Por outro lado, a opção verbalizada pelo próximo presidente dos EUA, Donald Trump, de prosseguir com políticas de protecionismo económico, via tarifas, de reformular a relação com os aliados sob ameaça de desengajamento e de não ser o “farol” do mundo na defesa dos direitos humanos e da democracia liberal, abre caminho para um mundo multipolar. A partir daí, ter-se-á de lidar com as dificuldades de conciliação de interesses entre os países emergentes como a Índia, o Brasil e a Rússia e os países mais desenvolvidos, além do enfraquecimento do multilateralismo no sistema económico global, com prejuízo directo para os países menos desenvolvidos, particularmente da África. Com as incertezas, às quais podem vir a juntar-se imprevistos vários, o ano de 2025 já se anuncia como um mar revolto que não vai tornar fácil atingir os objectivos preconizados pelos mais optimistas.
Em Cabo Verde, à semelhança do que aconteceu em várias outras democracias, houve eleições que, apesar de terem natureza autárquica, não deixaram de mostrar algum sentimento anti-incumbente. Em 2024, realizaram-se eleições em mais de 60 países e, na generalidade, os resultados não favoreceram quem governava. Uma outra tendência visível em vários casos foi a deriva iliberal, que sacrifica direitos fundamentais, e a deriva autocrática, que enfraquece as instituições, hostiliza a oposição e limita a possibilidade de alternativa política futura. Especialmente preocupante, em vários casos, foi o recurso a políticas identitárias e à mobilização de emoções com base no medo, no ressentimento e na xenofobia. A ascensão de forças políticas suportando-se no etnonacionalismo, na nostalgia da grandeza do passado e no combate às migrações revela o sucesso da política feita nessa base. Daí, igualmente, a tentação de imitação que se verifica não só nos partidos chamados de direita radical ou de extrema-direita como também noutros partidos ditos de esquerda, transvestidos de roupagem nacionalista e identitária.
O ambiente sócio-político nas democracias, marcado pela progressiva descredibilização das instituições, tem favorecido esse extremar de posições em todas as matérias, não deixando espaço para o diálogo, para o compromisso e mesmo para o exercício do bom senso na avaliação das situações. Em Cabo Verde, assistiu-se, em primeira mão, ao longo do ano de 2024, ao exacerbar da conflitualidade social com anúncios frequentes de greves em vários sectores, particularmente nos ligados ao Estado. Também foi notório o recrudescer da tensão política entre os órgãos de soberania, com os seus titulares a protagonizar, por acção ou omissão, os vários episódios, que acabaram por contribuir para uma acelerada perda de confiança nas instituições. Nem os órgãos do poder judicial ficaram incólumes neste processo, sendo às vezes alvos de ataques directos e outras vezes chamados pelos actores políticos a agir ou a se pronunciarem em situações que podiam configurar judicialização da política ou politização da justiça. Não estranha que a queda de confiança fosse tão pronunciada como se constatou nas sondagens da Afrosondagem.
Para a derrota do MpD nas eleições autárquicas, certamente que terá contribuído o ambiente de tensões sócio-políticas que atingiram o rubro nos meses que as antecederam. Essa derrota é também reveladora dos limites de uma acção governativa que faz da sua bandeira a construção do “maior Estado social de sempre”, quando o país não tem hoje os recursos para distribuir a todos, nem o nível de produtividade e de competitividade da economia que possa assegurar a sua sustentabilidade futura. É evidente que a insatisfação perante a realidade vivida não deixaria de se manifestar no primeiro pleito eleitoral a ser realizado, como veio a acontecer. Algum equívoco na leitura dos resultados poderá, entretanto, surgir se as eleições autárquicas forem tomadas como determinantes das eleições legislativas, em vez de servirem de matéria de reflexão sobre a democracia, sobre a qualidade das políticas governamentais e sua eficácia, e sobre a adequação e justeza das políticas municipais.
E o problema é precisamente esse e começa a desenhar-se. O governo, por omissão, falta de pronunciamento e ousadia, corre o risco de projectar uma imagem de derrotado por antecipação. O primeiro-ministro, na mensagem de Natal, prometeu o que configura ser “mais do mesmo” quando provavelmente não vai ser tomado como suficiente. Do lado do maior partido de oposição, poderá estar a manifestar-se a euforia que advém da possibilidade, se não certeza, da conquista do poder. Estando as eleições a uma distância de cerca de 14 meses, a questão que se coloca é o que, nesse intervalo, se vai assistir.
Irá prosseguir a perda de confiança nas instituições porque os actores políticos vão manter a mesma postura, agora exacerbada pela proximidade de uma eventual tomada de poder? Nas autarquias, com os seus órgãos renovados, a prioridade será a procura de soluções para os problemas do município e dos munícipes ou o foco vai ser colocado na instrumentalização do poder e dos recursos municipais para vencer as legislativas? Na administração pública a perspectiva de mudança na liderança do Estado não irá reduzir a eficácia do Estado, com mais conflitualidade laboral, movimentação do pessoal e menos produtividade? As comemorações dos 50 anos de independência, em 2025, vão servir para unir a nação na consciência de um destino comum enquanto comunidade de cidadãos livres e iguais, ou vão ser mais uma oportunidade, à semelhança do que aconteceu durante o ano de 2024, sob o patrocínio do presidente da república, para a exaltação de dirigentes partidários que submeteram os cabo-verdianos e o país a 15 anos de ditadura?
Parece que há consenso geral que a estabilidade política e governativa é um dos grandes activos de Cabo Verde. Um factor importante de estabilidade é o cumprimento efectivo dos mandatos. E um dos pressupostos para isso é não se viver em campanha eleitoral a todo o tempo: razão por que estão claramente definidos os períodos eleitorais. O governo deve ser o primeiro a respeitar isso e o mesmo se aplica à oposição e aos órgãos do poder político nas autarquias. Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de estar em permanente campanha eleitoral. Muito menos quando há a sensação de perda de confiança nas instituições democráticas e a percepção de que o país não está a responder às expectativas dos cidadãos.
O actual momento no mundo é particularmente complexo e complicado demais para o país se deixar distrair em lutas pelo poder fora do tempo eleitoral. Quando questões preocupantes e realidades novas deverão ser esperadas, é fundamental que haja condições para que sejam encaradas com serenidade e ousadia, beneficiando do contraditório num quadro plural. Para que o ano de 2025 traga esperança, há que exigir responsabilidade dos governantes e de todos os actores políticos para reforçar o espírito de solidariedade e de união, a fim de enfrentar os tempos incertos e, provavelmente, difíceis, que aí vêm.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.