Que balanço se pode fazer do ano judicial 2017/18?
O balanço é objectivamente positivo. Desde logo, se tivermos em conta que, na primeira instância, que é onde se tramita o grosso da movimentação processual, conseguimos superar, com o número de processos resolvidos (12.051), o número de processos entrados (11.830). Se utilizarmos este indicador como termómetro temos que concluir por uma prestação positiva dos tribunais em Cabo Verde, durante o ano judicial 2017/2018. Ora, uma tal constatação teve reflexos na redução dos processos pendentes na ordem de 1,8% pontos percentuais, ou seja, o número de processos transitados para o próximo ano judicial teve um ligeiro decréscimo: 11.980 acções, quando no mesmo período do ano passado ficaram pendentes, para o ano ora findo, 12.196 processos. Mas saindo dos números e passando para o cidadão em nome de quem administramos a justiça, diria que o nosso maior desafio é iluminar o horizonte ainda obscurecido por uma representação social de índole negativista, no que concerne ao funcionamento dos tribunais. Ora, amiudamente, este lado cinzento, se assim podemos dizer, tem a ver com alguma repugnância adveniente do sentido das decisões (não se consegue em concomitância satisfazer as pretensões dos dois pólos em conflito) mas acreditamos que também tenha a ver com a lentidão que ainda persiste na tramitação das causas e esta é uma responsabilidade nossa que queremos encarar e debelar, a bem da comunidade jurídica e a bem da cabo-verdianidade.
Os processos pendentes continuam a ser muitos, isto apesar de se ter registado uma diminuição.
Estamos cientes de que, o objectivo maior é, mais do que inverter a curva da pendência, consolidar esta inversão e para tal, se faz necessário acentuar, a cada ano, o fosso entre os entrados e os resolvidos, naturalmente, com vantagem superlativa para esta última variável. Ficaram pendentes para o próximo ano, na primeira instância, 11.975 processos, o que evidencia uma pendência relativamente alta. Mas que soluções para este diagnóstico? Desde logo, a consolidação da bolsa de juízes, de molde a destacar magistrados lá onde se registarem situações de maior acúmulo processual, com ênfase no ataque aos processos mais antigos, aumento do número de juízes e oficiais de diligência, organização das secretarias com vista à padronização dos procedimentos e estímulo à produtividade dos magistrados. De referir que neste particular o CSMJ deliberou já a constituição de uma equipa, composta por magistrados de todas as categorias para estudar e propor um sistema justo e equilibrado de contingentação processual ao nível das diferentes instâncias do país. Mas o aumento do número de juízes tem ainda no seu bojo o reforço dos serviços de inspecção com vista a uma maior regularidade das inspecções e também com vista à inspecção das secretarias judiciais. Também estamos esperançosos que o início de funcionamento do SIJ (sistema de informação da Justiça) irá trazer ganhos substanciais para o funcionamento do sistema judicial. Na verdade, o pleno funcionamento do SIJ trará vantagens variadas, desde a tramitação electrónica, estatísticas actualizadas e multidimensionais, acompanhamento em permanência do estado do movimento processual, o que permite definir políticas de recursos humanos e melhorar o serviço da inspecção, se se aplicar medidas proactivas de melhoria do desempenho. Nesta fase inicial estamos a ser confrontados com as dificuldades próprias da mudança, mas pensamos que são dores de parto próprias de qualquer processo de mudança e de certeza que vão ser objecto de superação.
Acreditamos que o conjunto destas medidas faz confluir para o desiderato que almejamos, ou seja, um aumento da celeridade na tramitação dos pleitos com reflexos directos na tempestividade das decisões e na redução substancial da pendência.
Os Tribunais de Pequenas Causas são um tema que surge de forma recorrente quando se fala em Justiça. O que são esses tribunais? Que vantagens trariam para o sistema judicial cabo-verdiano?
Os Tribunais de Pequenas Causas estão previstos no artigo 69º da Lei 88º/VII/2011, de 14 de Fevereiro (Diploma que define a organização, a competência e o funcionamento dos tribunais judiciais), enquanto estrutura judiciária com competência para a preparação e o julgamento das acções cíveis, comuns declarativas, de condenação ao pagamento de prestações pecuniárias, à entrega de coisa móvel ou a prestação de facto ou a conflitos respeitantes ao uso e habitação ou partes comuns da propriedade horizontal, até ao valor de (250.000$0), às acções executivas que tenham por título sentenças de igual valor, bem como os correspondentes procedimentos cautelares. O pecado original desta previsão normativa é que, em função do valor diminuto das causas (250.000$00) que caem sob a alçada destes tribunais, na prática o número de processos que seriam captados para este Tribunal seria igualmente exíguo e a sua instalação com o figurino actual, não teria o impacto desejado, sendo esta a razão pela qual nunca foram instalados. Destarte, o CSMJ, já fez uma proposta de alteração deste normativo, ao Ministério da Justiça e Trabalho, no sentido de aumentar o valor ali previsto para 500.000$00 (quinhentos mil escudos), como forma de aumentar o número de processos que cairiam sob a alçada deste tribunal fazendo com que se potencie o impacto da sua instalação funcionalizando-os ao combate à pendência processual na medida em que teriam a vantagem de mais rapidamente resolver as pequenas causas libertando os outros juízos e/ou Tribunais para a resolução dos pleitos de maior complexidade.
E os julgados de paz?
É uma medida cujas potencialidades devem ser exploradas, desde logo, se tivermos em conta que, os mecanismos alternativos de resolução de litígios, embora institucionalizados pela via legislativa nunca funcionaram e não funcionam e há de facto uma lacuna a ser preenchida e que podia perfeitamente ser integrada pelos julgados de Paz. Repare que a criação dos julgados de paz teria a veleidade de a montante do sistema tradicional, servir de filtro libertando os Tribunais de muitas acções evitando assim o seu entupimento.
Quanto aos tribunais da Relação. Houve vantagens na sua implementação?
Os Tribunais de Relação foram instalados em finais do ano de 2016 e iniciaram o seu funcionamento no início do ano de 2017. Acredito que houve vantagens tanto quanto é certo que, libertou o STJ que passa a ser efectivamente um Tribunal de revista, na sua verdadeira asserção, para além de ter descentralizado, a tramitação dos Recursos, dividindo o país entre a área jurisdicional de Barlavento e a área jurisdicional de Sotavento.
A localização do Tribunal da Relação de Sotavento em Assomada foi um factor vantajoso? Esta descentralização funcionou a favor da Justiça?
Um primeiro pecado original dos Tribunais da Relação, neste caso, o de Sotavento, foi a opção política pela sua localização na cidade de Assomada e neste particular pensou-se em critérios estritamente políticos relegando para o segundo plano a efectividade e a capacidade de resposta deste Tribunal. O absurdo desta opção advém desde logo do facto de o grosso dos recursos que são tramitados neste Tribunal serem oriundos do Tribunal da Comarca da Praia, o que, aprioristicamente, torna imperceptível esta opção quer do ponto de vista da sua capacidade de resposta quer da alocação de meios. Critérios estritamente políticos não deveriam presidir opções eminentemente judiciais.
Cada Tribunal da Relação tem três juízes. É um número suficiente?
Um segundo pecado original do Tribunal da Relação de Sotavento foi a opção por uma composição minimalista, ou seja, apenas três juízes, para cada Tribunal, o que, à partida não permite o seu funcionamento em secções, coarctando assim as possibilidades de aproveitarmos as potencialidades da especialização. Funcionamos sempre numa lógica de, com recursos mínimos conseguirmos percursos máximos, o que embora seja o desejável, num país de parcos recursos, como o nosso, mas reconhecidamente, nem sempre é possível, ainda por cima quando se trata de questões ligadas à administração da justiça. O ideal era que cada Tribunal tivesse uma composição mínima de cinco juízes. Ainda assim, com uma composição minimalista é de destacar o esforço que foi desenvolvido no Tribunal da Relação de Sotavento que é onde a movimentação processual é maior, sem a qual a pendência teria sido ainda maior. O CSMJ, no exercício das suas atribuições em matéria de iniciativa legislativa fez uma proposta de alteração da Lei de Organização e funcionamento dos tribunais de modo a permitir a alocação de mais juízes nos Tribunais de Relação.
O Supremo Tribunal de Justiça é o tribunal com maior quantidade de pendências. Porquê?
Repare que a pendência registada na Instância superior da hierarquia dos tribunais é uma pendência que vem acumulando ao longo de muitos anos e não se pode perder de vista que o STJ, até 2016, acumulou as funções de Tribunal Constitucional, árbitro do contencioso eleitoral e garante último do acesso à justiça e ao direito, sendo certo que durante muito tempo funcionou com apenas cinco juízes, ocupando-se em simultâneo de conflitos da mais variada natureza que vão desde recursos de constitucionalidade e de amparo, processos crimes, nomeadamente com arguidos presos, passando pela conflitualidade de cariz cível e laboral e culminando no contencioso administrativo. Ora, todo este quadro diversificado de demanda teria que, a prazo, desembocar no congestionamento deste Tribunal com reflexos no aumento desmesurado da tempestividade das decisões dos recursos, particularmente nos processos cíveis. Não se pode pretender que toda a pendência acumulada durante anos seja resolvida em dois ou três anos. O certo é que, mercê da criação dos tribunais de Relação o STJ passou a ser um Tribunal de Revista, na verdadeira asserção do termo, a pendência tem vindo a diminuir e acreditamos que a tendência será, nos próximos anos, consolidar o processo de abatimento da pendência nesta instância judicial.
Analisando os números apresentados pelo relatório do CSMJ nota-se que há um número relativamente elevado de processos que se encontram parados nos tribunais. A que se deve essa situação?
Ora, invariavelmente, as disfunções do sistema decorrentes de actos ou omissões dos outros poderes do Estado, das outras instituições ou operadores judiciários, ou são minimizadas, ou são comodamente debitadas aos tribunais ou aos juízes, na medida em que estes últimos permitiram, pela sua tradicional contenção, que fosse sendo sedimentada ao longo dos anos uma arreigada e inilidível presunção de que são os únicos e verdadeiros responsáveis pela situação da justiça. Todavia, procurando demonstrar que esta presunção mais do que ilidível se mostra ilidida e ancorar esta asserção nos dados estatísticos, ainda que não tenha havido uma resposta de todos os tribunais se pode ver que existem pelo menos 691 processos parados, seja por falta de impulso processual das partes seja por falta de colaboração de outras instituições. Sublinhe-se que este número é muito maior tendo em conta que muitos tribunais não responderam a este quesito.
A ausência ou desconhecimento do paradeiro de arguidos é uma das causas da paragem processos?
Este é um outro problema que faz com que a pendência na jurisdição criminal seja artificial ou seja, se traduz na existência de processos pendentes que estão parados não por falta de actividade jurisdicional, mas por ausência dos arguidos haja em vista o facto de o Código de Processo Penal, só em circunstâncias muito excepcionais permitir o julgamento de arguidos ausentes. Nesta situação detectamos 469 processos mas acreditamos que este número é sensivelmente maior.
O CSMJ defende a possibilidade de se alterar a legislação em vigor para que se possam realizar julgamentos à revelia?
Uma solução para este problema, pensamos nós, deve passar por uma alteração ao CPP vigente, para permitir o julgamento do arguido ausente, quando tenha prestado TIR e se tenha ausentado do país sem comunicar o Tribunal. Repare que, embora o TIR seja visto como uma medida de coacção menor, nos termos do disposto no artigo 282º do CPP, da sua prestação decorrem consequências para a liberdade do arguido, das quais avulta a obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado. Assim, pensamos que o incumprimento desta obrigação deveria ter consequências processuais e no mínimo deveria legitimar o Tribunal a julgar o arguido na sua ausência.
Outro dos problemas que se verifica é com a inspecção judicial. Porquê a dificuldade em colocar juízes nesse serviço?
Ora, o primeiro aspecto que cumpre frisar é que sempre existiu inspecção na magistratura judicial cabo-verdiana e não se pode passar a ideia de que só agora é que passamos a ter inspecção judicial. Em segundo lugar, o quadro efectivo de juízes é exíguo e para alocarmos juízes na Inspecção temos que descobrir as comarcas. Na linguagem comum é descobrir um santo para cobrir outro. Em terceiro lugar, as especificidades próprias do serviço de inspecção requerem perfil adequado, a função carrega o lado odioso, não existe um sistema de incentivos para o cargo de inspector judicial. Para o cargo de Inspector Superior a lei exige a categoria de Juiz Conselheiro, enquanto requisito mínimo, o que existe em número reduzido sendo todo este quadro que tem servido de impediente para o preenchimento das vagas na Inspecção. O CSMJ, por conta destas dificuldades, fez uma proposta de alteração da lei de Inspecção de molde a alargar o universo subjectivo de juízes que possam ser alocados nos serviços de inspecção.
Que expectativas tem o CSMJ relativamente ao Orçamento do Estado para 2019?
Neste momento, estamos no decurso de um procedimento concursal, pretendendo recrutar 10 juízes de direito e 25 oficiais de Justiça, mas acreditamos que dever-se-ia aproveitar este procedimento concursal para reforçar ainda mais este sector recrutando mais juízes e oficiais de justiça pelas razões que a exposição posterior colocará em maior evidência. Ora, já conseguimos verbas para quatro juízes e estamos em crer que da parte do Ministério das Finanças haverá abertura suficiente para nos dotar das verbas suficientes para operacionalizar este recrutamento. Repare que o Programa do Governo para a IX Legislatura prevê um aumento progressivo do número de juízes até atingirmos um ratio de 20 juízes por cada 100 mil habitantes. Neste momento temos um ratio de 10 juízes por cada 100 mil habitantes, um número que se situa aquém do ratio de países próximos como é o caso de Portugal que tem um ratio de 17 juízes por cada 100 mil habitantes. Temos um país com fenómenos criminógenos preocupantes, a procura pelos serviços da justiça tem vindo a aumentar nas diferentes jurisdições, perdemos uma magistrada para o Tribunal da CEDEAO, previsivelmente vamos perder outros magistrados para cargos em que a lei exige que sejam exercidos por magistrados, o Governo anunciou a criação do Tribunal de Pequenas Causas, a criação na comarca de São Vicente do Juízo de Família, Menores e Trabalho, há perspectivas de criação dos Tribunais de Execução de Penas, há necessidade de reforçar o Tribunal da Relação de Sotavento, há necessidade de reforço da Inspecção, donde emerge naturalmente a necessidade de aumentar esta ratio e contamos com o engajamento do Ministério das Finanças e do Ministério da Justiça e do Trabalho. Um juiz, em termos de impacto para o Orçamento Geral do Estado representa 2.000.000$00 (dois milhões de escudos) por ano, o que em face do impacto positivo que terá em matéria do cumprimento dos objectivos para o sector da justiça podemos dizer que não é nada. É preciso que haja uma aposta efectiva no sector da justiça, acreditamos que o Governo está disposto a apostar neste sector e contamos com esta vontade na certeza de que devolveremos os resultados da nossa prestação em prol do desenvolvimento do país e com o impacto desejado ao nível do ambiente de negócios, da competitividade e da atractividade do investimento privado.
A implementação das assessorias especiais é um tema que o CSMJ referiu no relatório sobre a Justiça. Em que consistem, qual a sua utilidade e que vantagens trariam ao sistema judicial cabo-verdiano?
Ora, o serviço de assessoria, no que concerne ao STJ foi criado pela Lei n.º 80/VI/05, de 05 de Setembro, na sequência de uma restruturação interna dos serviços desta Instância, sendo certo que esta Lei prevê um número de assessores igual ao dos juízes Conselheiros. Os assessores no STJ integram o Núcleo de Apoio, Documentação e Informação Jurídica (NADI) e, entre outras proficiências, compete-lhes apoiar os juízes conselheiros em tudo que se mostrar necessário ao exercício das suas funções, nomeadamente, na recolha de legislação e jurisprudência e na preparação das decisões. Assim sendo, libertariam os juízes do trabalho de investigação, de recolha de legislação e jurisprudência, o que facilita a preparação das decisões, com ganhos de tempo e com reflexos directos na tempestividade, quantidade e qualidade das decisões sobre os recursos. Por conta disto, ou seja, por ser um tribunal de recurso, requer uma assessoria qualificada para o exercício do cargo. Tudo o que fica dito neste particular aplica-se mutatis mutandis para a assessoria nos Tribunais da Relação, donde emerge a necessidade de se alterar a lei de molde a criar uma previsão normativa que acomode a assessoria nos Tribunais de segunda Instância.
Nota de Retificação
Á Direção do Jornal Expresso das Ilhas O Conselho Superior da Magistratura Judicial, ao tomar conhecimento de alguns lapsos registados no artigo intitulado “Presidente do CSMJ diz que há falta de Juízes nos tribunais da Relação”, publicado no Jornal Expresso das ilhas, edição 878 de 26 de setembro do corrente ano, na sua página 4, parágrafo 9º, onde se lê: “Os tribunais da Relação estão também presentes no documento elaborado pelo CSMJ. No tribunal da Relação de Sotavento foram fechados 59 processos cíveis e 41 processos criminais. Na relação de Barlavento houve a conclusão de 198 processo cíveis e 130 criminais. A nível de pendencia nestes tribunais, o CSMJ registou que estão pendentes 150 processos cíveis na relação de Sotavento e 210 processo criminais. Já no Sotavento o tribunal de relação tem pendentes 139 processos e 89 processos de natureza criminal.”, vem por esta via solicitar que seja retificada, já na próxima edição do vosso Jornal e em todos os outros espaços onde se fez a publicação, os dados referentes à produtividade no tribunal de Relação de Sotavento em nome da verdade e da justiça aos juízes deste tribunal, que tem sido abordado devido a “fraca produtividade noticiada na imprensa, quando isto não corresponde aa verdade. Sendo assim o presidente do CSMJ solicita a retificação com os seguintes dados: Os tribunais da Relação estão também presentes no documento elaborado pelo CSMJ. No tribunal da Relação de Sotavento entraram 360 recursos e foram decididos 276, o que evidência uma taxa de resolução de 58%, dos quais 128 são recursos da área criminal e 148 da área cível. Na relação de Barlavento foram decididos 59 processo civil e 41 processo criminais. A nível da pendência nestes tribunais, o CSMJ registou que estão pendentes 150 processos cíveis e 200 processos criminais na Relação de Sotavento e na Relação de Barlavento ficaram pendentes para o próximo ano uma cifra global de 228 processos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 879 de 03 de Outubro de 2018.