“Conheci o SOFA já depois de ser assinado. Isso não é normal”

PorNuno Andrade Ferreira,2 set 2018 9:51

A 21 de Agosto de 2011, Jorge Carlos Fonseca era eleito, à segunda volta, para o Palácio do Plateau. A cumprir o segundo mandato, o Presidente da República recebeu o Expresso das Ilhas e a Rádio Morabeza para uma entrevista em que faz o balanço dos sete anos que leva na presidência e comenta os principais temas da actualidade. Sobre o SOFA, critica a forma como o processo foi conduzido. A propósito da isenção de vistos, recorda que o Governo pode sempre reavaliar as decisões que toma.

Que diferenças substanciais encontra entre os primeiros cinco anos e os últimos dois?
No essencial, as grandes linhas de actuação são as mesmas, até por imposição constitucional, mas há uma diferença política importante, que é o contexto diferente em que exerço as funções. No primeiro mandato, eu era um Presidente eleito seis meses depois da vitória nas legislativas de um partido que não suportou a minha candidatura, o PAICV. Neste momento, exerço funções com um novo Governo e uma maioria diferente, que provém da área política que me apoiou nas duas eleições. Não houve alteração da postura do Presidente, enquanto garante da Constituição, factor de moderação e de equilíbrio, de independência e de isenção em relação aos outros poderes, mas a minha eleição em 2011, creio eu, constituiu um factor que, objectivamente, contribuiu para a construção de um novo ciclo político no país e isso traduziu-se, nomeadamente, nessa nova maioria de governação e reforço da maioria que já existia a nível do poder local.

Mas estabelece uma relação directa entre a sua vitória, em 2011, e a vitória na actual maioria, anos mais tarde?
Objectivamente. Creio que parece quase óbvia. Repare, eu sou eleito em 2011, seis meses depois de uma vitória do PAICV, com maioria absoluta, a terceira maioria absoluta nas eleições legislativas. Sou apoiado por uma força política, o MpD, mas também por muitos segmentos políticos e independentes, e sectores ligados à chamada sociedade civil, e isso implicou, pela primeira vez em Cabo Verde, a eleição de um Presidente que é uma figura independente, que não vem de um partido político, uma pessoa que estava fora da vida partidária desde Fevereiro de 92. Isso traduziu-se, digamos, na potenciação de uma nova dinâmica dos processos democráticos em Cabo Verde. Há um despertar de sectores políticos que pareciam quase receosos, adormecidos. Creio que isso traduziu-se em dinâmicas políticas que se concretizaram numa alternância política, a nível do Governo, e também num reforço muito visível da maioria no poder local.

Há uma outra diferença significativa entre o primeiro mandato e o segundo que é o facto de já não poder ser reeleito.
Eu habituei-me a ver a função presidencial como uma função moderadora. Vou um bocadinho atrás, aos anos 90. Nos primeiros tempos, havia algum ruído sobre o nascimento do MpD e a sua liderança inicial. Havia pessoas que diziam que eu poderia ter sido o líder primeiro do MpD e isso gerou alguns ruídos, que se traduziram, por exemplo, na minha saída do Governo, em 93, e na primeira cisão do MpD. Na altura, quando me confrontavam com isso, eu lembro-me de dizer sempre que o Dr. Carlos Veiga podia estar tranquilo, porque não tinha a ambição de ser Primeiro-Ministro. Dizia que não tinha perfil para ser Primeiro-Ministro e que era mais um homem de equilíbrio, de moderação, de influenciação. De há muitos anos para cá, achei que tinha um perfil político que me dava condições para ser um bom Presidente da República no nosso sistema de Governo, em que o Presidente é, sobretudo, uma figura suprapartidária, equidistante dos partidos políticos, capaz de exercer uma magistratura de influência política e moral sobre o conjunto da sociedade. Fazer aquilo que acho que tenho feito, que é defender a Constituição, alargar a ideia da cultura da Constituição, reforçar a democracia política, económica e social e, pela influenciação sobre a governação, contribuir para um país mais livre, mais democrático, mais próspero, mais justo e mais inclusivo.

Está preocupado em construir um legado?
Nunca fui uma pessoa de grandes programações. Não me programei para ser Presidente, não me tinha programado para ser professor universitário de direito. Quando era jovem, queria formar-me em matemática ou em germânicas e fui fazer direito. Houve tempos em que, como assistente de direito, em Lisboa, quis ser treinador de futebol profissional. Mas o bicho da política tenho-o desde os 16, 17 anos. Gostei sempre da acção política, da acção de influenciação. Fui candidato em 2001, mas de 2001 a 2011 houve um período em que praticamente isso já não estava nas minhas contas. Não tenho essa ideia de deixar um legado. Agora, posso dizer de outra maneira. Restam-me três anos e dois meses como Presidente da República. Depois de deixar o cargo, gostaria de ter um país com mais cultura democrática, com uma democracia mais moderna, um Estado de direito mais sólido, um país com menos desigualdades sociais. Um país mais igual do ponto de vista das regiões e um país a caminhar para um verdadeiro desenvolvimento e não um país de mero rendimento médio.

E acha que isso está a acontecer?
Sim, em termos relativos, sobretudo do ponto de vista daquilo que é o papel de um Presidente da República num sistema como o nosso. Para lá de uma ou outra oscilação, somos considerados a democracia número um em África. Estamos entre as 25 democracias a nível mundial, estamos relativamente bem a nível da liberdade de imprensa, somos um país com forte coesão social e nacional. Cabo Verde cresceu imensamente, sobretudo se pensarmos no país que tínhamos em 74/75. Houve avanços enormes do ponto de vista do acesso à justiça, educação, infra-estruturas portuárias e aeroportuárias, novas tecnologias, progresso político visível, mas nós temos uma sociedade muito escrutinadora, muito crítica, o que é bom. Eu mesmo gosto de ser o portador desta missão e quando dizem que somos a melhor democracia africana, que estamos melhor que o país A, B ou C em África, eu digo que temos é que procurar estar com os melhores. Não precisamos de petróleo ou diamantes para sermos uma democracia mais moderna e mais avançada. Agora, podíamos e devíamos estar bem mais acima de onde estamos do ponto de vista económico, do desenvolvimento social, cultural, político. O país precisa de, rapidamente, dar o salto.

Dizia-me há pouco que quando era assistente de direito, em Lisboa, a dada altura apeteceu-lhe ser treinador de futebol. Enquanto Presidente da República, já lhe apeteceu ser outra coisa?
Eu gosto muito de escrever, faço poesia, leio muita literatura, fui professor, investigador, sou um apaixonado de futebol, gosto da conversa no restaurante ou café e sou Presidente da República. Tenho que articular isto tudo para desempenhar a função, mas consigo, neste ambiente todo, ter muita paixão e muito gosto no exercício da função presidencial, sobretudo quando tenho contactos com as comunidades, nas localidades mais distantes, nos encontros com os jovens, com as mulheres. Sinto-me muito bem, desfazendo completamente a ideia que existia de que sou um intelectual, escritor, um homem de gabinete, que não se dá com as massas. Hoje em dia, às vezes, dizem que sou muito populista, que estar junto das pessoas não deve ser um objectivo em si, que o objectivo é contribuir para o país crescer, desenvolver-se. Portanto, apetece-me fazer outras coisas mas continuo a ser Presidente da República com muito gosto, muita ambição e muita paixão, sobretudo.

Deixe-me reformular a pergunta. Gostava de ser outro Presidente da República, com outros poderes constitucionais?
Não e sim. Podia ser um bom teste para mim, ver-me nas vestes de um Presidente com mais poderes, ver como é que me saía e como é que os cidadãos me veriam. Mas aquilo que lhe disse atrás, que nunca me senti na pele de um possível Primeiro-Ministro no nosso sistema, isso quer dizer que fui sempre um defensor do sistema que temos. Em Cabo Verde, uma coisa que de vez em quando aparece e depois desaparece são uma vozes e uns apetites para se mudar o sistema de Governo. Aqui há uns tempos, o Dr. José Maria Neves falou no sistema de chanceler. Suponho que ninguém defendeu ainda um sistema britânico, mas eu sempre defendi o nosso sistema, com mais ou menos aprimoramentos. A Constituição funciona, as instituições funcionam normalmente e não houve nenhuma crise política relevante. Até hoje não experimentámos nenhuma eleição antecipada, temos tido governos de maiorias absolutas. O nosso sistema é um sistema sofisticado e às vezes leva a certos tipos de incompreensões sobre, nomeadamente, as competências do Presidente, do Governo, o relacionamento entre o Governo e a Presidência da República. Bem aplicado, é um sistema que potencia a democracia e a cultura da Constituição. É um sistema de partilha e de equilíbrio de poderes Já li, já ouvi, por exemplo, “agora o Presidente é que está a governar”, “ele é que está a dirigir a política externa”. Isso resulta de uma incompreensão da natureza desse sistema de Governo semipresidencial que temos em Cabo Verde.

Alguma vez pisou a linha?
Muitas vezes coloco-me a questão de saber onde é a fronteira, mas tenho procurado, no exercício dos meus poderes presidenciais, ir o mais longe possível, até bordejar a fronteira dos poderes do Presidente da República. Eu creio que procurei e tenho conseguido, na minha experiência, em sete anos, extremar o exercício das competências presidenciais no quadro constitucional. Se imaginarmos uma linha divisória entre os poderes do Presidente e os poderes do Governo, creio que muitas vezes estou a bordejar a fronteira.

É quando está nessa fronteira que suscita reacções.
Repare num exemplo. Eu fiz um Conselho da República e tinha temas como a segurança. Isso é normalíssimo, era o que faltava o Presidente da República, havendo uma questão tão importante para o país, tendo um órgão de consulta política, não ouvir os conselheiros ou não convidar personalidades de fora para ouvir opiniões e debater, fazer uma avaliação sobre o estado da segurança do país e opinar sobre as medidas que possam produzir a atenuação, a níveis razoáveis, da insegurança. Num sistema como o nosso, o grande poder que o Presidente tem não é nomear o presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial ou o Procurador-Geral da República, não é o veto político, que é importante, ou a fiscalização preventiva ou sucessiva da Constituição, ou ser Comandante Supremo das Forças Armadas. O poder mais importante é aquilo que tenho chamado de conjunto dos poderes invisíveis mas que estão no quadro constitucional de poderes do Presidente, como o poder de diálogo com os cidadãos, com os jovens, com os empresários, mas também com os partidos políticos. Ouvir, receber e influenciar, sugerir, propor.

Como é que são as suas relações com o Governo?
São boas, como eram boas e normais com o Governo anterior.

Reparei que em relação ao Governo anterior disse que eram boas e normais e que com este são boas.
São normais. Sou estruturalmente independente. Eu candidatei-me e apresentei a minha candidatura sem ter apoio de nenhum partido político, o apoio do MpD veio bem depois e não foi pacífico, foi sujeito a uma votação secreta na sua direcção nacional. Eu lido com Ulisses Correia e Silva, no essencial, da mesma maneira que lidei com José Maria Neves. Em dois anos como Presidente, estando este Governo em funções, já devolvi 15 diplomas dos mais diversos, já mandei três diplomas para fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional. Já exerci dois vetos. Isto, em termos proporcionais, não é diferente do que fiz no Governo de José Maria Neves. Já me pronunciei criticamente quantas vezes? Assim de cabeça, lembro-me que fui das primeiras pessoas que se pronunciou sobre os problemas dos manuais escolares que continham erros, contra o teor dos estatu estatutos dos oficiais de justiça e do pessoal dos registos e notariado, pronunciei-me publicamente quando o Governo estava a negociar ou assinou o acordo SOFA com os EUA e disse que deveria haver, nessas matérias, uma articulação entre Governo e Presidente da República, o que não existiu. Em matérias como o SOFA, no nosso sistema de Governo, há quem defenda uma espécie de assentimento prévio do Presidente para evitar que um Governo assine um acordo, o Parlamento aprove e depois o Presidente não ratifique, o que não é bom. Em termos de credibilidade internacional, pode criar desconfianças.

É isso que vai acontecer em relação ao SOFA?
Isso eu não lhe vou dizer neste momento, porque muito brevemente vou pronunciar-me sobre isto, mas pronunciei-me sobre o processo que conduziu a essa assinatura. Achei e continuo a achar que em matérias como essa tem que haver uma articulação próxima com o Presidente da República, porque ele tem poderes constitucionais nesta matéria.

E isso falhou no caso concreto do SOFA?
Falhou. Pronunciei-me publicamente, o Governo respondeu dizendo que eu tinha a informação toda ou suficiente, eu não quis ripostar, mas naturalmente que eu não tinha informação. Não ia dizer que não tinha, tendo-a. Eu vim conhecer o acordo já depois de ser assinado. Isso não é normal, não é desejável. Tive agora informação que no tempo do Governo de José Maria Neves ele falou-me do acordo, trocou algumas impressões. Portanto, o meu papel de acompanhamento, de crítica, de propor ou de sugerir ao Governo é exercido da mesma maneira agora, como com o Governo de José Maria Neves. Agora, há uma diferença de estilos, não preciso entrar em pormenores, o estilo de exercício de poder de José Maria Neves e de Ulisses Correia e Silva são diferenciáveis, são pessoas diferentes, e também a circunstância do relacionamento pessoal que tenho com o actual Primeiro-Ministro ser diferente daquele que tinha com José Maria Neves.

Diferente para melhor?
É diferente. Dou-lhe exemplos do ponto de vista da política externa. Quando fui eleito, nas primeiras conversas com José Maria Neves, ele propôs-me e eu aceitei um esquema, que ele disse que tinha acertado na coabitação com o anterior Presidente, em que o Presidente da República vai às cimeiras da União Africana, o Presidente e o Primeiro-Ministro alternam nas presenças nas Assembleias Gerais da ONU, o Presidente é que vai à frente na CPLP e o Primeiro-Ministro vai às cimeiras da CEDEAO. Eu tinha, naturalmente, algumas dúvidas sobre se era o melhor sistema mas aceitei perfeitamente. Com o actual Governo, isto não é assim. O Primeiro-Ministro talvez tenha uma noção mais acentuada do papel de representação do Presidente no plano externo e sempre que houver cimeiras, para cada evento, conversamos e acertamos o que é melhor, se deve ir o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro. Em dois anos, o Primeiro-Ministro ainda não foi nenhuma vez a uma cimeira da União Africana. Às vezes insto-o, digo que o Primeiro-Ministro deve ir, até para o conhecerem.

Sabe que a ausência tem sido criticada.
Mas eu percebo-o. Na União Africana, como a esmagadora maioria dos países africanos são países com um sistema presidencial, há uma praxis de funcionamento em torno da figura presidencial. Então isso pode pesar um pouco. O Primeiro-Ministro vai agora a um fórum na China. Vai ele e eu entendi que seria melhor para o país estar o Primeiro-Ministro nesse fórum. A grande gala da Diáspora, foi o próprio Governo a convidar o Presidente da República para presidir, a nível da representação do Estado. Portanto, é uma questão de estilo de exercício, mas a minha postura é igual.

Quero voltar ao acordo militar com os EUA. Que poderes efectivos tem nesta matéria?
A nível das convenções internacionais é o Presidente que ratifica. Às vezes, há alguma confusão na opinião pública, nos media, até deputados, que dizem que o parlamento ratificou acordos. Não, o parlamento aprova. Só depois da ratificação do Presidente da República é que as coisas estão, digamos, perfeitas para o acordo vigorar. Sem isso, o acordo não produz efeitos. A Constituição quis atribuir ao Presidente da República um papel importante e decisivo do ponto de vista da vigência de convenções internacionais. No sistema constitucional de Cabo Verde, na hierarquia das fontes do direito, as convenções internacionais e o direito internacional convencional estão acima das leis. A ratificação é um acto soberano do Presidente da República, é um acto de avaliação política. Assim como o Presidente promulga ou não promulga, ratifica ou não ratifica. São coisas parecidas, com uma pequena diferença: o Presidente não tem prazos para ratificação, mas tem prazos para promulgação.

Deixa-me lá perguntar-lhe outra vez. Já tem uma decisão sobre o SOFA?
Sim. Sou político, por acaso sou jurista, mas ouvi os meus colaboradores, pedi pareceres, até pedi mais pareceres do que o normal. E as opiniões que ouvi não foram todas no mesmo sentido, o que quer dizer que tenho as balizas todas. O que não fiz, posso dizê-lo agora, não pedi fiscalização preventiva da constitucionalidade.

Porquê?
Entendi que não valia a pena.

Não valia a pena porque, do seu ponto de vista, não há inconstitucionalidade ou não valia a pena porque isso não iria influenciar a sua decisão?
O Presidente tem o poder de pedido de fiscalização preventiva quando tem dúvidas sobre a constitucionalidade de normas. Portanto, se não peço a fiscalização preventiva é porque não tenho dúvidas. Dúvidas num sentido ou noutro. Isto é, ou porque entendo que há normas que são inconstitucionais ou porque entendo que não há normas inconstitucionais. O mais cómodo era mandar para o Tribunal Constitucional. Eu assumi com clareza, com firmeza, que não vou pedir a fiscalização preventiva e decido autonomamente se, ponderando tudo, ratifico ou não ratifico.

E vai ratificar ou não ratificar?
Vou fazer uma comunicação explicando a minha posição.

Quando é que vai comunicar essa decisão?
Antes de ir para a Assembleia-Geral das Nações Unidas faço isso, de certeza.

Mas já tem essa decisão tomada?
Sim. A cabeça das pessoas não pára, não é? Evidentemente, tenho sempre espaço de manobra, de reflexão.

Mas, e compreenderá a minha insistência, está mais virado para ratificar ou para não ratificar?
[risos] O que eu lhe disse é que optei por não usar uma via que politicamente era mais cómoda, mais fácil para mim, que era pedir a fiscalização preventiva.

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Outra questão que tem estado na ordem do dia é a Taxa de Segurança Aeroportuária (TSA). O que é que lhe parece? O diploma foi promulgado por si.

Sim, o diploma foi promulgado por mim.

Imaginava que daria origem a esta discussão?
Confesso que não. Agora, repare, não quero aqui polemizar, mas há uma questão prévia: o facto de o Presidente promulgar uma lei não quer dizer que o Presidente esteja de acordo com ela.

É o caso?
Não lhe vou dizer se é o caso. Eu já promulguei dezenas de leis que eu nunca faria, se fosse legislador. Já promulguei diplomas sobre processo penal, que é uma área que conheço relativamente bem, relativamente aos quais tenho desacordos do ponto de vista das opções de política criminal, mas promulgo porque acho que estão no espaço de opção do Governo. O Governo tem legitimidade para governar, tem um programa, portanto, as opções de política criminal são do Governo, não são do Presidente da República. Só quando há divergências de fundo é que eu veto. Em relação à TSA, eu interpretei e interpreto, até pela designação, que é uma fonte de receita para melhorar a segurança aeroportuária. Ponto final. Tive uma dúvida sobre o pagamento da taxa pelos cabo-verdianos, sobretudo por parte de cabo-verdianos que estão fora do país, mas pude expressar essa dúvida em tempo adequado e já li na imprensa alguns esclarecimentos do Governo e fiquei mais tranquilo.

Acha que o Governo, com esta taxa, está a tentar resolver a enrascada em que se meteu quando prometeu que ia acabar com os vistos?
Não lhe posso dizer nem que sim, nem que não. É por isso que lhe disse que a TSA é para promover a segurança aeroportuária. Agora, efectivamente, se você cobra uma taxa, isso implica receitas. Imagino que um ministro das Finanças faça sempre contas, tem o dever de fazer contas, que o Presidente da República não fará.

Depois do debate que aconteceu, é recomendável que o Governo repense a lei ou talvez introduza alterações além daquelas que já disse que vai introduzir?
Sim. Aliás, eu penso que deve ser uma postura normal de um Governo. Um Governo pode sempre reavaliar as decisões que toma. Um outro caso muito polémico, a questão da gestão dos transportes aéreos. Não há encontro com o Pri­meiro-Ministro em que eu não faça perguntas sobre o dossier e digo sempre ao Primeiro­-Ministro que tem que reava­liar sempre. Às vezes, nós to­mamos uma decisão, fazemos um certo tipo de cálculos, de previsões e as coisas não po­dem bater sempre como pre­vimos. Portanto, pode haver recuos e ajustamentos. Mes­mo em matéria legislativa, se for o caso disso, o Governo deve fazê-lo. Mesmo o Presi­dente da República. Às vezes, penso que posso promulgar um diploma, tenho algumas dúvidas mas não são dúvidas sérias e promulgo, mas faço uma reavaliação e acho que não devia ter promulgado.

Faria sentido o Governo reavaliar, por exemplo, a questão da isenção de vis­tos, que se transformou numa grande dor de cabe­ça?

Porque não?

Acharia normal que o Governo recuasse e dis­sesse que não existem condições para que o país avance com a isenção de vistos?

Sim. Eu digo, como princí­pio, que o Governo deve estar disponível, deve ter abertu­ra para, se for o caso, rever a medida legislativa. Aliás, eu, praticamente todas as sema­nas recebo diplomas que pro­cedem à primeira, à segunda alteração do diploma. São reavaliações que se fazem no percurso de uma actividade política.

O Governo tem falhado, por vezes, na forma como comunica as opções polí­ticas que toma?

Como um grande defensor da liberdade de imprensa, é uma área em que ambiciono sempre mais. Entendo que deve haver um esforço cres­cente para que o Governo e as instâncias do poder comu­niquem mais e melhor. Creio que, algumas vezes, medidas não são suficientemente com­preendidas ou compreendidas à primeira porque não são suficientemente explicadas. Eu já disse isso ao Primeiro­-Ministro e a alguns membros do Governo.

Não podemos terminar sem falar da CPLP. O que é que a Guiné Equatorial faz na CPLP?

Procura um espaço de afir­mação e de diálogo, com base em certo tipo de afinidades. É um país que tem uma língua oficial que é o castelhano, é o único caso em África, está na União Africana, está noutras instâncias africanas, é um país que necessita de avanços polí­ticos e, estando na CPLP, tem que, de forma progressiva, sintonizar-se com os funda­mentos e princípios da CPLP, que pretende ser uma comu­nidade de países de democra­cia, estados de direito e esta­dos respeitadores das liberda­des fundamentais. Portanto, ao entrar na CPLP, a Guiné Equatorial tem o compromis­so de cumprir esse caderno de encargos.

O Presidente e o próprio Governo estabeleceram como uma das metas da presidência cabo-ver­diana da CPLP alcançar avanços concretos na questão da mobilidade. O que seria um ganho con­creto, daqui a dois anos?

Por exemplo, conseguirmos um acordo de livre circula­ção, aceite por seis ou sete dos países. Seria um grande avanço. Segunda hipótese: conseguirmos, a nível de to­dos, livre circulação de bens e agentes culturais. Livre circu­lação de agentes económicos. Nós conseguimos aprovar

um documento que fornece soluções gradativas. Demos hipótese de haver adesão de cinco, de seis, de sete ou de oito países a um programa de livre circulação, para que possamos avançar progressi­vamente.

Este é o ano dos 50 anos do Maio de 68 e da inva­são da Checoslováquia. Onde é que estava em 1968?

Na altura da invasão de Che­coslováquia eu tinha 17 anos, tinha iniciado a minha mili­tância no PAIGC. Estava em Coimbra, na Faculdade de Di­reito. A militância política do PAIGC implicava vivências, leituras. A invasão da Checos­lováquia, mas também o Maio de 68, em França, os debates de ideias que provocavam, nomeadamente alguma ero­são em ideários que pareciam coisas indiscutíveis, a ideia da ditadura do proletariado como instrumento para se construir futuros sem classes, os dogmas morais, tudo isso foi posto em causa, sobretudo do ponto de vista daquilo que é rejeição dos modelos esta­linistas. O que sou hoje, do ponto de visto da defesa das liberdades, tem um pouco a ver com isso, com esse debate que houve.

Anos mais tarde, com o fim da Guerra Fria, a que­da do Muro de Berlim, a sociedade das nações pas­sou a privilegiar o mul­tilateralismo, concepção que está agora em causa.

Mesmo em países como Cabo Verde, devemos ter uma pos­tura de apostar no multilate­ralismo. Eu tenho procurado fazer isso, Cabo Verde tem procurado fazer isso. Faço-o agora com mais tranquilidade, como Chefe de Estado. A defe­sa de pequenos Estados, como Cabo Verde, tem a ver com a promoção da democracia, dos direitos fundamentais, dos es­tados constitucionais e a pro­moção do multilateralismo. É por isso que faço em perma­nência o discurso da Consti­tuição e da democracia. Pode parecer uma obsessão, mas é importante.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 874 de 29 de Agosto de 2018.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,2 set 2018 9:51

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 mai 2019 23:22

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