Antes da ruptura provocada pela pandemia, 2020 era para ser um “super ano para a natureza”, e várias conferências climáticas globais deveriam garantir financiamento para desacelerar as mudanças climáticas e proteger a biodiversidade. Em vez disso, o futuro do financiamento ambiental parece cada vez mais incerto – num momento em que mais, em vez de menos, é essencial.
A necessidade de usar o dinheiro que se tinha, e muitas vezes que não se tinha, no combate à crise sanitária mergulhou os países numa segunda crise – a económica, que deixou, principalmente, as nações em desenvolvimento submergidas numa dívida externa galopante. No caso de Cabo Verde, já é precisa toda a riqueza do país e mais metade para conseguir responder aos encargos que atingem mais de 150% do PIB. Por isso mesmo, dizem os peritos que falaram com o Expresso das Ilhas, sentar os credores à mesa e começar as negociações para a reconversão da dívida, deveria ser uma prioridade.
“A seguir à crise da pandemia da COVID-19, o mundo será sacudido por uma outra crise – a crise da dívida pública”, explica o gestor Paulino Dias. “O espaço de negociações será mais limitado (a maior parte dos países – incluindo os credores – está em situação difícil). É importante salvaguardar, contudo, que os benefícios da reconversão da dívida sejam ‘investidos’ em políticas que resultem em crescimento económico sustentável a longo prazo”.
“O país tem de ponderar todas as alternativas possíveis e combinar as acções no plano das negociações multilaterais com as opções de política interna”, diz o economista João Estêvão. “Só uma discussão adequada das alternativas e das inovações que vão surgindo, permite decidir sobre as opções que o país pode escolher. Se pensarmos em termos dos países em desenvolvimento, as conversões não são, necessariamente, a prioridade”.
“Parece-me que qualquer redução do peso da dívida passa por dois mecanismos”, sublinha o economista Jonuel Gonçalves, “moratórias com períodos significativos, durante os quais os países endividados podem investir os montantes relativos à dívida; transformação da dívida em investimento estrangeiro, seja IDE tipo empresarial, seja participação nos programas mundiais de ajuda ao desenvolvimento, seja em programas alargados como as adaptações às mudanças climáticas. A fixação destes princípios implica coordenação entre os nossos países, pois negociar como blocos reforça as propostas e revela atitude de alcance global. Os níveis de coordenação podem ser vários, desde as entidades de integração regional ou formação de grupos específicos, por exemplo, em função de afinidades no relacionamento. Talvez fosse útil esses grupos terem caráter transcontinental”.
Já o economista Victor Fidalgo considera que apesar de nos últimos 30 anos terem sempre havido negociações e reestruturações da dívida de muitos países em desenvolvimento, “isso não trouxe alívio estável e durável às respectivas economias. Por isso, devemos concluir que a dívida não é a causa, mas sim o efeito de um fenómeno que tem outro nome, porque tem outro conteúdo e outros contornos”.
Reconversão da dívida por natureza
No final da década de 1980, a extensa dívida externa e a degradação dos recursos naturais nas nações em desenvolvimento levaram à criação de iniciativas de dívida por natureza que reduziram as obrigações da dívida, permitiram o pagamento em moeda local em vez de moeda forte e geraram fundos para o meio ambiente. Essas iniciativas, chamadas de trocas de dívida por natureza, normalmente envolviam a reestruturação, a redução ou a compra de uma parte da dívida pendente de um país em desenvolvimento, com uma percentagem dos recursos (em moeda local) a ser usada para apoiar programas de conservação dentro do país devedor. A maior parte das transações iniciais envolvia dívidas com bancos comerciais, eram administradas por organizações não governamentais (ONGs) e ficaram conhecidas como transações tripartidas. Outras iniciativas de dívida por natureza envolveram dívida oficial (pública) e foram administradas por governos credores directamente com governos devedores (denominadas transações bilaterais).
As transações de dívida por natureza envolvendo três partes, onde entraram organizações não governamentais como a The Nature Conservancy ou a Conservation International, foram os primeiros acordos de dívida por natureza. Numa troca tripartida, um grupo de conservação (ONG) compra uma dívida em moeda forte (como o dólar) devida a bancos comerciais no mercado secundário ou, em alguns casos, uma dívida pública (oficial) devida a um governo credor a uma taxa de desconto, em seguida, renegocia a obrigação da dívida com o país devedor. A dívida é geralmente vendida novamente ao país devedor por um valor superior ao que foi comprado pela ONG, mas menor do que no mercado secundário. Os recursos gerados com a dívida renegociada, pagos em moeda local, são normalmente colocados num fundo que muitas vezes aloca doações a organizações ambientais locais para projetos de conservação. Nestes casos, o fundo é administrado pela ONG, representantes de grupos ambientais locais e o governo devedor.
Em 1987, a ONG ambiental Conservation International organizou a primeira troca de dívida por natureza do mundo, perdoando uma parte da dívida externa da Bolívia. O acordo cancelou 650.000 dólares da dívida e, em troca, o governo boliviano concordou em reservar 3,7 milhões de hectares de território adjacente à Bacia Amazónica para fins de conservação.
Embora as iniciativas de dívida conduzidas com transações tripartidas sejam numerosas, resultam numa redução menor na dívida total do que as dívidas trocadas sob acordos bilaterais (governo a governo). As transações bilaterais da dívida são conduzidas com fundos oficiais (públicos) diretamente entre os governos credor e devedor. O governo credor determina os critérios de elegibilidade, que geralmente envolvem a existência de certas condições financeiras e políticas no país devedor.
Por exemplo, no caso dos Estados Unidos da América, uma reconversão da dívida obriga os países devedores a cumprirem critérios políticos e macroeconómicos para serem seleccionáveis. Os países elegíveis devem (1) ter um governo eleito democraticamente, (2) não apoiar o terrorismo, (3) não deixar de cooperar com os Estados Unidos no controlo de drogas e (4) não estar envolvido em violações graves dos direitos humanos. De uma perspectiva económica, os países elegíveis devem ter (1) um empréstimo de ajuste estrutural ou sectorial do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) ou da Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA) ou seu equivalente, (2) um acordo macroeconómico com o Fundo Monetário Internacional ou equivalente, e (3) reformas de investimento, evidenciado por um tratado bilateral de investimento com os Estados Unidos, um empréstimo do sector de investimento, ou progresso na implementação de um regime de investimento aberto.
Gana, Madagáscar, Nigéria, Zâmbia e Seychelles são os países africanos que participaram em acordos tripartidos com os Estados Unidos. Em termos de acordos bilaterais, a França trocou dívida por natureza com Egipto, Camarões e Moçambique, a Alemanha com Madagáscar e Moçambique, a Itália com o Egipto, a Noruega com o Egipto e a Nigéria, a Suécia com a Tunísia, a Suíça com a Tanzânia, o Egipto e a Guiné-Bissau e o Reino Unido com a Nigéria e a Tanzânia.
Dívida por natureza em Cabo Verde
Para Paulino Dias, “a questão da proteção ambiental e da adaptação às mudanças climáticas deve ser uma prioridade absoluta para um país frágil como Cabo Verde, sem estar apenas atrelada a operações de financiamento do seu desenvolvimento ou de reconversão de dívida. Dito isto, efetivamente existem actualmente diversos instrumentos financeiros associados à proteção ambiental que penso Cabo Verde deveria estudar com interesse. Por exemplo, o mercado de créditos de carbono. No entanto, estes instrumentos não reúnem consenso, quer quanto aos princípios que lhes estão subjacentes, quer quanto aos processos e instrumentos da sua efetivação, quer ainda quanto aos seus impactos. Assim, é uma questão de se estudar o que existe, avaliar as vantagens e os riscos, internalizar as decisões (e evitar que no-las sejam impostas de fora para dentro) e ter a disciplina e foco necessário para a materialização das escolhas que se fizer neste domínio”.
“Ninguém sabe quanto tempo durará esta crise decorrente da COVID-19 e seus impactos sobre a evolução da dívida pública”, continua o gestor. “Refletindo, contudo, em termos de cenários, diria que num cenário em que a crise pandémica fosse controlada a curto prazo, a recuperação da economia ocorresse num horizonte curto e de forma acelerada e sustentável (reduzindo assim o rácio de dívida pública em relação ao PIB), uma alternativa seria estruturar, preparar e lançar o programa de privatizações, de forma competitiva e não por negociação direta, quando as condições para o efeito estivessem mais favoráveis (em termos de interesse de investidores), usando então parte do dinheiro arrecadado para reduzir a dívida. Isso permitiria, a meu ver, melhor posição negocial do Governo, maior nível de “internalização” das decisões de política relacionadas com as alterações climáticas e proteção da biodiversidade (“desacoplando-as” das negociações de reconversão da dívida em que a posição negocial do Governo tenderia a ser menor), entre outras vantagens”.
“Quer o compromisso de protecção ambiental, quer a conversão da dívida em objectivos de desenvolvimento social (como a Educação) tem já uma longa tradição, nomeadamente, na América Latina”, diz o economista João Estêvão. “A minha ideia é que são mecanismos importantes, mas que não são, necessariamente, mais prioritárias. A questão de fundo que se coloca numa situação de crise como a actual, é a capacidade de interligar o acesso a maior liquidez e a redução da dívida aos objectivos de desenvolvimento de médio e longo prazo. Isto quer dizer que se pode aproveitar a crise actual como uma oportunidade, não só para repensar a agenda de financiamento dos países de rendimento médio (como Cabo Verde), mas também para se alcançar um amplo consenso social e político destinado à aplicação de reformas ambiciosas, capazes de induzir um processo de reconstrução económica sustentável e mais igualitário. Com isso quero que dizer que é prioritário o país (Cabo Verde) construir os consensos necessários para poder definir programas de transformação produtiva, capazes de gerar mais crescimento económico e melhores condições de progresso. E combinando as três vertentes: ampliar o financiamento, reduzir a dívida e transformar o país. Ora, quando falamos de mudança estrutural estamos a falar de decisões de médio e longo prazo, que exigem consensos políticos e sociais e que vão além das visões limitadas de legislatura”.
Segundo Jonuel Gonçalves, “Cabo Verde está numa posição relativamente boa para negociar os dois mecanismos de redução. A sua dívida é muito pesada quanto ao seu PIB, mas à escala mundial é muito pequena. Devemos insistir nisso e sublinhar os destinos do alívio, incluindo os efeitos macroeconómicos dessas novas disponibilidades”.
Já o economista Victor Fidalgo não se mostra muito convencido pela conversão da dívida em dinheiro para o ambiente. “Isso é mais para o Brasil, Indonésia, Filipinas e certos países africanos como o Congo, Gabão, etc., que durante muitos anos, promoveram a destruição de suas florestas, exportando madeira sem transformação, o que tem aberto o caminho à desertificação. Cabo Verde, aparentemente não tem uma situação ambiental catastrófica, pelo que terá pouco a trocar”.
Reestruturação da dívida em 2021
2020 foi o ano em que os governos a nível global começaram a discutir seriamente a importância de incorporar a legislação ambiental nas suas agendas económicas e políticas. Os Estados entendem agora que a recuperação da pandemia oferece uma oportunidade para abordar a justiça ambiental, empregos verdes, iniciativas de conservação e resiliência climática.
Além da actual crise de saúde e da sempre presente crise climática, a pandemia está a colocar uma pressão sem precedentes nas instituições fiscais e orçamentos de todos os países. Segundo os últimos dados, a dívida mundial disparou em 2020, adicionando cerca de 19,5 triliões de dólares aos défices globais.
Os aumentos da dívida nos mercados emergentes foram um pouco menos dramáticos do que nas economias maduras, embora tenham atingido níveis sem precedentes. Em Outubro de 2020, o FMI e o Banco Mundial reuniram-se para a sua cúpula anual de perspectivas fiscais, onde Kristalina Georgieva, directora-geral do FMI, disse que os países de baixo rendimento “entraram nesta crise com níveis de dívida já altos e esse fardo só se tornou mais pesado”.
Os credores reconheceram que é improvável que os compromissos de pagamento da dívida a curto prazo sejam cumpridos, embora não tenham conseguido perdoá-los ou transferir a dívida para financiar medidas de proteção ambiental. Em Maio de 2020, os países do G20 concordaram em estabelecer uma Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI), com o Banco Mundial e o FMI. A iniciativa permitiu que os países em desenvolvimento usassem todos os recursos financeiros para proteger os cidadãos da pandemia, suspendendo o pagamento programado de dívidas aos credores. Desde o início e até Fevereiro de 2021, o DSSI gerou cerca de 5 mil milhões de dólares em fundos de socorro para mais de 40 países.
E há agora outro dado que entra na equação, um credor que opte por assumir o perdão de dívidas e avançar para as trocas de dívida por natureza ganha uma enorme influência, reputação e projecção internacional em termos de soft power [poder suave ou de persuasão], o termo criado em 1990 pelo académico Joseph Nye, que considerou que a persuasão usada em colaborações internacionais e redes de influência pode ter um impacto equivalente à supremacia económica ou militar. Um dos países que já se está a posicionar para liderar este auxílio para que os países consigam atingir a “recuperação verde” é a China. No início deste ano, duas equipas de pesquisa, uma americana a outra chinesa, pediram à China para implementar a “reconversão de dívida” em troca dos esforços das nações em desenvolvimento para aumentar a conservação da natureza, bem como a adaptação e mitigação às alterações climáticas. As equipas concluíram que, ao implementar essas trocas de dívidas, a China poderia não apenas ajudar a aliviar o endividamento em rápida expansão no mundo em desenvolvimento, mas também fornecer financiamento valioso para os países que são vulneráveis às mudanças climáticas e à degradação ambiental.
Seja qual for o futuro, este trará, de certeza, novas parcerias de colaboração. “É fundamental a capacidade de negociação do país”, resume o economista João Estêvão. “É preciso saber ‘convencer’ os parceiros da qualidade do ‘projecto nacional’, do empenho dos actores nacionais, da capacidade de construir os factores de progresso (conhecimentos, competências e qualificações) e da transparência e cumprimentos de regras na acção”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1021 de 23 de Junho de 2021.