As próximas eleições autárquicas deverão realizar-se daqui a 15 meses no último trimestre de 2024, mas as preparações para a pré-campanha já estão em andamento. Ainda não se passaram dois anos que terminou o último ciclo eleitoral com as eleições presidenciais de Outubro de 2021 e o país já se mobiliza para embates político-partidários focados na alternância nos órgãos autárquicos e no governo.
O problema com esse antecipar da luta pelo poder é a tendência geral para se extremar posições e diminuir as possibilidades de negociações, compromissos e acordos. Com isso fica difícil chegar a consensos sobre questões fundamentais e fazer as reformas urgentes de adaptação ao mundo precisamente quando este está a sofrer convulsões geopolíticas de grande envergadura postas em marcha pela invasão da Ucrânia. E, em simultâneo, alterações profundas, movidas pela rivalidade estratégica entre os Estados Unidos da América e a China, notam-se no mapa das relações económicas no mundo, à medida que países assumem novos papéis e novas vocações e se reconstituem cadeias de valor e redes de abastecimento ao nível global.
Já se tinham desperdiçados os anos de crises múltiplas (secas sucessivas, covid-19, a alta inflação sobre o preço dos combustíveis e dos produtos alimentares e a guerra na Ucrânia) para se repensar o país e criar vontade necessária para o posicionar no mundo actual que claramente se anunciava mais complexo e exigente. A acalmia pós-ciclo eleitoral 2020/21 não serviu para ensaiar uma mudança de atitude porque continuou-se fiel ao que se convencionou como fazer política em Cabo Verde que é de manter o país em permanente campanha eleitoral. A polarização que daí resulta, acompanhada da crispação constante entre as forças políticas e entre as câmaras municipais e o governo não deixa muito espaço para a sociedade participar sem que seja tolhida na sua autonomia e os indivíduos intervirem sem serem rotulados e identificados como partes na luta política em curso.
O resultado é que só se vê e se ouve falar é de visitas incessantes de governantes, de deputados, de presidentes de câmara e dirigentes locais e nacionais dos partidos políticos por todos os pontos do país. Também se concentra nas queixas de abandono, de discriminação e não cumprimento de promessas eleitorais. Não faltam ainda acusações e suspeições de corrupção dirigidas a instituições e personalidades ao nível local e governamental e manifestações de frustração e mesmo de ressentimento vindas das populações e das organizações da sociedade civil. O nível de ruído na esfera pública, amplificado pela comunicação social e cada vez mais ainda pelas redes sociais, acaba por inviabilizar qualquer possibilidade de diálogo que se podia ter em relação ao futuro na actual conjuntura mundial em que mudanças estruturais se anunciam, algumas facilidades desapareceram, desafios vários se colocam, incertezas são muitas e não faltam imprevistos.
Os temas são recorrentes, mas como se pode constatar nas últimas semanas, actualmente incidem sobre os transportes marítimos, aéreos, segurança e criminalidade e o sistema de saúde. Seja qual for a matéria da qual se supõe que num dado momento se pode extrair maior capital político ou servir de arma de arremesso, a verdade é que não há debate sério. Há mais pose e postura política e também oportunidade de expor o adversário político. Não há o aprofundar de questões, desde logo para não afrontar interesses instalados, corporativos ou outros, e em muitos casos nota-se uma espécie de cumplicidade cruzada em não trazer elementos que podiam clarificar a situação e até mesmo resolvê-la, ou ultrapassá-la. O problema é que muitas vezes pôr as coisas na devida perspectiva e sem receio de revelar todas as suas componentes retiraria razões para se manter a crispação que afinal todos têm interesse em perpetuar.
Assiste-se repetidamente a confrontos que não acontecem porque se está a bater por uma ideia ou por um objectivo. É mais para saber quem está de um lado e quem pode ser apontado como adversário ou até como inimigo. A necessidade de afirmação ideológica e/ou identitária e de expor o outro sobrepõe-se a um eventual interesse em resolver uma questão ou mesmo de se criar uma oportunidade para a demonstração de convergência numa questão vital para a comunidade ou para o país. Chegado a esse ponto, a política deixa de ser a forma privilegiada para se identificar, equacionar e encontrar as melhores soluções para os problemas da sociedade para se tornar um simples jogo de conquistar o poder de um grupo.
Segue-se naturalmente a descredibilização da política, das instituições democráticas e dos partidos que cada vez mais são tidos como organizações onde o ideal de servir o país conjugado com uma visão e um projecto político foi substituído pela ambição pura de poder. O espectáculo das lutas intrapartidárias ao longo das quais se nota crescentemente a importância das demonstrações de submissão ao líder em detrimento de quaisquer outros critérios, designadamente de competência, é desanimador. Se uma organização partidária não consegue reunir no seu seio os melhores para pensar o país, para desenvolver estratégias de intervenção e para agir com competência política na sua implementação, um impasse no desenvolvimento pode instalar-se. Mesmo que haja possibilidade de alternância no governo, pode não existir alternativas políticas reais capazes de corrigir erros e mudar o rumo do país.
A pobreza do debate político a que se assiste todos os dias e em que se substituem argumentos válidos, esclarecedores e construtivos por propaganda e ataques virulentos dirigidos aos adversários indicia bem o estado dos partidos que nos seus congressos e convenções já não discutem ideias \e estratégias. Ficam simplesmente pela proclamação do Chefe. Nestas circunstâncias abrir a “temporada” para o novo ciclo eleitoral significa apenas que o processo para cada um se colocar em melhor posição no novo ciclo vai acelerar. Entretanto, qualquer discussão séria sobre o futuro do país será adiada.
Num livro recentemente publicado “Fim dos tempos: elites, contra-elites e o caminho para a desintegração política” o antropólogo Peter Turchin diz que historicamente de entre todas as causas de crise política grave nas sociedades humanas destaca-se em primeiro lugar a que conjuga o empobrecimento das populações com o número reduzido de posições de elite em relação ao número dos que aspiram a chegar ao poder. A luta virulenta que se instala para a conquista desses lugares pode ser devastadora. Para a evitar há que honesta e realisticamente pensar e servir o país de modo a criar riqueza que permita reverter o empobrecimento e criar oportunidades outras, que não exclusivamente cargos políticos, para os que aspiram a notabilizar-se na sociedade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.