Foram anos de intenso trabalho para o empoderamento das mulheres cabo-verdianas, anos de desconstrução de estereótipos de género, de combate à VBG. Houve resultados? É inegável que houve, mas a questão é que o país ainda se encontra longe do patamar que se pretende. O trabalho foi intenso, mas em determinadas vertentes não tão eficiente quanto deveria ter sido. Houve falhas pelo meio que é preciso identificar e colmatar.
Aguarda-se a publicação do III Inquérito Demográfico de Saúde Reprodutiva, que trará dados sobre o estádio da VBG em Cabo Verde. O anterior, de 2005, mostrava bem a naturalização desta violência. Entretanto, um estudo do ICIEG, de 2017 permitiu já fazer uma “Avaliação do estágio de implementação da Lei VBG”, seis anos volvidos desde a sua implementação (ver caixa). A avaliação corrobora: houve “sementes”, embora seja ainda necessário trabalho, articulado, para que os frutos sejam os desejados.
Aliás, há quem discorde do, ainda que relativo, sucesso das políticas e acções de género em Cabo Verde, particularmente no que toca à VBG. Encontramos no terreno pessoas que lidam com esses casos diariamente e nos dizem: “Estou no terreno há 20 anos e digo, o que ‘passam’ sobre a VBG é falso”. Tremem as ilusões de conquista, pelo menos de larga escala.
Persistem músicas e outros produtos culturais, atitudes e outras acções sociais, que se configuram como VBG e são assimiladas com naturalidade pela sociedade. Aliás, “o problema da naturalidade não é o que tu admites que te façam a ti, é o que tu vês como natural à tua volta”, alerta Carlos Reis, da Laço Branco.
Afinal, onde estamos, na luta contra a VBG? Para onde vamos?
Mas voltemos ao início. A discussão é antiga, mas vale a pena ser relembrada pois toda esta problemática começa aí. Do que estamos a falar quando falamos de género? Como explica a antropóloga e activista Celeste Fortes, “a nossa identidade de género é uma construção social e cultural. Ou seja, a forma como eu me posiciono, como eu vivo, interpreto, como represento a minha identidade de género é resultado de um contexto social e cultural onde eu vivo”. E este contexto “cria expectativas em relação à forma como homens e mulheres se comportam”.
Precisamente por serem papéis atribuídos social e culturalmente, estes tendem a alterar-se, ainda que de forma muito lenta, sendo necessárias “mudanças sociais, culturais, políticas e económicas” para que se dê, efectivamente, a mudança.
Elas
Nas últimas décadas, registaram-se mudanças e a todos os níveis. Principalmente para Elas. O acesso à educação e formação, ao mercado de trabalho, por exemplo, foram fundamentais. A par disso – e directamente interconectada com esse acesso – ocorreu a acção das próprias organizações governamentais, do Estado em si, para aquilo que se chama de empoderamento, “dar poder”, às mulheres, para que elas saibam quais são os seus direitos”, como observa a ministra da Família e Inclusão Social, Maritza Rosabal.
Essa aposta em primeiro lugar nas mulheres tem obviamente a sua razão de ser: foram elas as grandes injustiçadas da História; a metade da Humanidade que viu ser negados mais direitos. São também elas quem, num contexto onde todos são vítimas dos mesmos estereótipos, sofre as maiores violências.
Em muitos casos, ainda, o empoderamento é mesmo uma questão de sobrevivência, algo quase obrigatório para a mulher cuidar de si e dos seus descendentes, como reflecte Carlos Reis. “Não era suposto teres de estar a empoderar gente para sobreviver”, lamenta.
Muito foi feito, mas a desigualdade persiste. Bem como os alvos da violência.
A aposta nas mulheres ainda é necessária. Muito necessária. Mas a discriminação, ainda que se diga ‘pela positiva’, tem de ser revista.
Sendo tudo fruto social, é preciso trabalhar equilibradamente o ‘outro’ lado que compõe a sociedade. E é nesse contexto que urge debater as masculinidades e perceber, nomeadamente, “porque é que os homens usam a violência como ferramenta para subjugar as mulheres”.
A raiz da violência
O que é que papéis socio-culturalmente atribuídos têm então a ver com violência?
“A violência faz parte do nosso instinto. Somos seres humanos e temos em nós essa questão da violência. O que se passa é que somos educados, somos socializados para gerirmos esse instinto para a violência enquanto seres sociais”. Aprendemos a gerir essa violência.
Não se pode negar, até certo nível, a biologia. Mas o problema de género não é a biologia. O problema é quando essas diferenças biológicas se convertem em motivo para subjugação de outro ser humano, neste caso em função do sexo. Esta óptica já nos havia sido colocada pela ministra Maritza Rosabal, que tem um longo percurso de activismo pela igualdade de género em Cabo Verde. Educação e processos de socialização são, pois, a chave principal nesta problemática. A todos os níveis. Não só da violência manifesta, mas de toda a relação de poder.
Celeste Fortes reforça a questão. “As expectativas sociais e culturais que se tem sobre os homens atribuem-lhe o poder, tanto no espaço público como no espaço privado. E este tem de ser exercido sob pena dele perder a sua masculinidade”. Mesmo que pela violência, que em muitos casos ainda é melhor aceite do que a perda de masculinidade.
Quebrar estereótipos e educar para a “gestão” dessa violência é pois o caminho. E estamos a falhar.
O mercado do género
Todos vivemos numa sociedade e dela herdamos o passado, as suas repercussões no presente, enquanto caminhamos para um futuro comum.
“Temos trabalhado muito a reinvenção do papel da mulher”, resume Carlos Reis. Mas pouco trabalho feito a reinventar o outro papel, muito embora seja de salvaguardar que “não se deixou de trabalhar o contexto da ressocialização” dos homens cabo-verdianos, sublinha o jurista.
Seja como for, apesar de iniciativas como a própria Laço Braço, ou a criação de um Programa para agressores de VBG, entre outros, reconhece-se que o trabalho centrou-se essencialmente nelas. Por serem a parte que mais precisava, mas também por razões de conveniência, mais concretamente, de acesso ao financiamento de projectos.
Carlos Reis lembra por exemplo um fórum internacional onde participou – enquanto membro da Laço Branco, e em que as organizações feministas, compostas por mulheres, criticavam as organizações de luta pela igualdade de género compostas por homens, por estar a competir em “busca de fundos” para essa questão de igualdade de género.
Nesta corrida aos fundos, Celeste Fortes é também bastante crítica.
“O discurso da igualdade e equidade de género é moda e é um mercado”. A via de acesso mais fácil a esse mercado são as mulheres, principalmente se há violência envolvida. “Se eu enquanto investigadora submeter um projecto a financiamento para promoção da igualdade e equidade de género pela via do masculino, eu não ganho. Se eu submeter um projecto para trabalhar as masculinidades, não ganho, mas se submeter um projecto a dizer eu vou trabalhar a VBG nas mulheres, já ganho”, diz.
O mercado internacional está a funcionar assim, e o país absorve essa agenda. “É preciso ter coragem de dizer essa agenda não nos interessa. Esta agenda de promoção da igualdade e equidade de género focada apenas nas mulheres, não nos interessa porque desde a independência, ou muito antes da Independência, temos estado a trabalhar o empoderamento das mulheres com foco excessivamente nas mulheres e é preciso dar atenção aos homens”, aponta a investigadora e activista.
“A agenda da promoção da igualdade e equidade de género centrada em exclusivo nas mulheres tem que frear para incluir os homens e todas as identidades de género possível. Porque se vamos a 200 a hora, e a outra agenda – das masculinidades – está muito, muito incipiente, temos este desequilíbrio. E é uma questão de desenvolvimento” do país, sublinha.
Temos em suma de enquadrar melhor os homens na sociedade de hoje, trabalhando estereótipos (e a VBG) em todas as frentes. Evoluindo sem deixar ninguém para trás.
Os “novos” caminhos
Sete femicídios acordaram a sociedade. “Esta questão está a adquirir uma grande atenção social, o que é fundamental porque de facto é um problema que tem a ver com todo o mundo e todos têm que estar implicados nessa mudança”, refere Rosana Almeida, presidente do ICIEG, que se mostra esperançosa de que esta reação social de facto leve “a alguma mudança”.
E estes femicídios provaram claramente aquilo que, embora já se sabendo, ainda não estava tão presente na ordem do dia: não basta empoderar mulheres, não basta incentivar à denúncia.
“Há elementos novos, a nossa sociedade evoluiu e não podemos continuar com os mesmos parâmetros, com paradigmas antigos. Temos de mudar paradigmas e os homens têm de estar conscientes disso, porque se trata de relações. Tem de haver relações de equilíbrio”, destaca a ministra da Família e Inclusão Social.
“Temos que mudar os procedimentos tanto no sistema de protecção, como de trabalho com os próprios homens”, diz a ministra. Salvaguardando o bom trabalho já feito pela Lanço Branco, há que “fortalecer todos estes diálogos de homens com homens, de novas masculinidades, de novos comportamentos, mostrar estes valores que são universais: o respeito pelo outro e pela vida do outro”, aponta Maritza Rosabal.
Vai haver então mudanças no trabalho de género e em particular da VBG em Cabo Verde?
“Logicamente”, promete a ministra.
Ainda há dúvidas sobre o que é VBG
O estudoAvaliação do estágio de implementação da Lei VBG de 2017 concluiu que houve “esforços incomensuráveis e os resultados positivos visíveis” na implementação da Lei VBG em todas as suas vertentes, apesar da lei ainda não estar integralmente implementada.
No âmbito da sensibilização e prevenção, a população tem hoje maior conhecimento da lei e da própria VBG. Contudo, ressalva-se que o conceito de VBG, “como consta da Lei, ainda suscita dúvidas, tanto por parte da população em geral, quanto dos seus aplicadores”.
Na assistência e protecção o estudo destaca “o trabalho da Polícia Nacional para a melhoria do atendimento às vítimas” que veio garantir “uma maior confiança por parte das vítimas”. Na área da saúde, a avaliação não é positiva considerando-se que as acções nesta área “não surtiram ainda o efeito desejado”.
No que toca à punição dos agressores, a pendência dos processos é apontada como um factor negativo. O estudo é de 2017, não tendo sido, portanto, avaliada a enorme quantidade (cerca de 3000) de processos arquivados. Pela positiva verifica-se que, após a entrada em vigor da Lei, se verificou maior celeridade. O estudo aponta ainda a importância da criação de juízos especializados, como previsto no II PNVBG para atingir os objectivos previstos na Lei. Por seu turno, o programa de reabilitação de agressores é também apresentado como boa-prática”.
“Iniciativas foram tomadas, as sementes lançadas, mas para uma implementação efectiva da Lei VBG e sua Regulamentação ainda se verifica um longo caminho a ser percorrido”, conclui-se, apelando a articulação e assunção de responsabilidades de todos os sectores.
Alguns marcos da luta contra a VBG em Cabo Verde
1980 –Cabo Verde torna-se um dos primeiros países aratificar aConvenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW).
2005 –OII Inquérito Demográfico de Saúde Reprodutiva apurou que 1/4 das mulheres tinha sido vítima de violência no último ano, por parte do parceiro. Mostrou ainda que 1/5 da população tolerava ou aceitava o recurso à violência física sobre as mulheres, por parte docompanheiro. Em breve será lançado o III inquérito, que permitirá perceber a evolução da problemática.
2009 – É fundada a Laço Branco - Rede de Homens para promoção da igualdade de género e combate à VBG, criada por iniciativa do ICIEG.
2011– Nodia 11 de Março entra em vigor a Lei n.º 84/VII/11, mais conhecida por Lei sobre a Violência Baseada no Género (VBG). Com vários eixos de acção, esta lei visa não só reprimir o crime VBG como apostar na prevenção do mesmo.
2014– Decreto-Lei n.º 8/2014 vem regulamentar a Lei Especial sobre a VBG.
2018– Inauguradas primeiras Casas de Abrigo, acolhimento e de passagem para vítimas de VBG. (De referir que algumas ONGs já proporcionavam esta resposta às vítimas.)
2019 – Lei da Paridade deverá ir à Assembleia Nacional muito em breve. Esta “será a maior iniciativa legislativa em matéria de igualdade de género desde a aprovação da Lei VBG”, aponta o ICIEG.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 895 de 23 de Janeiro de 2019.