Muita discussão e ainda pouca acção

PorJorge Montezinho,19 dez 2021 8:25

As economias africanas foram destroçadas pela crise económica provocada pela Covid-19, como é exemplo Cabo Verde que viu esfumar-se 15% da riqueza nacional, a segunda maior queda da África subsaariana. Este ano, já se começa a ver uma pequena luz ao fundo do túnel, mas as perspectivas de futuro estão ainda embrulhadas num grande ponto de interrogação. Entre as questões que precisam de ser respondidas há uma que sobressai: como se vai financiar a recuperação, principalmente das economias mais fracas.

As instituições internacionais deitaram mãos à obra, mas até ao momento, os milhares de milhões disponibilizados para restaurar a economia global não estão a ser repartidos da forma mais equitativa. O FMI, por exemplo, avançou com 650 mil milhões de dólares de Direitos Especiais de Saque (DES), mas dessa quantia, África só teve direito a 33 mil milhões, porque estas alocações são feitas em proporção com o tamanho das economias. Os países do G7 (os mais industrializados do mundo) têm ao dispor um pacote de 200 mil milhões de dólares, e os do G20 (as maiores economias do mundo), têm acesso a 400 mil milhões de dólares.

Os dados mostram também que os países ricos têm usado menos de 2% dos DES a que têm direito, enquanto os países africanos já ultrapassaram os 50%. Por isso, o que tem sido debatido nos últimos meses é o que podem fazer os países que têm DES que não usam? Em Outubro, depois de mais uma reunião, os países do G20 aceitaram devolver aos países vulneráveis 100 mil milhões de dólares da soma total dos Direitos Especiais de Saque emitidos pelo FMI para enfrentar a crise de saúde, uma ideia que já tinha sido proposta em Maio, pelo presidente francês Emmanuel Macron, durante a cimeira França-África. Mas ainda nada aconteceu.

“A ideia de transferência de DES de países mais ricos para países africanos não teve efeito prático, pelo menos em termos multilaterais como se supunha”, diz ao Expresso das Ilhas o economista angolano Jonuel Gonçalves. “Sempre fui favorável a uma moratória séria – mínimo de três anos – em vez de novo endividamento implícito nos DES. A moratória significa recurso a dinheiro já existente nos nossos países criando novos prazos para fazer esse dinheiro transformar-se em investimento e não em hemorragia de divisas. Receio que se tenha perdido a grande ocasião, porque as regras e o humor nos centros financeiros mudam consoante a pressão da conjuntura. O mais provável é países endividados ou em défice de capital recorrerem a qualquer mecanismo para arrecadar novos fundos, empurrando a dívida cada vez mais para diante, sendo possível a alguns países ricos fazerem gestos simbólicos. É assim que o sistema tem funcionado”.

Como explica ao Expresso das Ilhas o antigo governador do BCV, Carlos Burgo, essa excepcional emissão de Direitos Especiais de Saque (DES) constitui um significativo reforço da liquidez e das reservas internacionais, num contexto em que a comunidade internacional enfrenta grandes desafios.

Os países membros têm de reconstruir as suas economias no pós-COVID enquanto têm de acelerar a transição energética e mitigar os efeitos das alterações climáticas. Particularmente nos países menos desenvolvidos, a erradicação da pobreza requer transformações estruturais com vista a garantir de forma sustentável um crescimento robusto. Essa liquidez adicional criada deve ser colocada ao serviço da implementação dessa agenda global.

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“Contudo”, sublinha Carlos Burgo, “a liquidez criada pela via da emissão de DES é distribuída em função das respetivas quotas dos membros no Fundo Monetário Internacional (FMI) que, grosso modo, espelham a dimensão das diferentes economias. Esse facto agrava a assimetria da ordem financeira internacional, pois a liquidez internacional já é criada sobretudo pela via da emissão da moeda dos grandes países, sobretudo do Dólar dos Estado Unidos da América. Assim, de um lado, apenas uma ínfima parte do montante por si referido coube aos países menos desenvolvidos (21 mil milhões). De outro, a maior parte foi distribuída aos países mais avançados e de grandes economias com posições externas sólidas e que, além disso, podem financiar-se pela via da emissão de moeda própria. Coloca-se, por conseguinte, a questão de reencaminhar os recursos adicionais para os países que deles mais necessitam. Felizmente, há consenso sobre isso tanto a nível do próprio FMI como do G7 e do G20 e já vêm sendo dado passos nesse sentido. Desde logo, está-se a reforçar os recursos do Poverty Reduction and Growth Trust (PRGT) do FMI que concede empréstimos em condições muito favoráveis aos países mais pobres, havendo já compromissos assumidos embora se esteja ainda muito longe dos montantes almejados. Esboça-se também a criação de um novo instrumento, o Resilience and Sustainability Trust (RST), com um envelope de $100 mil milhões, que visa apoiar os países mais necessitados, incluindo os pequenos estados vulneráveis, na recuperação económica e na implementação das necessárias transformações estruturais. Há, ainda, a possibilidade de serem reforçados os recursos do Banco Mundial e dos bancos regionais de desenvolvimento”.

A distribuição actual

A distribuição dos Direitos Especiais de Saque por 190 países começou no final de Agosto. A Cabo Verde calhou 23 milhões de unidades de Direitos Especiais de Saque (DES), cerca de 27,8 milhões de euros, mais de três milhões de contos, de acordo com a distribuição proporcional à sua quota no Fundo Monetário Internacional (FMI).

O Brasil, a maior economia da lusofonia, encaixa 12,7 mil milhões de euros, seguido de Portugal, que vê as reservas externas aumentarem em 2.373 milhões de euros. Angola é o país lusófono africano com uma disponibilização mais forte, 855 milhões de euros, seguindo-se Moçambique, com 261 milhões de euros, a Guiné Equatorial, 181,6 milhões de euros, a Guiné-Bissau, com 32,6 milhões, e São Tomé e Príncipe, que recebe quase 17 milhões de euros em reservas cambiais.

Aos dois economistas, o Expresso das Ilhas perguntou se Cabo Verde deveria conversar bilateralmente com os principais parceiros – como Portugal e Luxemburgo – para conseguir acesso, por empréstimo aos DES que ambos os países não precisem.

“Numa perspectiva realista”, diz Carlos Burgo, “não creio que isso seja possível, dado que, de uma maneira geral, os DES integram as reservas internacionais dos países credores, o que requer um nível de liquidez e de risco de crédito que as operações a que se refere não ofereceriam. Contudo, Cabo Verde pode vir a beneficiar numa base multilateral da contribuição desses países aos instrumentos acima referidos, sobretudo através do RST e de financiamentos do Banco Mundial e do BAD”.

“Cabo Verde está em má posição para negociar dado o seu percentual de dívida e uma perspectiva de difícil aumento nas receitas que permitam fazer-lhe face”, refere Jonuel Gonçalves. “Têm-se a impressão de que o país joga com a sua boa imagem, comparando com a maior parte de África, mas essa imagem já não tem o mesmo impacto devido à modéstia do termo de comparação. Obter uma moratória sobre dívidas em curso seria tentar antes de enveredar por novos empréstimos, mesmo tipo DES. Ou, dada à situação de urgência (usando expressão gentil), negociar as duas vias em simultâneo. Se Portugal e o Luxemburgo são os mais indicados também não sei, pois são duas das menores economias da União Europeia, preocupados com a possibilidade de alta nas taxas de juros do Banco Central Europeu, medida que alteraria bastante o seu quadro financeiro. A não ser que se pense em pequenos montantes”.

Um continente a precisar de ajuda

A pandemia da COVID-19 chegou num momento em que as perspectivas para muitos países africanos eram promissoras. No início de 2020, o continente estava no bom caminho para continuar a sua expansão económica, com um crescimento previsto de 2.9 % em 2019 para 3.2% em 2020, e 3.5% em 2021. Havia ganhos importantes nos indicadores de redução da pobreza. A tecnologia e a inovação eram cada vez mais assimiladas, com os jovens como primeiros utilizadores de novas plataformas, como serviços financeiros móveis.

Por outro lado, África enfrentava também grandes desafios. Não estava perto de atingir os objetivos da Agenda 2030 e da Agenda 2063. A fraca governança, a corrupção, a degradação ambiental, as violações dos direitos humanos, a falta de diversidade económica e as situações humanitárias e de conflito, entre outras, minavam ainda o progresso. Neste contexto, surge a pandemia, que agravou as desigualdades e aumentou as vulnerabilidades. A perda de rendimento atinge, de forma desproporcional, os jovens, as mulheres, os trabalhadores menos qualificados e os do sector informal.

Em Maio, a ONU referia que para ajudar a lidar com as consequências económicas e sociais da crise, era preciso de um pacote abrangente de respostas globais no valor de uma percentagem de dois dígitos do Produto Interno Bruto global. Para a África, isso significava mais de 200 mil milhões de dólares. Também era necessária uma paralisação generalizada da dívida para os países africanos, além de opções abrangentes para a sustentabilidade da dívida e soluções para questões estruturais na arquitetura da dívida internacional.

No mesmo mês, estudos do FMI estimavam que os países de baixo rendimento precisavam de cerca de 200 mil milhões de dólares, até 2025, para intensificar a resposta à pandemia e mais 250 mil milhões de dólares para recuperar terreno em relação às economias avançadas.

“Não se trataria nunca de pedir favores, mas sim de acesso a financiamento para a implementação da agenda global da humanidade”, refere Carlos Burgo. “A recuperação da actual crise e a construção de resiliência a crises pandémicas, a redução da desigualdade e a erradicação da pobreza, a mitigação da alteração climática bem como a promoção do desenvolvimento são bens públicos internacionais. A África e Cabo Verde têm toda a legitimidade para obter financiamento da comunidade internacional desde que apresentem planos credíveis de transformação e reformas estruturais e promovam a utilização eficiente e transparente dos recursos. Não devemos é ter a veleidade de pensar que vai haver simplesmente uma transferência de riqueza a favor dos nossos países. Mesmo quando ocorre a atribuição de DES a um país membro, isso traduz-se numa responsabilidade externa de longo prazo. No nosso caso concreto, o RST pode vir a ser uma fonte adicional de acesso a financiamento concessional, apesar do estatuto de país de rendimento médio. Porém, provavelmente, isso terá como condição a adoção de um programa com o FMI. É fundamental que encontremos um novo modelo de crescimento e façamos uma gestão prudente das finanças públicas. Temos de modernizar o sistema de gestão das finanças públicas com vista a aumentar a eficiência das despesas públicas e garantir a transparência na gestão dos recursos públicos”, sublinha o antigo governador do Banco Central.

Já Jonuel Gonçalves considera que “neste momento não há como evitar ser visto na condição de quem pede um favor. Se tivesse sido em 2020 seria visto como parte da solução. Quase todos os nossos governantes ou principais executivos estão mal informados sobre detalhes cruciais do quadro mundial e perdem oportunidades umas atrás das outras. Ou não têm formação para processar a informação”, diz o economista.

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A recuperação está em curso, mas, diz o FMI, as consequências económicas da pandemia global vão acompanhar-nos durante muitos anos. Como resumiu Kristalina Georgieva, directora-geral do FMI: “O mundo precisa aproveitar a oportunidade de construir um futuro melhor. Precisamos adoptar não só políticas que reforcem a recuperação a curto prazo, mas também políticas transformadoras que estabeleçam os alicerces de uma economia mundial mais verde, mais digital e mais inclusiva no amanhã.” 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1046 de 15 de Dezembro de 2021. 

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Autoria:Jorge Montezinho,19 dez 2021 8:25

Editado porSara Almeida  em  18 set 2022 23:28

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