As eleições tinham assegurado uma maioria absoluta ao MpD que, apesar de menos folgada do que na legislatura anterior, era suficiente para garantir a estabilidade da governação do país. Augurava-se então que, não obstante os problemas sem precedentes criados pela pandemia, num certo sentido e por algum tempo o exercício do mandato seria mais tranquilo, porque menos pressionado por eleições próximas. Infelizmente não é o que se veio a verificar e as razões não têm a ver somente com o aparecimento da variante Ómicron e seu impacto na retoma da economia e com os efeitos de tensões geopolíticas que depois levaram à guerra na Ucrânia.
Logo na sessão inicial e no processo de eleição do presidente e dos outros membros da Mesa da Assembleia Nacional ficou evidente para toda a gente que afinal a maioria saída das eleições não estava tão sólida como seria de esperar. A não aprovação do primeiro candidato a vice-presidente apresentado pelo grupo parlamentar maioritário deixou claro as fracturas internas no seu seio. Semanas depois, na discussão da moção de confiança ao governo era palpável o desconforto perante a possibilidade de não se ter a maioria absoluta necessária para a aprovar. O apoio explícito dos deputados da UCID à moção logo no início da sessão parlamentar ajudou a dissipar as dúvidas, mas a fragilidade da maioria ficou exposta e dificilmente seria recuperada. Aliás, incidentes posteriores como por exemplo na aprovação do Orçamento do Estado vieram demostrar que feridas internas não tinham sido saradas.
Com isso o espaço político que a relegitimação do poder nas urnas teria criado para o governo e a sua maioria e que lhes deveria permitir mais iniciativa, influência e capacidade de congregar vontades rapidamente se esvaziou. Cedeu lugar ao ambiente de crispação e de guerrilha política que existia antes das eleições, como se, para a minoria, a maioria que saiu das urnas não se concretizou. Já para as pessoas que se engajaram de uma forma ou outra nas eleições a crispação renovada foi mais um motivo de frustração porque é como se o seu voto não tivesse servido nem para mudar a postura dos actores políticos. Alguns deles continuavam a comportar-se como se não tivessem ganho e outros como se não tivessem perdido.
A realização das eleições presidenciais seis meses depois não foi muito propício a que se diminuísse o grau de crispação política que logo após as legislativas tinha voltado a instalar-se. Pelo contrário as fracturas reveladas da maioria constituíram incentivo para transformar as eleições presidenciais em mais um embate partidário. A vitória do candidato presidencial originário de quadrantes políticos da oposição acabou por enfraquecer ainda mais a dimensão da vitória nas legislativas e com ela a imagem do governo. As aparentes fragilidades demonstradas na relação com o novo presidente da república também não ajudaram. Se se acrescentar a tudo isso a incapacidade ou falta de vontade em reforçar a unidade e melhorar a prestação da maioria parlamentar e também de ajustar a estrutura governativa às exigências de um mundo a braços com desafios múltiplos, não é de estranhar que o maior partido da oposição mesmo à distância de vários anos das próximas eleições esteja a sinalizar para a sociedade que se prepara para regressar ao poder.
Como na generalidade dos países também em Cabo Verde a crise da democracia é fundamentalmente uma crise de representação e o seu epicentro é o parlamento. Com discursos antipartido e antielitistas quer-se fazer as pessoas acreditar que não são escutadas, nem os seus interesses tidos em consideração e que a solução é seguir cegamente líderes que primam pela autenticidade e ligação às pessoas. Após as eleições legislativas de 2016 a crise claramente que se aprofundou com o populismo e com o pessoalismo na política a dominar na actuação dos partidos. O fenómeno não apenas cabo-verdiano como se vê na eleição de Trump nos EUA, de Bolsonaro no Brasil e da ascensão de populistas na Itália, Hungria, Espanha e outros países europeus. A verdade é que com tudo isso a qualidade do trabalho parlamentar caiu muito comparativamente, dando mais argumentos aos costumeiros inimigos da democracia e do pluralismo. A par disso oferece-se oportunidade de questionar a utilidade do parlamento e de, a exemplo do que se passa nos países com líderes populistas, descredibilizar as instituições tomando como alvos preferenciais o parlamento, o sistema judicial e os médias.
De alguma forma algo mais consciente do desgaste provocado nas instituições e nos partidos políticos já se nota nas tentativas de inflectir o sentido das tendências actuais. No Paicv, na sequência da derrota nas legislativas, elegeu-se um novo líder com um claro mandato para reunir tendências, gerações e experiências para melhor se apresentar como alternativa credível nas eleições de 2026. No MpD, a revelar problemas internos por resolver, há, com o partido no governo, um caso possivelmente inédito, exceptuando nos sistemas parlamentares do tipo inglês, de uma possível disputa da liderança a meio do mandato. Combater as derivas populistas no interior dos partidos, porém não é suficiente. Há que fazer o parlamento exercer as suas competências em particular em relação a outros órgãos de soberania como foi o caso de reavaliação do veto do presidente da república e de eleição no tempo certo de órgãos externos da assembleia nacional para não se estar na situação de ter órgãos com mandatos terminados há quase um ano.
A credibilização do parlamento passa por se ultrapassar a imagem de crispação política existente e mostrar que é possível o exercício do contraditório sem que isso conduza ao bloqueio e à impossibilidade de negociar, construir consensos e firmar acordos em boa fé. Isso é essencial para a estabilidade governativa do país e para se ter de facto uma real fiscalização dos actos da governação. Também é importante para mostrar que ao funcionar com discurso aberto e com contraditório, dados transparentes e com foco no interesse público esta-se a evitar que verdades alternativas, teorias de conspiração e outras distorções da realidade ganhem proeminência na sociedade. Nesse aspecto foi uma falha lamentável na sessão da semana deixar passar a oportunidade de reparar imediatamente o chamado “erro material” detectado no código penal que deixou alguns crimes de corrupção passiva e activa e tráfico de influência com prazos de prescrição baixos. De acordo com a declaração de voto do Paicv a vontade unanimemente expressa do legislador na plenária e em sede da comissão especializada era precisamente no sentido contrário e para elevar para prazos máximos a prescrição desses crimes.
A iniciar um segundo ano de mandato é de toda a importância que a Assembleia Nacional assuma as suas funções como pilar fundamental do sistema de governo e contribua efectivamente para o cumprimento do princípio da separação e a interdependência dos órgãos de soberania. Enquanto órgão de soberania que representa todos os cidadãos na pluralidade das suas opiniões e na diversidade dos seus interesses deve agir decisivamente para se prosseguir com o jogo democrático, a única via para se encontrar soluções para os problemas de hoje e se construir o amanhã sem que a liberdade e a dignidade de todos sejam sacrificadas. O primeiro ano foi em certos aspectos algo atípico. Que o segundo que agora começa se reja pela normalidade democratica para que todos sejam ganhadores.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.