Ninguém ouviu falar de Luísa. Luísa não morreu. Luísa “nem sequer” foi agredida. Não foi chicoteada com fios eléctricos, não ficou manca, não foi esfaqueada, socada, baleada ou queimada, “nem sequer” teve hematomas graves, como algumas mulheres que chegam aos serviços de saúde. Luísa não sofreu nada disso. Mas Luísa vive há cerca de um ano com o medo permanente de que o ex-companheiro cumpra a promessa, mais de uma vez repetida, “joelho na tchon”, de que a mataria. Um medo que o sistema desvaloriza, de uma ameaça que o mesmo sistema não parece levar a sério. Afinal, “sequer” foi agredida. E mesmo que o fosse, do dizer ao fazer...
Já vamos à sua história. Antes, retrocedamos até ao início do ano de 2018, mais ou menos até à altura em que começou o drama de Luísa. No mês de Fevereiro, numa outra ilha (Fogo), Jacira Andrade de 21 anos era assassinada a tiros pelo ex-namorado. O suposto femicida, dez anos mais velho, fugiu, tendo sido encontrado morto dois dias depois. Tinha cometido suicídio.
Este foi o primeiro caso de um ano negro em Cabo Verde. Ao longo de 2018 outros seis femicídios chocaram a sociedade cabo-verdiana. (A estes setes junta-se ainda o de um casal de turistas que, tendo em conta a diferente origem socio-cultural da vítima e agressor, não consideraremos nesta “factura” nacional).
Entretanto, em 2017 terão ocorrido cinco casos de femicídio, tantos como em 2006. As estatísticas, ao longo dos anos e de acordo com o ICIEG não variaram muito, mas assistiu-se sim, este ano, a um aumento.
O que tem falhado? Como chegamos a este extremar da violência? São as questões que se colocam.
Processos de ruptura
Cada caso é um caso, e nunca é demais repetir essa máxima. Mas as dinâmicas sociais seguem alguns padrões, pelo menos na teoria.
Reconhece-se, hoje, que tem sido feito um esforço pela igualdade e equidade de género em Cabo Verde e que esse trabalho passa incontornavelmente por colocar em causa os estereótipos de género. O foco essencial, por motivos de vária ordem, têm sido as mulheres (as principais vítimas). Há um descompasso, um desencontro e uma ruptura social que está a ser feita a duas velocidades.
Esse aumento de femicídios em momentos em que as sociedades reivindicam igualdade e equidade de género, têm-se verificado em outras paragens. “Pode acontecer, mas não tem de acontecer”, analisa Maritza Rosabal, Ministra da Família e Inclusão Social, que tutela a questão do Género.
“Pode acontecer porque às vezes há esta disfunção entre um quadro e o outro. Uma parte vai sendo consciente dos seus direitos e isso custa à outra parte. Estas questões são dolorosas, são muito profundas, custa aceitar que estamos num novo quadro”. Um quadro em que o homem já não é visto, pela mulher, como “um bem precioso a conservar”, e em que esta tem o poder de “pôr fim à relação”. E essa falta de aceitação de término tem muito a ver, também na óptica de Maritza Rosabal, com o sentimento do homem de que a mulher lhe pertence.
“Há muitas referências mentais e culturais que continuam a ser as mesmas sobretudo para os homens”. O processo social que permitiu o acesso à educação da mulher, e se bate por lhe garantir direitos e poderes, não foi acompanhado da mesma maneira pelo homem. E no quadro de masculinidade, ainda não alterado, onde o homem tem o poder (sem na realidade já o ter), incluindo o de disciplinar a mulher, pode dar-se o femicídio. “O acto extremo de disciplinar mulher é mesmo o femicídio, é a morte da mulher por não obedecer, por não aceitar as regras”.
Na mesma linha, também Carlos Reis, membro da rede Laço Branco e um dos autores da Lei VBG, observa que quando se coloca estereótipos em causa, quando se entra num processo social de ruptura, “a violência tem tendência a surgir”.
Numa hipotética sociedade, onde ninguém coloque em causa o papel que lhe cabe, os atritos “tendencialmente” são poucos ou pelo menos menores. “Quando as sociedades evoluem de forma a serem revisitados, a serem postos em causa determinado tipo de estereótipos relativamente ao papel do homem e ao papel da mulher, isso significa muitas vezes questionar essa masculinidade e essas prerrogativas que o homem e as sociedades machistas - mais do que patriarcais, machistas - têm”. Há uma resposta. E a resposta masculina, tendencialmente, é uma resposta agressiva, violenta. Porquê? Porque a socialização dos meninos ainda é assim.
“O recurso à violência está muito enraizado na forma como nós somos formados enquanto homens” e é socialmente bem aceite que os meninos reajam às suas frustrações, aos obstáculos que se colocam entre o que querem e a satisfação dessa vontade, impulso ou desejo, com violência. Isto para sublinhar que “os nossos problemas com a violência são anteriores à questão da própria relação entre homem e mulher, no contexto de intimidade, no contexto da privacidade”, aponta.
Assim sendo, quando em causa está a visão que o homem tem em relação ao seu papel, e bem como as prerrogativas em relação à companheira - cujo sentimento de posse, como referido, ainda está arreigado na sociedade - , dá-se a violência extrema. Reage-se da forma como se sabe, como se foi educado, num reencontro com os estereótipos que foram incutidos.
Porém, nem tudo tem a ver com socos e forja na briga. Mesmo a ideia de amor romântico nos relacionamentos mostra-se perversa. Como aponta, por seu lado, Isis Labrunie, técnica do ICIEG. “A ideia de amor que vemos nos filmes, nas novelas, que vemos na sociedade, é um amor ciumento, possessivo, doentio. Não estou a falar de alguém que é vitima de VBG nem nada parecido, mas do ‘se você não está, eu morro’, ‘nós dois contra o mundo’. Esse é o tipo de amor de que falamos e que até desejamos ter. O passo desse amor para o controlo psicológico, o controlo de para ‘onde você vai, dá-me o telemóvel, dá-me as tuas senhas’, ou seja, passar daí para a violência psicológica é um passo pequeno. E subir a escada da violência são passinhos pequenos. Acho que os primeiros degraus todo o mundo nessa sociedade já subiu, em algum momento”, observa.
Vai-se escalando a escada. Uns mais do que outros. E critica-se quem chegou ao topo, ao extremo de matar – e que geralmente são os homens, porque o sistema favorece esse extremismo no masculino – mas toda a sociedade está na mesma espiral.
(Retomaremos a análise das masculinidades, na próxima edição, na segunda parte da reportagem.)
Traçando os perfis (im)possíveis
30 de Junho. Sal. Maria José Almeida de 44 anos foi morta com vários golpes de arma branca, pelo seu ex-companheiro. O filho de 12 anos assistiu ao crime e terá sido também ameaçado. O femicida, após umas horas a monte, entregou-se às autoridades e encontra-se detido à espera de julgamento.
Em Cabo Verde, apesar das análises que se possam adiantar, falta ainda um estudo aprofundado sobre a questão de femicídio. Contudo, os casos que ocorreram permitem já esboçar o perfil, ainda que básico, das vítimas e agressores. Assim, sabe-se que a idade média das vítimas está entre os 21 e os 30 anos, e a dos agressores entre os 31 e os 40. Mais ainda, que é no momento de separação que se dá o acto extremo. “Em todos os casos menos um, o agressor tinha uma relação íntima com o agressor, encontrando-se em fase de separação”, observa Rosana Almeida, Presidente do ICIEG.
Esses dados são úteis para perceber o fenómeno, mas é preciso sempre “ter muito cuidado em tratar eles como casos diferenciados porque são”, salvaguarda Isis Labrunie.
Aliás, Maria José, por exemplo, não se enquadra no perfil etário, o que só mostra como, de facto, cada caso é um caso.
Sublinhada esta diferenciação que deve ser sempre tida em conta, há também exemplos típicos de relações que podem acabar em morte. Nesse aspecto, o que sobressai o facto de serem relacionamentos tóxicos.
Relacionamentos esses que em 2018 resultaram em: nove mortos (sete mulheres assassinadas e dois agressores que se suicidaram). Uma tentativa de suicídio. Treze crianças órfãs.
Estes são “relacionamentso violentos, em que, no momento que ela decide acabar com o relacionamento, ele - o agressor neste caso - sente o desespero de perder a companheira, de já não poder ter esse controlo”, diz a técnica. Nesse contexto é também preciso observar que “a relação de dependência é dos dois lados: dependência da vítima com o agressor, mas também do agressor com a vítima, naquele momento de desespero, quando acha que a vai perder. Por isso é que também vemos muitos casos que são seguidos de suicídio. É uma medida de alguém desesperado e que erroneamente acha que não tem outra saída, outra alternativa. Então, um caso típico seria um caso de violência, principalmente de muita violência psicológica, violência física geralmente também, em que, no momento da separação, ele acaba com a vida dela e em muitos casos também acaba por se suicidar depois”, explica.
Quanto ao tipo de homem que mata a suas mulheres, os Monstros não existem. Pelo menos neste contexto.
Há a ideia de que um homem capaz de um acto destes é “um bicho papão, não encaixa na sociedade. Isso não é verdade. Isso é um estereótipo. Vamos olhar para a realidade e não encaixa, de jeito nenhum. Geralmente é uma pessoa querida, respeitada na comunidade, “normal””.
Há ainda quem aponte que a existência de eventuais psicopatologias no caso destes agressores. Tendo em conta a problemática da saúde mental em Cabo Verde, muitas vezes ignorada e ainda alvo de preocupantes preconceitos, esta consideração não será de rejeitar. Contudo, para Carlos Reis, embora estas psicopatias não diagnosticadas até possam ser contempladas nas causas de femicídio, não se colocam “ao mesmo nível da questão de foro social e educacional.”
Assim, embora salvaguarde não ter conhecimento de estudos para o comprovar, da sua experiência (inclusive enquanto formador convidado em algumas sessões do programa de Reinserção dos arguidos por VBG) tratam-se de indivíduos que “não têm um outro registo criminal de agressividade”. São pessoas que fora dos relacionamentos íntimos não se comportam de forma violenta, que “percebem que não têm determinado tipo de legitimidade em outros contextos relacionais”. Ora, alguém patologicamente “violento” se-lo-ia em outros contextos.
Com patologia ou não, esta questão de saúde mental dos agressores deverá ser um dos aspectos a ponderar na nova abordagem que se pretende fazer à VBG, reconhecendo que até agora houve falhas a esse nível. Como explica a Ministra da família e inclusão, os centros de atendimento à vítima prestam apoio psicológico. “Mas atendem sobretudo as mulheres. Então temos de reequacionar, neste momento, todo o sistema”, adianta.
Femicídio
Esta reportagem usa a terminologia adoptada pelo ICIEG. O termo femicídio é usado para designar a morte de mulheres pelo facto de serem mulheres, o que se vincular a contextos de VBG. Distingue-se pois do homicídio de mulheres, em outros contextos (como assaltos ou outros contextos em que o género e as relações de género não estão relacionados com o crime).
Femícidio “não existe”
Junho-Julho, cidade da Praia. Enquanto Maria José era esfaqueada no Sal,Mónica Fernandes, de 26 anos, agonizava no hospital da Praia pelas queimaduras graves sofridas quando um homem, seu colega de trabalho e com quem alegadamente namorava (a família nega) ateou fogo à viatura em que se encontravam. Ele morreu no local. Ela menos de dois dias depois, na madrugada de 30 para 1 de Julho.
Mónica foi, assim, a terceira de sete mulheres mortas num total de sete casos amplamente difundidos na Comunicação social e nas redes sociais. Poderão até ser mais. Os números oficiais ainda não são conhecidos, devendo ser desvendados, tendo em conta o calendário polícia, perto do fim deste mês.
Na verdade, os casos das mulheres mortas pelos companheiros (e mesmo vice-versa) não têm enquadramento específico na lei. São considerados homicídio e só uma análise mais detalhada dos dados permite aferir o seu contexto.
A própria lei VBG não tem a figura do femicídio, embora aponte que um homicídio cometido em contexto VBG é homicídio agravado.
Não é possível, por exemplo, saber com precisão o número de presos por homicídios de companheiras ou ex-companheiras. Isto porque, como explica a Diretora Geral de Serviços Prisionais e Reinserção Social, Júlia Reis, as tipologias de crimes contempladas nos dados estatísticos que são enviados à Direção Geral pelos estabelecimentos prisionais ”não desagregam os crimes nesta óptica, indicando apenas o número de crimes por homicídio (todos os tipos de homicídio) e de crimes por VBG, sejam estes de que tipo for”.
Tão pouco os magistrados e as secretarias fazem, por norma, essas referências.
“Temos uma excelente lei. Neste momento detectamos alguns pormenores, por exemplo, femicídio, não está tipificado, daí precisar-se de algum trabalho neste sentido, até na produção de dados. Articular bem com a Polícia para saber quando é que um caso é femicídio e como enquadrá-lo a nível estatístico. Produzindo dados com informações claras, bem definidas, esses dados e essas informações vão-nos permitir traçar medidas macro, médio, micro”, destaca por seu lado Rosana Almeida.
O tratamento estatístico é também uma preocupação da tutela, que considera ser necessário começar “a trabalhar a um outro nível de diferenciamento”, refere Maritza Rosabal.
Se a questão estatística é dificultada pela falta de tipificação do crime, na verdade é fácil reconhecer este tipo de homicídios. Na prática, este é dos assassinatos onde a causa (e o seu autor) mais fácil é de reconhecer. “Há um esclarecimento quase que subsequente e uma responsabilização”, observa Carlos Reis.
E, geralmente há também uma mediatização que permite que toda a sociedade os conheça.
Respostas articuladas
Agosto. São Nicolau e Santo Antão. Viviana Cabral foi golpeada com faca no peito pelo companheiro, no dia 4, em Preguiça. Morreu a caminho do hospital. Oito dias depois, Melanie Andrade, de 19 anos foi morta pelo ex-companheiro, que não aceitou o fim da relação, à saída de uma festa. O agressor entregou-se às autoridades.
As instituições falham. Falham em muitos aspectos. E numa problemática como a VBG que envolve várias entidades e exige respostas integradas, basta por vezes uma falhar para todo o processo pode ser comprometido.
“Por mais que o ICIEG trace políticas e por mais que apresente medidas preventivas, se esta articulação - a polícia, hospitais, procuradoria, não fluir -, não vamos conseguir combater este fenómeno”, diz Rosana Almeida.
“É bom que consigamos identificar cada instituição que tem um papel fundamental na assistência e protecção à vítima. Onde é que cada um pode fazer melhor para evitar casos do tipo. Todos estão a trabalhar, alguns com mais dificuldades do que outros. É necessário uma crítica construtiva para melhorar essa articulação que se deve ter no caso da VBG, que é um crime grave, que pode levar à morte num curto espaço de tempo para que realmente possamos dar essa resposta rápida, eficiente que é aquilo que se pede, porque podemos evitar casos de morte”, acrescenta por seu lado, Katia Marques, coordenadora VBG do ICIEG.
Articulação é, pois, palavra de ordem no ICIEG, que tenta por em andamento as políticas de combate à VBG com parceiros múltiplos, incluindo ONGs e a própria sociedade.
Na verdade quando o tema é a morte de pessoas, salta logo a ideia de que estamos perante casos de polícia. E embora esta seja peça fundamental, a verdade é que como aponta Carlos Reis, crimes de homicídio em contexto VBG, normalmente “não são crimes de prevenção policial”. “Estamos a falar em contextos privados”, detalha.
Isto não quer dizer que Polícia Nacional, mas também o Ministério Público (já lá vamos) não tenha aqui um papel fundamental, devendo actuar de forma eficiente na “questão dos alertas precoces, da avaliação dos riscos e de uma resposta mais célere”.
Nesse âmbito já foi lançado e está a ser implementado o sistema de avaliação de risco, que permite, através de uma série de questões, não só avaliar precisamente o grau de risco da situação de VBG, como activar um conjunto de acções de protecção às vítimas. O mesmo permite ainda o acompanhamento de todo o caso.
O SIGO – Sistema Integrado de Gestão Operacional -, que vai integrar essa avaliação de risco, é também uma ferramenta na qual o ICIEG deposita grandes esperanças: “No capítulo da VBG vai permitir denúncia por vídeo, georeferenciação do local. Permite ainda a actualização constante dos dados e vai sobretudo articular polícia, hospitais e procuradoria, em tempo real. Quando esta ferramenta funcionar, estaremos dando um grande passo na questão da VBG e do femícidio”, avança Rosana Almeida.
Vai permitir acções mais céleres e assertivas, e são, obviamente, medidas necessárias. Mas mais uma vez a questão da educação é o ponto-chave de tudo.
Para Carlos Reis, é preciso educar homens e mulher “na identificação muito precoce de comportamentos que têm de ser parados ou de uma pessoa de quem de se têm afastar.”
No seu entender, o próprio facto de não se dar grande importância à violência psicológica e económica, por exemplo, “porque se acha sempre que se está a falar de uma violência menos grave” mostra que não se sabe estancar a violência atempadamente.
Parte dessa culpa é das autoridades, que também é preciso educar, pela forma como “muitas vezes não levam a sério as ameaças em situações desta natureza e que é extremamente grave”.
É certo, aponta, é que há uma discrepância enorme entre as ameaças proferidas e as concretizadas. Contudo “no contexto da VBG há elementos um pouco diferentes porque estamos a falar de crimes provocados por fortes comoções emotivas. Nessas situações a probabilidade de concretização é muito maior. Principalmente porque vem ao de cima conceitos de honra, vexame, de como a sociedade lida até inclusivamente com determinados comportamentos quando estejam em causa homens e mulheres”.
E aqui Chegou a altura de falar de Luísa. O ex-companheiro nunca agrediu. Mas ela também fez de tudo, em várias situações, para garantir que isso não acontecesse.
Quando Luísa conheceu o seu ex-companheiro gostou dele, claro. Era “boa pessoa”, pode dizer. Namoraram, foram morar juntos, tiveram um filho. Ao longo de três anos, nunca houve violência física, mas foram-se revelando atitudes de que não gostava.
“Violência mesmo, não tinha, mas tinha comportamentos que eu não aceitava. Saía, bebia, chegava de manhã. Começou a desunião e o desentendimento. Discutíamos.” Os ciúmes dele também a incomodavam. Depois de alguns episódios lamentáveis, evitava até sair à noite para não haver chatices. Foram, aliás, esses ciúmes que marcaram o efectivo início do fim. Uma noite do final de 2017, saíram e ele teve mais um ataque de ciúmes, desta vez extremamente violento. Gritaria, escarcéu. Ao vê-lo tão alterado nessa noite, e por conselho de uma tia dele, foi mesmo dormir a casa dessa tia. No dia seguinte regressou a casa. Durante um mês não conversaram. Cruzavam-se sem falar um com o outro. Ela já estava certa que a relação já não servia a nenhum dos dois. Que o melhor seria acabarem, mas aguardava a melhor altura para conversarem. Uma altura em que ele não estivesse nem de cabeça quente, nem bêbado. Na noite de fim do ano, ele foi ter com ela, que já estava na cama. Ela fugiu, ele foi atrás. Saiu para a rua. Ele também. Como ela recusou falar com ele, devido ao seu estado, ele entrou em casa, pegou no filho e foi para a varanda embalá-lo. Já se tinha juntado gente. Pensou em chamar a polícia, mas “disseram-me para não chamar a polícia porque podia ser pior”. Depois o companheiro saiu com a criança pela cidade. Quando voltou, trancou-se com o filho. No dia seguinte, pediu desculpa, mas para Luísa tinha sido a gota de água. Era o fim. Quando ele foi trabalhar ela tirou todas as coisas de casa e mudou-se. Felizmente tinha família para a apoiar.
“Se não tivesse para onde ir, se tivesse de ficar lá e nem sei o que podia acontecer...”
Nem todas têm, e num caso semelhante, alternativas não há.
Mais de 3000 processos arquivados
Vanessa Tavares, de 24 anos, foi morta pelo ex-companheiro que (mais uma vez) não aceitava o fim da relação. O homem tentou suicidar-se, atirando-se contra uma viatura, mas sobreviveu. Dois dias depois, na Praia, Elisabete Correia morria estrangulada pelo companheiro que, logo após consumar o crime, se suicidou atirando-se de um terceiro andar.
Das sete vítimas mortais de VBG em Cabo Verde em 2018, apenas há registo de queixas de Vanessa. Duas queixas, pelo menos. Prova de que algo falhou na sua protecção. Mas não há registo de mais nenhuma queixa, entre as vítimas. Algo não bate certo. Os familiares de pelo menos mais uma vítima alegam que já tinha sido apresentada denúncia.
Pelo menos cinco vítimas não terão então apresentado qualquer denúncia. E isso merece reflexão.
Entretanto, os dados tanto da polícia como da Procuradoria mostram que temos vindo a assistir a uma diminuição dos processos de VBG. Na Policia Nacional o número de denúncias caiu para cerca de metade: de 1455 casos, em 2017, para 748 em 2018.
No Ministério Público deram entrada 2080 casos que se juntaram aos 7.121 vindos do ano judicial anterior, perfazendo assim um total de 9.201 processos por VBG. Apenas 584 processos foram resolvidos. 3.441 foram arquivados.
Os números do MP parecem positivos. No terreno há relatos de muitos casos que mostram que não. Há pessoas que foram mais de nove vezes ao MP apresentar queixas antes de efetivamente serem chamadas, apesar da lei falar em 48h.
Carlos Reis, no que toca a prevenção de situações mais graves, aponta também o dedo Ministério Público no sentido de que “há uma necessidade de levar mais a sério a questão da identificação das situações que mereçam uma intervenção rápida, que não tem de ser necessariamente e sempre a aplicação de medidas de coação ou detenção ou prisão do agressor”. No seu entender deve é ser “uma intervenção que faça sentir que efetivamente há um acompanhamento, que há medidas que são tomadas de imediato e que há uma avaliação de perigosidade para se perceber se se justificam outro tipo de medidas de outro tipo de acompanhamento da situação”.
“Quando a própria lei nesse particular está a demorar demasiado tempo a ser aplicada ou os prazos são extrapolados obviamente que aumenta o grau de vulnerabilidade das vítimas”, justifica.
Da parte do ICIEG, Rosana Almeida, conta que tem sido articulado com o Ministério Público, bem como com o CSMJ, que o que está na lei -crime público, atendimento prioritário - seja cumprido. “Tivemos uma boa reacção tanto do MP como do CSMJ”. A presidente do ICIEG congratula-se, entretanto, com a diminuição de pendências, mas aponta também que o facto de ter havido tantos processos arquivados, impele a saber a razão dos mesmos. Uma das razões é que por vezes não se encontram as próprias vítimas. Assim, a par com a aposta na formação dos profissionais de Justiça, há também que trabalhar, no seu entender, “a própria forma como o cabo-verdiano, a mulher ou o homem faz queixa”.
Se há magistrados que da sua parte lamentam que as vítimas não colaborem, impedindo o avançar do processo, se arrependem da queixa, desistem na prática (mesmo que, sendo um crime público, não possa efectivamente haver desistência…), do outro lado, há também razões de descontentamentos.
É altura de voltar a Luísa… O processo dela não terá sido arquivado, só porque ela bateu o pé. Mas…
Três meses após da separação, uma outra situação despoletou os ciúmes do, nessa altura já ex, companheiro. Ela foi ajudar uma vizinha dele a servir almoço a uns visitantes, ele achou que ela estava com algum desses homens. Tentou agredi-la, mas não conseguiu porque os vizinhos não permitiram que a “pegasse”. Barraram a porta e empurram-no.
“Ele falou que me mataria, que mataria o menino e se mataria a si”. Luísa mandou-o calar. E ele voltou a jurar, de joelho no chão, “que nem eu nem ele criaríamos o nosso filho”.
Alguém chamou a polícia, que chegou quando ele já tinha entrado em casa. Veio à varanda e repetiu, perante a polícia, tudo o que tinha dito.
Sem ordem judicial para entrar na casa do ex-companheiro de Luísa, restou à polícia leva-la, junto com uma amiga para apresentarem queixa. Fez a queixa e disseram-lhe para regressar à esquadra passados dois dias. Dois dias, com o ex-companheiro à solta e de cabeça quente, alegadamente sem nada que se pudesse fazer. Informarem-na que mesmo que o prendessem, não o poderiam deter mais de 24h. Aconselharam-na a ir para casa de algum familiar.
“Eu disse à polícia, eu até posso mudar de casa, mas eu tenho o meu trabalho, tenho o meu filho. Se ele quiser apanha-me de qualquer maneira”. Nada a fazer.
Ao fim de dois dias regressou à esquadra. Era uma segunda-feira (a queixa foi feita num sábado) e informaram-na que o seu caso já tinha sido encaminhado para o Ministério Público. “Para a VBG”.
Conforme instruções da polícia, dois dias depois (quarta-feira), foi ao MP, disseram que não tinham nada, para passar lá na sexta-feira. Nada. Regressou terça, da semana seguinte. O caso já dera entrada. “O meu caso já estava lá, mas disseram que tentaram localizar o meu ex-companheiro e não conseguiram”. A morada e a morada de trabalho do agressor estavam no processo, ele continuava nessa casa e a ir trabalhar. Mas não conseguiram notificá-lo…
Cheia de medo, Luísa deu expediente, pediu férias e foi um mês para o interior.
Regressou e recebeu no trabalho uma intimação para ir à VBG (ao MP). Foi. Esperou 3h. Chamaram-na.
“Nem cheguei a ver o procurador. Um assistente saiu no corredor e disse que ele perguntava se eu queria continuar ou acabar com a queixa. Eu disse: como é que eu acabo com a queixa se vocês nem sabem que queixa é que eu vim fazer?”, indignou-se. Insistiu que queria continuar com a queixa, que nada tinha sido feito e, portanto, continuava.
Mandaram-na entrar, e o procurador disse que o seu caso, que estivera a analisar, não era VBG. Que o ex-companheiro não chegara a agredi-la.
“Era para me agredir para ser VBG?”
Deram-lhe um papel para assinar, onde reencaminhavam o seu caso para outro tipo de crime.
“Eles tinham indicado [o caso] para outro sector, chamaram-me só para assinar aquele papel”. Isto depois de perguntarem se queria desistir. Luísa não se lembra em que tipo de crime ficou então a sua queixa enquadrada.
Desesperada ainda tentou argumentar.
“Disse: sinceramente eu não percebo como vocês trabalham, porque se ele não chegou a bater-me foi graças aquele vizinho. Se ele conseguisse entrar em casa eu podia nem estar aqui para fazer queixa porque ele podia ter-me matado. E eu ainda não me livrei dele, porque ele está solto todo o dia. Eu posso até mudar, mas tenho de manter o meu trabalho porque tenho o meu filho para criar. Se eu vim fazer queixa é para vocês me ajudarem”. Sim. Sim. O procurador indicou então o caso para “outro sector” e disse que depois a chamavam. Até hoje. Faz um ano em Março…
Até hoje o ex-companheiro diz que ela é “a mulher da sua vida” e fica nervoso, descontrolado, quando a vê. Até hoje ela vive com medo.
Mas Luísa não morreu. Sequer foi agredida. Não é VBG, diz a Justiça.
Sete casos de femicídios num só ano deixam clara uma coisa: chegou o momento de reflectir a luta contra a VBG em Cabo Verde. O momento de “valorizar o que foi bem feito, de continuar a trabalhar nesta linha, mas também de abrir novas linhas de trabalho”, aponta Iris Labrunie, técnica do ICIEG.
Na próxima semana, continuaremos a abordar esta problemática, o que foi feito, onde estamos, outras repostas, e principalmente as perspectivas de novas abordagens, nomeadamente ao nível das masculinidades, que se abrem.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 894 de16 de Janeiro de 2019.