilha

Pela quarta vez, no espaço de dois anos, os são-vicentinos saíram à rua, num protesto em que disseram “basta”, pediram “autonomia” e gritaram “abaixo o centralismo”. Na ‘morada’, na manhã do Dia da Independência, multiplicaram-se motivações. Reduzir a manifestação de 5 de Julho a uma única causa seria, por isso mesmo, redutor. Uma ideia partilhada, porém, juntou os manifestantes: a convicção de que São Vicente não está a receber a atenção devida.

Durante a marcha, que começou na Praça Estrela e percorreu o centro histórico, até à Praça D. Luís, foram mostrados cartões vermelhos ao governo central e à autarquia.

As contas variam. Estima-se que entre 10 a 15 mil pessoas tenham participado na manifestação, organizada pelo Sokols 2017, naquele que foi o maior protesto dos últimos anos.

“A manifestação foi magnífica, ultrapassou todas as expectativas”, dizia no final Salvador Mascarenhas, presidente do movimento cívico.

Motivações

Casimiro Rocha é empresário e saiu à rua a 5 de Julho. Quer saber como é possível existirem “dois países dentro de um”.

“A coisa está mal, muito mal. Sentimo-nos prejudicados pela Câmara Municipal, pelo Governo, porque ficou tudo muito mais complicado. Para trazermos uma mercadoria, ela tem que dar voltas e mais voltas até chegar aqui”, desabafava por entre a multidão.

“Pagamos muito para trazer os produtos até aqui, devido ao problema dos transportes e não podemos aumentar o preço, porque se aumentarmos não conseguimos vender, porque a população também enfrenta os seus problemas e não tem dinheiro para comprar”, explicava.

Quem também já sentiu na pele a falta de alternativas de transporte aéreo foi o artista plástico João Brito.

“Por exemplo, fiquei sem participar numa exposição nos Estados Unidos, porque o preço das passagens está muito caro e não consegues um bilhete a um preço que te permita ir a um outro país expor os teus trabalhos”, contou-nos.

Para João, o caso é um descaso. “Este problema de transportes, já nos manifestámos sobre isso, já mostraram que não estão interessados, não querem saber e nada fazem para resolver o problema”.

Consultora de comunicação, Samira Pereira manifestou-se e subscreve a ideia de um país dividido.

“As prioridades a nível do governo devem ser transversais, devem procurar uniformizar, distribuir ao máximo a riqueza do país entre as ilhas e, a nível local, tentar uniformizar ao máximo e aproximar a periferia do centro, porque há varias cidades”, defende.

O Governo foi o principal alvo das críticas, mas a Câmara Municipal de São Vicente não escapou à contestação, pela suposta ‘falta de pressão’ junto do poder central. No final do percurso, algumas centenas de manifestantes, contrariando o que estava previsto, dirigiram-se aos Paços do Concelho, perante a atenção da Polícia Nacional.

Comportamentos que o terapeuta ocupacional e activista cultural, Olavo da Luz, entende como demonstrativos do fim de um tempo de “silêncio”.

“Infelizmente, durante muitos anos, ficámos em silêncio, com receio dos governos, dos partidos políticos e agora este receio começa a desvanecer-se e temos, cada vez mais, uma participação cívica, o que é extraordinário para o desenvolvimento da nossa democracia, pela reversão de uma tendência autocrática, de uma arrogância que se está a instalar nos partidos quando chegam ao poder”, disse-nos.

Nada surpreendido com a desvalorização ou partidarização da manifestação, por parte de quem está no poder, Olavo da Luz lembra que a estratégia já foi usada noutras ocasiões.

“Os políticos têm de ser um pouquinho mais inteligentes, porque a estratégia pode até funcionar em algum momento, mas é preciso inteligência para saber que não funciona sempre, não favorece ninguém, é uma tentativa de desconstrução, de descalçar as pessoas, de nos tirar o chão, de nos desconstruir enquanto sociedade civil, enquanto cidadãos activos, de limitar a nossa liberdade enquanto pessoas, com ou sem filiação a partidos políticos”, acredita.

Sindicalista, Tomás de Aquino subscreve a ideia de celebrar a independência em tom reivindicativo. À manifestação, levou a exigência de melhores condições de reforma para os marítimos.

“O 5 de Julho é também para reivindicar aquilo que vai mal. Neste momento, temos um conjunto de problemas e reivindicações que não estão a ser atendidos. Os sindicatos e trabalhadores têm de estar atentos para fazer cumprir a lei, como é o caso dos trabalhadores marítimos e a questão da redução de idade de reforma. Estamos aqui também para denunciar esta situação”, comentava durante a marcha.

As questões ambientais não ficaram de fora da lista reivindicativa. Um grupo de activistas, liderados pelo biólogo marinho Evandro Lopes, fez questão de recordar a ameaça que paira sobre a enseada de corais da Laginha, afectada pela lama, depois das obras de escoamento de águas pluviais.

“É certo que muitas vezes a governação, tanto local, como central, não presta atenção ao que se passa nos nossos mares. A questão da economia azul é uma fachada, a economia azul começa desde pequenas acções que fazemos nos nossos mares”, lembrou.

Autárquicas

Fundado em 2017, o Sokols apela a um maior exercício da cidadania. No momento em que se desenham cenários para possíveis candidaturas autárquicas independentes em São Vicente, Salvador Mascarenhas garante que o movimento não será candidato, mas “estimula o surgimento” de iniciativas do género.

“A Sokols não vai apoiar nenhuma lista, ficaremos contentes com o surgimento de uma lista às autárquicas, vinda da sociedade civil”, garantiu, no final da manifestação da última sexta-feira, de olhos postos em 2020.    

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 919 de 10 de Julho de 2019. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira, Lourdes Fortes, Rádio Morabeza,14 jul 2019 8:58

Editado porAndre Amaral  em  7 abr 2020 23:20

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