A construção da Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA) conheceu a 1 de Janeiro um novo capítulo, com o início da operacionalização do acordo. Numa altura em que 54 estados já aderiram à iniciativa e quando cerca de quatro dezenas já ratificaram o entendimento conjunto, surgem novos desafios. Passar da teoria à prática é, agora, a meta a vencer.
O economista Paulino Dias antecipa “algumas dificuldades”.
“Quer a nível de possíveis bloqueios por parte de grupos de interesse em cada país, por exemplo, empresas locais que poderão temer um aumento da concorrência. Quer eventuais bloqueios mesmo por parte dos próprios governos, que podem ver ali uma perda de receita fiscais”, espera.
As relações comerciais do continente são, maioritariamente, com o resto do mundo. As trocas entre países africanos não representam mais de 16 a 18% do total das transacções. As matérias-primas continuam a liderar as exportações continentais.
Para transformar este quadro, Michel Cabral, que trabalhou durante 16 meses na unidade de suporte à ZCLCA, diz que é necessário vencer o pessimismo.
“Para que o acordo dê resultados, alguns desafios terão que ser ultrapassados. Outras regiões já passaram por isso e agora é a vez da África. O acordo prende-se com a questão da atenuação do pessimismo que reina na sociedade africana, sobretudo nos países ideológica ou economicamente menos próximos do continente, como é o caso Cabo Verde”, considera.
O acordo que estabelece a Zona de Comércio Livre foi rubricado em Kigali, no Ruanda, em Março de 2018. Cabo Verde foi um dos 44 países que integraram o grupo da frente. A 30 de Maio de 2019, um mês após a 22ª ratificação, o ZCLCA entrou em vigor. A efectivação prática esteve prevista para 1 de Julho de 2020, mas a pandemia obrigou ao adiamento.
“O objectivo passa por alcançar um acordo comercial abrangente e mutuamente benéfico, através da redução tarifaria progressiva, com vista à sua eliminação, mas também da eliminação das barreiras não tarifárias, como as barreiras técnicas. O acordo, em si, é muito rico e parece-me ultrapassar uma simples zona de comércio livre, por ser um trampolim para a criação de um mercado único africano”, comenta o consultor Michel Cabral.
O AfCFTA (sigla em inglês de African Continental Free Trade Area) criou a maior zona de comércio livre do mundo, da qual fazem parte 1,3 mil milhões de pessoas, com um Produto Interno Bruto combinado de 3,4 biliões de dólares.
Tirar partido destes números implicará a introdução de reformas profundas. Paulino Dias começaria pelas análises de impacto em cada economia nacional.
“Isto é, qual será o impacto previsível da operacionalização do acordo, sobre diversos parâmetros, para cada país, em termos de competitividade da produção interna, perda de potencial de receita, benefícios para o consumidor e dinamização das trocas comerciais”, resume.
Ao mesmo tempo que o ‘trabalho de casa’ é feito, os especialistas concordam que cada governo deverá trabalhar para eliminar burocracias e harmonizar procedimentos. Tudo isto acompanhado de uma aposta nas infra-estruturas.
“Os países africanos, em parceria com a União Africana e as comunidades económicas regionais, vão ter de criar as infra-estruturas necessárias, de modo a facilitarem as trocas pelo mar, terra, ou ar”, sublinha Michel Cabral.
No relatório “AfCTA: efeitos económicos e distribuição”, o Banco Mundial recorda que perante a incerteza provocada pela pandemia de Covid-19, a criação de um mercado regional é uma oportunidade para a diversificação económica e das exportações, atraindo mais investimento directo estrangeiro. Paulino Dias concorda com esta ideia.
“O fluxo de investimento directo estrangeiro em direcção à África tem vindo a aumentar e eu acredito que, com a implementação desta zona, a atractividade será muito maior, o que trará benefícios inegáveis para todo o continente”, calcula.
E Cabo Verde?
Não é de agora a discussão sobre aquilo que Cabo Verde tem para oferecer a um mercado que caminha para a integração. O ex-consultor da unidade de apoio julga estarem enganados aqueles que vaticinam que o arquipélago não terá como competir na zona de comércio livre.
“Temos alguma coisa para exportar. Falo da indústria farmacêutica, artesanal, agro-pecuária, entre outros sectores. Mas tal como outros países insulares, como é o caso das Maurícias, temos muito a ganhar no sector dos serviços. Falo do turismo, telecomunicações, serviços empresariais, educação, finanças. O sector privado saberá como tirar proveito do acordo”, confia Michel Cabral.
Por seu lado, Paulino Dias admite que a ZCLCA poderá ajudar à concretização do objetivo de apresentar o país como uma porta de entrada para investidores que queiram conquistar o mercado africano.
“Creio que poderá ser o principal gancho de oportunidades, a possibilidade de utilizar a inserção no plano deste acordo para atrair investimento voltado para a exportação para o continente”, comenta.
O BM antecipa que, até 2035, o acordo de livre comércio possa traduzir-se num aumento do PIB continental em 450 mil milhões de dólares (+7%). As exportações poderão aumentar 560 mil milhões, em particular no sector transformador. No mesmo período, os salários poderão aumentar 10.3% para trabalhadores não qualificados e 9,8% para aqueles que têm qualificações.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.