Mas esta globalização proporciona uma distribuição desigual do valor acrescentado (Global Value Chain) entre as partes integrantes do processo (Ásia, América, Europa e África). Essa distribuição desigual do Valor Acrescentado (VA) encontra explicação na teoria do comércio internacional. A especialização que aconteceu nos finais dos anos oitenta e início de noventa, tem por base o teorema de Heckscher e Ohlin (H.O)¹- teoria das Vantagens comparativas.
Se olharmos com olhos de ver, o continente Africano fica com a parte da extração das matérias-primas (praticamente sem nenhum Valor Acrescentado), Ásia e Europa de Leste com produção de peças e bugigangas (com algum Valor Acrescentado) e América do Norte e Europa Ocidental ficam com a parte maior do processo de criação de valor – que são a criação (que resulta de I&D), a montagem, a venda e o marketing. Por isso são ricas! Alguém disse, e com razão, que o computador DELL é tudo menos americano. A criação, ela é na maioria das vezes americana, mas a matéria-prima é quase sempre Africana e as peças são fabricadas na Ásia e Europa de Leste. África fica com a parte menor no processo de criação de valor, ou seja, da cadeia de valor – a extração da matéria-prima. A Ásia fica com uma parte maior do VA relativamente à África, mas, mesmo assim, bem inferior quando comparada com os EUA ou Europa Ocidental.
Os EUA, que montam o computador, elaboram o marketing, vendem o produto, são quem fica com a maior fatia no processo de criação da cadeia de valor.
Essa ligação comercial entre África, Ásia e América, quase que se tornou natural.
Ora, sendo assim, Europa Ocidental e a América do Norte têm vantagens comparativas nos bens intensivos em capital e a Ásia em bens intensivos em mão-de-obra.
A China é um país abundante em mão-de-obra, por isso só ganha no comércio internacional se se espacializar na produção de bens intensivos em trabalho. É exatamente isso que a China faz, embora hoje com algumas nuances: produz roupas, sapatos e peças (que depois seguem para os EUA para montagem de computadores, telemóveis, carros, etc.). É o facto de a China conseguir produzir esses bens intensivos em trabalho mais barato que também explica a deslocalização das fábricas dos EUA para a China nos finais dos anos oitenta e início dos anos noventa. Por isso, muitas fábricas fecharam as portas nos EUA durante esse período e muitos cabo-verdianos perderam emprego nas terras do “Tio Sam”. Não só os cabo-verdianos perderam empregos, também os americanos. A classe social designada de “Redneck” (classe operária nos EUA), votantes maioritários de Trump, também sofreram com o fenómeno da deslocalização da produção para a Ásia. Trump prometeu-lhes trazer de novo os seus empregos nas fábricas, fazendo a América grande outra vez. Mas fazer a América grande outra vez, com reabertura de fábricas, é uma falácia.
Na produção de bens intensivos em mão-de-obra, a América não tem como competir com a China. Basta comparar o custo da hora de trabalho na China com o custo nos EUA. As vantagens comparativas estão claramente do lado da China. Além disso, a produção de bens intensivos em trabalho, como é o caso da produção que ocorre nessas fábricas que encerraram as portas nos EUA, tem menor valor acrescentado no processo de criação de valor quando comparado com as fases da criação e marketing dominadas pelos EUA. Portanto do meu ponto de vista, não faz sentido pensar que a reabertura das fábricas tornaria a América grande outra vez.
A América economicamente é o maior. Se quer continuar a sê-lo, Trump tem de continuar a apoiar a I&D/Universidades, e garantir o sistema de visto diferenciado que leva para os EUA grandes investigadores.
Infelizmente, a imposição de uma taxa alfandegária elevada aos produtos provenientes da China tem esta finalidade – abrir novamente as fábricas nos EUA e dar empregos aos “Rednecks”, votantes de Trump. Politicamente (ganhar votos) esta medida pode ser sustentada facilmente, mas economicamente precisa-se de algum aprofundamento/esmiuçar. Economicamente a justificação tem a ver com a redução do défice da Balança Comercial, que do meu ponto de vista não devia ter importância para um país como os EUA, que tem a moeda mais poderosa do mundo e aceite em qualquer canto do globo. Outros efeitos benéficos para a economia americana: o preço da importação diminui e a receita proveniente das taxas alfandegárias aumentará brutalmente. Do meu ponto de vista, o motivo político e razões outras explicam essa pesada taxa alfandegária imposta sobre os produtos provenientes da China. Um duro golpe foi imposto à China, que tem uma economia fortemente ligada aos EUA e por isso uma elasticidade oferta-preço muito rígida.
Mas os EUA estão conscientes que infligiram um duro golpe à China e que os EUA a longo prazo irão ganhar com isso, apesar de a curto termo os EUA terão de se conformar com uma inflação alta e uma pequena recessão. Os EUA irão ganhar, não porque as fábricas irão reabrir nos EUA, mas sim porque os preços dos produtos importados da China irão diminuir. Além disso, o governo Americano arrecadará grandes somas em impostos aduaneiros. Ainda, lembrar que a elasticidade oferta-preço da China no comércio com os EUA é rígida, devido à relação de complementaridade que existe entre as duas economias (lembram-se das peças?!).
Não é de agora que um presidente Americano tenta intervir nessa relação económica construída desde os finais dos anos oitenta, diria quase que natural entre a China e os EUA. O presidente Obama descolocou-se à China para negociar a taxa de câmbio dólar-yen, este artificialmente desvalorizado e extremamente prejudicial para a Balança Comercial Americana. Mas infelizmente, a deslocação do Presidente Obama à China foi infrutífera. A partir daí, começaram a aparecer aumentos de taxas sobre os produtos chineses. Biden não parou com esses aumentos e Trump fê-las disparar. Esses três últimos presidentes americanos, cada um com a sua razão, têm adotado políticas comerciais protecionistas quando o interlocutor é a China. Creio que o único que corre o risco de ter sucesso é Trump, apesar da inflação e uma pequena recessão, que os americanos terão de suportar por agora.
Então vamos ver, graficamente, os ganhos que os EUA irão obter com a imposição dessa pesada tarifa à China. As fábricas, como é pretensão de Trump e dos seus conselheiros, não irão reabrir as portas, porque a China continuará a ter vantagens comparativas na produção de bens intensivos em trabalho.
Fossem os EUA uma pequena economia, a imposição dessas taxas iria ser absorvida completamente pelos consumidores americanos em forma de inflação e os produtores americanos iriam substituir os produtores Chineses:
Figura 1
P = Preço
Q = Quantidade
Sn - oferta nacional americana
Dn - procura nos EUA
Caso os EUA fossem uma pequena economia, teriam de aceitar o preço imposto internacionalmente – seriam um “price taker”. Vamos supor que o preço internacional é 1 unidade monetária, ou seja, PT=1. Vamos supor ainda que, ao nível interno, os EUA resolveram impor uma taxa de 0,4 unidades monetárias (u.m.) sobre o produto importado. Isto quer dizer que o preço interno nos EUA passaria a ser 1,4 u.m. Neste caso, os consumidores americanos seriam obrigados a pagar 1,4 u.m. por esse produto. Quanto aos produtores americanos, teriam espaço de manobra para aumentarem o preço interno até perto de1,4 u.m. Ao mesmo tempo, os produtores americanos iriam substituir parte da importação por produção interna. Os únicos perdedores seriam os consumidores americanos, que além de pagarem um preço superior pelo bem, seriam obrigados a reduzir a sua procura. Na sequência, a importação americana também reduziria. Em suma, os produtores americanos sairiam a ganhar, os consumidores americanos a perder, e o Estado americano a arrecadar mais receitas.
Mas acontece que os EUA são uma grande economia, ou seja, não é um “price taker” no comércio internacional. Antes pelo contrário, os EUA são um “price maker”.
Sendo assim, quando impõe uma taxa aduaneira alta, inflige um duro golpe a quem exporta para os EUA, uma vez que faz baixar o preço da importação e ao mesmo tempo aumenta a receita fiscal americana por esta via. E quanto mais rígida for a elasticidade da oferta no preço do país de onde importa, maior é a receita fiscal e menor é o preço da importação.
Figura 2
Como disse anteriormente, os EUA, sendo um grande país, numa situação mais próxima da realidade, consegue alterar o preço internacional.
Vamos supor que o preço antes da imposição de uma taxa aduaneira do tipo ad valorem, era de 1, 5 u.m., situação de equilíbrio. Com a imposição de uma taxa aduaneira, a curva da oferta desloca-se para a esquerda, para S`. Há uma redução da oferta. Como se pode ver no gráfico, o novo preço que se paga pelo produto no mercado agora é 2 u.m. Mas atenção, o preço que recebem os produtores/exportadores para os EUA agora não seria 1,5 u.m. O preço recebido agora por quem exporta para os EUA seria 1,1 u.m. (valor casual). Atenção que este preço que os exportadores para os EUA recebem é tanto menor quanto mais rígida for a elasticidade oferta-preço. Não esqueçamos que esta elasticidade oferta-preço da China para os EUA é extremamente rígida, devido à ligação económica que existe entre as duas economias. Apenas lembrar que, como disse no início, é a China que produz praticamente todas as peças (de mão-de-obra intensiva) que depois são montadas nos EUA. As fábricas, para lembrar mais uma vez, só se deslocalizaram para a China devido às vantagens comparativas que a China tem quase que naturalmente na produção de bens intensivos em mão-de-obra.
Moral da história, os chineses irão receber pelas suas exportações, um valor bem inferior do que recebiam antes da imposição da taxa, a produção mundial irá diminuir de QE para QE`, a receita fiscal americana também irá aumentar e teremos uma perda de bem-estar global dada pela área
Os americanos, assim como os outros consumidores, irão pagar um preço superior, resultado da redução da oferta causada pela imposição/aumento da taxa aduaneira.
A globalização forjou as coisas de tal forma que a China não vive sem os Estados Unidos e esses poderão viver sem a China. Existem, para além da China, outros países que poderão vir a fornecer essas peças de mão-de-obra intensiva, a um bom preço. Portanto, a China, infelizmente, terá de ceder e negociar as taxas, sob pena de perder grandemente. A maior parte da sua economia está formatada para servir à América e só à América. Quem aconselhou Trump a tomar essas medidas, sabe disso. E sabe mais. Que quem detém a maior reserva de dólar americano são os chineses. Tudo por causa do comércio entre os dois países.
Lembrar que as peças para indústrias da Europa Ocidental dependem pouco da China. Na sua maioria provêm da Europa de Leste e do Sul, onde a mão-de-obra também é barata. De todas as formas, a Europa já começou a piscar o olho à China.
- H.O: Um país terá vantagens comparativas no comércio se especializar-se na produção do bem que utiliza intensivamente o fator mais abundante.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.