Sobre leitura de Dados Macroeconómicos

PorPaulino Dias,4 jul 2025 7:16

Paulino Dias, Economista
Paulino Dias, Economista

- Duas regrinhas ao amigo Gilson Pina –

Caro amigo Gilson,

Li com muita atenção o seu artigo “A real leitura dos dados macroeconómicos em Cabo Verde” publicado no jornal Expresso das Ilhas, edição Nº 1230 de 25 de junho de 2025. O mesmo mereceu-me uma leitura genuinamente atenta, tendo concordado em alguns pontos e discordado em outros, o que me impeliu a vir cá deixar o meu modesto contributo para a promoção de interpretações mais precisas de dados macroeconómicos em Cabo Verde.

Vamos primeiro aos pontos em que estou de acordo consigo. Primeiro, partilho da sua crítica à tendência de se questionar a qualidade dos dados do INE, de forma injusta e sem argumentos técnicos – antes era o MPD, quando na oposição, quem fazia isso, agora é o PAICV... O INE é uma instituição que merece a minha confiança, possui um corpo técnico experiente e altamente qualificado, e tem feito um esforço evidente no alinhamento das suas metodologias com as boas práticas internacionais. Salvaguarda-se, contudo, que nem o INE – nem qualquer outra instituição pública – devem ser colocados como vacas sagradas intocáveis não sujeitas ao escrutínio público. Aliás, o colega Economista, João Serra, de uma forma construtiva e tecnicamente muito bem fundamentada, tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de melhoria de algumas metodologias do INE, por exemplo, a nível da fórmula de cálculo da inflação, alertas essas que merecem ser debatidas.

Segundo, também creio estarmos de acordo de que os resultados dos principais indicadores macroeconómicos – principalmente PIB, taxa de emprego e inflação - são bastante positivos e devem ser celebrados. Não há discussões quanto a isso, portanto: o desempenho desses indicadores é bom, os dados são-me de confiança, são boas notícias.

Discordo, porém, da sua leitura quanto às causas desta performance. O seu artigo – assim como outros posicionamentos que tenho assistido nos últimos dias, de pessoas ligadas ao Governo – apressa-se a atribuir o mérito sobretudo a políticas do Governo que, alegadamente, terão determinado este crescimento do PIB, a redução do desemprego e a contenção da inflação. Porquanto as políticas públicas podem – e devem! – contribuir para a melhoria contínua do quadro macroeconómico geral, neste contexto, puxar toda a brasa para esta sardinha é incorreta e não se sustenta em dados/evidências: a principal causa para esta performance é externa – o aumento significativo da procura turística (+16,5% em 2024 em relação a 2023), que levou a um crescimento substancial nas exportações (+19,3%), impactou fortemente a taxa de crescimento do PIB (dos +7,3% registado em 2024, o turismo contribuiu com 5,4 pontos percentuais, explicando assim 74% do crescimento da economia),e contribuiu significativamente para o aumento das receitas fiscais (contribuintes que operam ao longo da cadeia de valor do turismo com mais receitas e rendimentos e, por conseguinte, a pagarem mais impostos). Não deixei de notar que o amigo Gilson, defensor de análises com base em dados, não tenha referido a estes na sua análise, dados estes que constam de relatórios do INE, do BCV e do Banco Mundial publicados recentemente.

Dado ao peso do turismo na economia (estimados 25% do PIB) e ao facto de ser um subsector intensivo em mão-de-obra, esta performance terá feito aumentar a procura por mão-de-obra, fazendo descer a taxa de desemprego. A descida da taxa de inflação explica-se igualmente mais por fatores não-relacionados com políticas públicas, designadamente um contexto externo mais favorável e uma maior pluviometria que terá impactado a produção agrícola e, por conseguinte, os preços.

Resumindo, as evidências demonstram claramente que as melhorias nesses indicadores resultam mais de choques externos favoráveis (procura turística, contexto externo mais favorável em termos de nível de preços importados em comparação com o ano anterior, e pluviometria), do que propriamente de políticas públicas internas.

Esta conclusão reforça-se ainda mais quando olhamos detalhadamente para o desempenho das outras componentes do PIB na perspetiva da procura, sobretudo o consumo e os investimentos. O consumo cresceu 7,3% em 2024, puxado sobretudo pelo crescimento das remessas de emigrantes (que representaram 10,8% do PIB), pela redução da inflação, e pela melhoria da confiança dos consumidores (fonte: Banco Mundial). Ainda assim, a sua contribuição para o crescimento do PIB não foi significativa. No que se refere ao investimento, este tem é diminuído. O Investimento Direto Estrangeiro diminuiu -32% em 2024 em relação a 2023, e o investimento público – a componente do PIB mais diretamente influenciada por decisões de políticas públicas -, caiu de 10% do PIB em 2013 para apenas 1,7% em 2023 (fonte: Banco Mundial). Ou seja, o PIB cresceu, influenciando por seu lado a redução da taxa de desemprego, não por causa de políticas públicas eficazes, mas apesar de políticas públicas insuficientes ou com contribuições marginais (ou mesmo negativas, no caso da fraca performance da componente “investimento público”).

Em 2020, quando o PIB desabou 14.8%, o Governo “sacudiu a água do seu capote”, afirmando não ser culpa sua. Argumentou – e bem - que tal se devia a um choque externo desfavorável (COVID-19), que terá impactado negativamente a procura turística e, por conseguinte, o PIB, fazendo disparar também a taxa de desemprego. Concordei com a análise do Governo na altura, com base nas evidências indiscutíveis neste sentido. Agora que, em 2024, evidências da mesma natureza apontam para a forte contribuição de um choque externo favorável (aumento da procura turística), não se pode vir mudar a relação causal, atribuindo o “mérito” a fatores internos resultantes de políticas públicas. Não é intelectualmente honesto.

Deixei a questão da taxa de desemprego para o fim de propósito, reafirmando o que eu disse numa entrevista recente à RTC: a queda na taxa de desemprego deveu-se fundamentalmente mais a fatores do lado da procura por mão-de-obra, do que resultante de políticas públicas do lado da oferta – como políticas de emprego, qualificação e inserção profissional. Porquanto tais políticas sejam importantes – e exorto o Governo a continuar a investir nos mesmos -, atribuir-lhes o “mérito” pela redução da taxa de desemprego não se sustenta nos dados/evidências (sobejamente apresentados acima) e revelam um desconhecimento de elementos básicos da economia do trabalho e de como funcionam os mercados de mão-de-obra. Vou abster-me de entrar em detalhes de teoria económica e modelos econométricos, para não maçar os leitores, pelo que fico por dois argumentos, baseados no raciocínio lógico – e no bom senso.

Primeiro, nenhuma empresa – seja um agricultor de Santo Antão, uma indústria em São Vicente, um restaurante no Sal, ou uma empresa de serviços de consultoria na Praia - contrata apenas porque estão disponíveis no mercado trabalhadores com maior nível de formação, tecnicamente mais qualificados, e com largos meses de estagio; contratam é se têm uma expetativa de aumento das vendas, isto é, contratam (“procuram” mão-de-obra), se o seu negócio está a crescer ou esperam que venha a crescer. A melhoria da empregabilidade da mão-de-obra tem impacto, sim, é sobre a produtividade – depois desta mão-de-obra estar empregada. Ainda assim, parcial, porque a produtividade é também influenciada por fatores como tecnologia e dimensão do mercado – um outro aspeto que o Gilson ignora na sua análise.

Segundo, a ser verdade esta conclusão – de que a redução da taxa de desemprego deveu-se a fatores do lado da oferta (i.é., políticas públicas de emprego e empregabilidade, do Governo) - esta seria um “achado” revolucionário que resolveria um dos problemas mais antigos da teoria e política económica: como acabar com o desemprego. Para isso, baseando-se neste raciocínio, bastaria então investir na educação, qualificação técnica e estágios profissionais e – pumba! – eliminaríamos completamente o desemprego. Aqui em Cabo Verde, seria então até mais fácil: oferendo formação profissional e estágios de 06 meses aos 19.049 desempregados que ainda temos (a um investimento estimado de 100 contos por beneficiário), precisaríamos de apenas 1,9 milhões de contos para acabar com o desemprego nestas ilhas. E, de quebra – voilá! – também eliminaríamos completamente a pobreza por cá, uma vez que o salário mínimo legalmente estabelecido já é superior ao limiar técnico da pobreza. Ora, a ser isto possível, porque então o Governo nunca o fez? Por falta do dinheiro? Não acredito - estou certo de que o Banco Mundial, o FMI e outros não hesitariam em financiar. Por maldade? Também não creio, assumo que o Governo é composto de pessoas do bem. Não o fez porque não o pode fazer: os Governos, por mais bem-intencionados que sejam, não controlam todas as variáveis que determinam a procura por mão-de-obra e, por conseguinte, a taxa de desemprego.

Concluo, caro amigo Gilson, voltando a concordar consigo num outro ponto: no seu apelo a sustentarmos as nossas análises cada vez mais em dados e evidências. Mas, acrescentaria eu, que tais análises devem guiar-se por um processo sistemático, metódico, e intelectualmente honesto - isto é, não mudar o peso e o sentido das correlações em função das conclusões que nos são mais favoráveis.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1231 de 2 de Julho de 2025.

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Autoria:Paulino Dias,4 jul 2025 7:16

Editado porSara Almeida  em  4 jul 2025 14:19

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