Quando tudo parecia encaminhado para o um final de mandato relativamente tranquilo, eis que novo volte-face devolveu a Câmara Municipal de São Vicente (CMSV) à crise institucional que tem vivido desde as autárquicas de 2020.
No dia 11, na Assembleia Municipal (AMSV), UCID e PAICV chumbaram o plano de actividades e orçamento para 2024, atirando a câmara para o regime de duodécimos, pelo segundo ano consecutivo.
Onze votos contra, nove a favor e uma abstenção foram suficientes para relançar o debate sobre a governabilidade numa das principais câmaras do país, dando o mote para nova vaga de trocas de acusações.
Em Abril, com praticamente três quartos do mandato cumpridos em permanente turbulência, foi anunciado um ‘acordo de paz’ entre os vereadores da União Cabo-Verdiana Independente e Democrática (UCID) e o presidente da autarquia, Augusto Neves. Desde então, e até há pouco mais de uma semana, tudo parecia encaminhado para um último ano de exercício sem sobressaltos de maior. Tanto assim é que os instrumentos de gestão, agora chumbados na AMSV, chegaram a ser aprovados em sessão de câmara pelo Movimento para a Democracia (MpD) e UCID.
Argumentos
Depois do voto contra, na Assembleia, coube ao presidente da UCID vir a público descartar qualquer responsabilidade no chumbo, apontando o dedo ao presidente da câmara.
“Mesmo enfrentando o autoritarismo, as casmurrices e esquemas fraudulentos de Augusto Neves na CMSV, a UCID deu um sinal bastante positivo quando viabilizou o orçamento e plano de actividades para o ano de 2024, numa sessão da Câmara Municipal, mas o edil não procurou depois a ponte para a viabilização na Assembleia Municipal, que é o palco político por excelência”, disse, em conferência de imprensa.
João Luís, que não vê falta de coerência em votar contra aquilo que antes tinha aprovado, lembra que “quem deve tomar as medidas consentâneas é o governo”.
Do lado do PAICV, coube ao líder da Comissão Política Regional, Adilson Graça, justificar o chumbo. “Má qualidade das propostas”, alegou aos jornalistas.
O responsável local nega qualquer tentativa de perseguição ao edil são-vicentino, explicando que as posições assumidas são uma resposta “aos desmandos” de Augusto Neves.
Por seu lado, o visado fala da “forma perversa” com que, no seu entender, UCID e PAICV têm dificultado o “normal funcionamento” da câmara e o “desenvolvimento da ilha”.
“Estamos a trabalhar no plano de actividades e orçamento desde Maio e tenho todas as convocatórias feitas, solicitando subsídios aos partidos. Não entregaram nada, não participaram, muitos não compareceram na apresentação e discussão do documento e só aparecem no momento da votação, para votar contra”, explicou, também em conferência de imprensa.
Assumir responsabilidades
Há muito que o ‘caso São Vicente’ deixou de ser um assunto meramente local. Por essa razão, não surpreende que o Presidente da República também tenha vindo a público, nos últimos dias, para comentar o caso, com um recado claro: “é importante que todos assumam as suas responsabilidades”.
Realça José Maria Neves que há que fazer concessões.
“Há quem tenha sido eleito para governar, há quem tenha sido eleito para fazer oposição e quando não há uma maioria clara, há que encontrar espaços para entendimento”, defendeu.
Intercalares
Para Jacinto Santos, analista político e primeiro presidente eleito da Câmara Municipal da Praia, a situação em que está mergulhada a CMSV coloca em causa, não só a vida do município, mas a própria República.
“A República de Cabo Verde assenta na vontade popular. A soberania do nosso sistema é concedida através de eleições regulares, para que o povo escolha livremente os seus representantes”, observa.
“A decisão do povo foi clara. Deu uma vitória ao MpD, mas quer que o MpD partilhe a gestão do município com os outros partidos que têm assento na Câmara Municipal”, complementa.
A realização de eleições intercalares, mesmo considerando o pouco tempo que falta para o final do mandato, é a saída que Jacinto Santos vislumbra.
“Se esta situação se eternizar, vamos ter uma situação anómala, em que o governo terá que, através de outros instrumentos, cumprir parte das atribuições municipais, o que não é saudável para a autonomia do poder local”, alerta.
Duodécimos
A consequência mais directa do chumbo dos instrumentos de gestão municipais para 2024 é a continuação do sistema de duodécimos, em que o montante total do último orçamento aprovado é divido por doze meses. O economista António Baptista esclarece que, apesar dos constrangimentos, não está em causa o funcionamento da câmara.
“Não é uma situação confortável, é um constrangimento na administração, mas a câmara tem dinheiro, pode implementar obras, pode implementar os seus projectos perfeitamente”, realça.
António Baptista admite, porém, que a execução orçamental pode afectar a concretização de alguns projectos, se estes estiverem orçados num montante superior ao valor disponível no regime de duodécimos.
“A questão é que, em termos de ambição, as urgências da Câmara de São Vicente e os investimentos necessários para ultrapassar o efeito da crise, a recuperação não é tão rápida”, antecipa.
Recorde-se que o MpD venceu as eleições de Outubro de 2020, em São Vicente, mas sem maioria absoluta. Na Câmara, conseguiu quatro mandatos. A UCID elegeu três vereadores e o PAICV dois. Desde então, são várias as denúncias, de ambos os lados. Em Novembro de 2022, os vereadores da UCID e do PAICV pediram a perda de mandato de Augusto Neves. Os eleitos apontam “um conjunto de ilegalidades”, alegadamente praticadas desde 2020.
*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1138 de 20 de Setembro de 2023.