Com essa expressão quer-se provavelmente passar a ideia que, apesar das adversidades vividas das secas, das fomes, do isolamento e da perda de população, o país tem capacidade de absorção de choques externos e de recuperação para um ponto a partir do qual pode continuar a sua trajectória como nação. A história mais recente a partir do século XIX e com enfase em grande parte do século XX mostra perfeitamente isso e deixa perceber como tudo aconteceu.
Momentos particulares de entrosamento do país com a economia global, devido à importância mais ou menos duradoira da sua posição estratégica na navegação marítima e aérea, na pesca ou nas comunicações e ainda à exportação de alguns produtos com valor no mercado da época, trouxeram algum desafogo necessário para essa caminhada. A música, a literatura e a postura cívica e cultural do cabo-verdiano e das suas elites que resultaram daí dão testemunho dessa resiliência. Sobrevivência e afirmação cultural não são, porém, suficientes. É fundamental diminuir as vulnerabilidades e ir além das limitações impostas pela pequenez do país, do seu mercado e dos parcos recursos naturais para se conseguir prosperidade e desenvolvimento. Claramente que viver na dependência da generosidade dos outros não deve ser opção de existência.
Quebrar o círculo vicioso da pobreza não é fácil. Para alguns, deixar de contar só com a ajuda de Portugal no quadro do império colonial para beneficiar da generosidade mais alargada da ajuda internacional depois da independência seria suficiente para se dar o pontapé de saída em direcção ao desenvolvimento. A realidade posterior de mais uma década veio a demonstrar que não é assim. Opções de política incluindo estatização da economia, industrialização na base de substituição de importações e a hostilidade ao turismo e ao investimento directo estrangeiro trabalhavam contra isso. Apesar de algum aumento no rendimento médio das populações e alguma protecção contra choques externos como as secas a tendência era para crescimento anémico e para uma maior dependência das populações em relação ao Estado.
Como se veio a constatar nos anos posteriores, foi só com a liberalização da economia acompanhada de privatizações, de atracção de capital estrangeiro, industrialização para a exportação e abertura para o turismo é que se conseguiu elevar o potencial da economia nacional, criar riqueza e gerar rendimentos para as populações. Mesmo assim não foi suficiente para romper o círculo de pobreza. Ganhos de um momento no quadro de programas de luta contra a pobreza rapidamente cediam lugar a perdas face a qualquer revês ou choque externo como secas e inundações, expondo vulnerabilidades profundas. Também os sinais de avanço nos bons anos não diminuíam significativamente o grau de dependência das pessoas e do sector privado em relação ao Estado e custos de contexto continuavam a pesar sobre a competitividade e a produtividade das empresas e da economia.
A tripla crise da seca, da pandemia e da guerra na Ucrânia veio expor o quanto é que, de facto, não se rompeu com círculos viciosos que reproduzem a pobreza no país. Os avisos já vinham de longe e tornaram-se mais frenéticos em cada etapa desta crise. Mesmo assim foram praticamente ignorados e não é certo que agora estejam realmente a ser escutados. A tendência é para utilizar os recursos disponibilizados em tempos de carestia como sempre se fez e o resultado só pode ser o de aprofundamento da dependência, da perda de autonomia e de uma maior fragilização face a crises futuras. Romper significaria mudar de atitude de forma a fazer de Cabo Verde uma sociedade de aprendizagem e de adaptação com base no conhecimento e estar na disposição de correr risco na identificação e aproveitamento das oportunidades. A inércia institucional e sociopolítica tem-se mostrado difícil de vencer e ideologias prevalecentes que desincentivam o espírito crítico e limitam a capacidade de aprendizagem, prejudicando o processo cumulativo do conhecimento, central para o desenvolvimento do país.
É da maior importância para qualquer país atrair investimento externo que inclua capital, transferência de tecnologia e know how e acesso a mercado. Para os países mais pequenos, menos populosos e insulares como Cabo Verde, e por isso mesmo com fraca poupança interna, mercado doméstico minúsculo e custos acrescidos para o acesso a espaços continentais, é algo vital. Como qualquer opção de política, a atracção de investimento externo via privatização e abertura do capital social de empresas nacionais a capitais estrangeiros ou com incentivos fiscais e outros a investimento directo estrangeiro acarreta riscos próprios de todo e qualquer empreendimento de não ser bem-sucedida ou de ficar aquém dos objectivos pretendidos. O contrário que seria não correr riscos e fechar-se ao mundo como se fez nos tempos idos já se sabe que levaria a um futuro de estagnação ou então a um crescimento anémico.
Naturalmente que os riscos devem ser calculados e que em caso de falhas nas estratégias implementadas se procure averiguar o que correu mal, determinar as responsabilidades e aprender com os erros cometidos. Em todos os países onde se fizeram privatizações, sejam os do Ocidente a partir de 1979 com Margaret Thatcher no Reino Unido sejam os países comunistas no pós queda do Muro de Berlim, raros são os casos que com o olhar de hoje se pode dizer que o processo foi perfeito ou que não se cometeram erros. Também em Cabo Verde se privatizou primeiro para se fazer a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado e depois para modernizar e inserir o país na economia mundial.
Certamente entre os ires e vires nas orientações dos diferentes governos de Cabo Verde, para além dos casos de sucesso, evidente para todos, houve outros casos em que se cometeram erros e depois levaram a verdadeiras renacionalizações como foi o caso da Electra na primeira década deste século e agora da TACV. Do processo da Electra conduzido pelo governo do Paicv e altamente politizado ainda se está a pagar a rescisão do acordo com a EDP em tarifas elevadíssimas de energia, em investimentos não realizados e no atraso na implementação de uma política energética que melhor preparasse o país para a actual e futuras crises devido à transição energética. Do processo da TACV em pleno governo do MpD e também altamente politizado os custos não vão se resumir ao anunciado 1,46 milhões de dólares que resultou do acordo assinado com o grupo Icelandair. A distorção dos preços de transporte aéreo de Cabo Verde tanto doméstico como internacional ainda vai continuar por muito tempo e com reflexos negativos na economia do país e na sua atractividade para viagens, turismo e negócios.
A destruição de valor resultando de negligências, omissões e politização excessiva da gestão da transportadora de há muito que vem acontecendo. Aliás, as várias tentativas de privatização tiveram com um dos objectivos pôr fim a esse sugar aparentemente interminável de recursos públicos. Até agora sem sucesso porque em meio de grande volatilidade política não se consegue extrair lições de erros e abordagens anteriores, nem se tem a ousadia de realisticamente dimensionar a empresa para o papel que eventualmente poderá ter no quadro de uma política nacional de transportes aéreos. Há gente que com esses infortúnios na gestão de parcerias externas queira agitar o espantalho do risco na ligação com a economia mundial. Mas sem riscos não se constrói o futuro.
É preciso deixar claro que para Cabo Verde romper com o círculo de pobreza e diminuir a dependência externa tem que ir para além da resiliência e correr riscos para poder prosperar. As falhas na TACV não devem ser impedimento para que com mais sabedoria se avance com iniciativas de grande alcance como a concessão dos aeroportos. Quem ousa ganha.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de