Hoje Ministra da Justiça, Joana Rosa cumpriu três mandatos como parlamentar, sempre muito ligada às questões da Justiça. “Sinto-me à vontade a falar do sector, devido ao meu envolvimento ao longo de anos no parlamento”, salienta.
Pertenceu à Primeira Comissão, inicialmente como elemento, depois como vice-presidente e, por fim, como Presidente. A Comissão, como a própria diz, foi uma “escola” que a ajuda a assumir a responsabilidade de agora tutelar a Justiça.
Joana Rosa participou também em comissões paritárias que se foram criando. Da revisão constitucional, em 2010, à aprovação do pacote sobre a Justiça, em 2011, passando por basicamente todos os outros momentos fundamentais na criação do quadro legislativo nacional, a ministra marcou sempre presença, dando o seu contributo de “forma muito intensa”, tanto na oposição, como na situação.
Da revisão constitucional lembra as propostas que o seu partido MpD, então oposição, apresentou e que apelida de “ousadas”. Propostas que juntamente com as da situação, e encontrando “consensos à volta de matérias importantes”, hoje moldam o quadro do sector da Justiça. Foi dessa revisão que saiu uma nova composição dos conselhos superiores da magistratura judicial (MJ) e Ministério Público (MP). Foi aí que a presidência do MJ deixou de ser exercida cumulativamente pelo presidente do Supremo Tribunal (STJ). Várias outras medidas, foram tomadas. A carreira da Magistratura foi alargada com a criação do juíz conselheiro, no topo, e passaram a ser estes a compor o STJ.
Criaram-se novos tribunais (Tribunal de pequenas causas, tribunal de execução de penas, Tribunais de relação…) No MP criaram-se novos departamentos. Enfim, ao longo desses anos todo o paradigma da Justiça mudou.
Passada cerca de uma década sobre a revisão constitucional, e da aprovação do pacote a sua avaliação é que “valeu a pena. Temos tido bons resultados”.
Contudo, as dificuldades ainda são muitos. E os desafios também. Mas a ministra da Justiça está confiante. Com as condições que estão a ser criadas neste seu mandato o futuro do sector é bom. “Os cabo-verdianos podem confiar”, garante.
Entra na tutela da Justiça num momento em que o sector enfrenta várias acusações, algum descrédito na sociedade e até mesmo alguns “ataques”. Como vê esta situação?
É verdade, tem havido muitos ataques, mas de forma injusta. De forma injusta, porque se o ataque estivesse virado para a ineficiência da justiça, até podia estar de acordo [poderiam ser válidos]. Mas esses ataques são dirigidos às decisões dos tribunais sobre um ou outro determinado processo. E isso não pode de forma alguma servir para se concluir do não funcionamento ou do funcionamento deficiente da Justiça. Pelo contrário, a Justiça funcionou, e tem funcionado. Mesmo do ponto de vista dos processos mediáticos, que nos últimos anos temos vindo a ter, a conclusão que se tira é que a justiça funcionou.
É verdade que a população pode manifestar-se, no Estado de Direito, mas as decisões judiciais são para cumprir, e há vias de recurso para quem não estiver de acordo com uma decisão. Temos recursos legais para recorrer da decisão e para demonstrar às instâncias superiores a bondade dessa insatisfação.
O que temos tido nestes últimos anos tem sido uma tentativa de descredibilizar o sector. A justiça é um dos pilares fundamentais do Estado de direito. Não digo que os juízes, os magistrados, não possam ser objecto de críticas – a democracia também permite isso - mas temos, dentro daquilo que é o quadro legal e constitucional, vias de recurso, para que cada cidadão possa, na instância própria manifestar-se. A nossa arquitectura jurídico-constitucional dá total garantia, a qualquer cidadão, a qualquer empresa que se sinta prejudicada no seu direito, de fazer recurso à justiça, fazer funcionar à justiça, na primeira instância e nas instâncias de recurso.
Portanto, algumas manifestações havidas, resumem-se à percepção que se tem, ao que as pessoas pensam e não daquilo oque é o produto do probatório ou da prova, que se faz durante o julgamento de um determinado caso. A justiça funciona com base nos tribunais, que quando tomam uma decisão, fazem-no com base em provas, para condenação ou para a absolvição. Confio, sei, que os tribunais estarão sempre a aplicar a lei e a fazer funcionar a justiça.
Uma das acusações é de um certo corporativismo no sector. Recentemente, o Presidente da CSMJ disse que é injusto e “uma falta de respeito” afirmar que a inspecção não funciona, mas a sensação que as pessoas têm é que realmente não funciona. Há tempos, chegou a ponderar-se se haveria necessidade de ser um serviço exterior aos Conselhos Superiores. No seu mandato, quais as propostas?
Eu concordo com aquilo que disse o presidente do CSMJ. Nós criamos, na revisão constitucional de 2010, os serviços de inspecção. Já havia na Constituição anterior mas não nos moldes criados em 2010, com um serviço composto por um inspector superior e no mínimo 3 inspectores. Foi essa opção que tomámos na revisão de 2010. Ora, os Conselhos têm feito um esforço para se fazer funcionar os serviços de inspecção , e estes têm funcionado, mesmo com alguns problemas, com desafios. Dentro da carreira da magistratura houve dificuldade, por exemplo, de se convencer os magistrados [a integrar o serviço] porque não há carreira para as inspecções. Portanto, o magistrado tem de se disponibilizar e não havendo disponibilidade, tem-se problemas. Não foi o caso, os dois Conselhos conseguiram fazer funcionar os serviços de inspecção. , É verdade que a inspecção da Magistratura Judicial funciona com um único inspector, isso é um problema, mas funciona. As inspecções classificativas não têm faltado, mas também as inspecções às instancias, e até classificação. Há uma outra vertente, que tem a ver com a vertente disciplinar e a inspecção também tem funcionado. Temos tido casos de infracção disciplinar, com processos disciplinares, com punição, tanto para os magistrados, quanto para os oficiais de justiça. Tudo isso demonstra que, na verdade, a população, de certa forma, não está a ser justa para com o funcionamento dos tribunais.
É certo que há um outro problema. O funcionamento dos tribunais nem sempre tem merecido aquilo que é a comunicação com a população, mas isso é normal. A instituição tribunal, ao longo de anos e quase em toda a parte, é uma instituição reservada, tem problemas em comunicar com a sociedade, mas a verdade é que tem funcionado.
Agora, precisamos de melhorar os serviços de inspecção, preencher as vagas de inspecção propostas... Estamos a trabalhar com os Conselhos Superiores na criação de uma carreira para a inspecção, uma para o MP e uma para os tribunais, em que o topo de carreira, seria no caso do MP, o Procurador Geral adjunto, e como inspectores, os procuradores de círculo. Na magistratura judicial, teremos um juiz conselheiro, de topo da carreira, como inspector superior e vamos ter também inspectores com a categoria de desembargadores, ou, pelo menos, de magistrados de primeira classe. Vamos introduzir esta alteração, porque precisamos de evitar aquilo que muitas pessoas pensam e falam, em relação aquilo que é o corporativismo. Mas não falo só em corporativismo. Falo em relação ao problema que um colega tem em avaliar o outro colega, o que é normal, é natural, ainda por cima em uma sociedade pequena, em que todo o mundo se conhece. Conhece colegas de profissão, trabalham juntos durante muitos aos, fazendo travessias de momentos bons e maus, juntos…
Então não seria melhor alguém “externo”?
Há países que tomaram esta opção, podemos caminhar por essa via, mas teríamos de fazer a revisão constitucional. Com o quadro constitucional que temos neste momento, não é possível fazer isso. Então, o que podemos fazer é criar uma carreira de inspecção. Com a criação dessa carreira, estamos a criar um corpo de juízes e inspectores, que vão trabalhar única e exclusivamente, enquanto estiverem na magistratura, na inspecção. Desta forma, o inspector não fica a pensar que amanhã, quando voltar, possa ser prejudicado, ou que o visado é um colega, ou que poderá haver consequências. Estamos a trabalhar o Termos de Referência (TDR) e vamos apresentar ao parlamento uma proposta de lei em relação a esta matéria, para que possamos pôr as inspecções a funcionar, a 100%, tanto no MP como na Magistratura Judicial.
Desta forma, estaremos a resolver um problema. Mas, vamos trabalhando também para uma alteração do estatuto dos magistrados porque precisamos alterar aquilo que é o figurino actual da avaliação. Por exemplo, um procurador que tenha dado despacho de prescrição, esse despacho não ter a mesma ponderação de uma acusação, em que houve um longo processo de investigação.
Falou das prescrições. Temos uma outra grande questão na Justiça, que são os casos arquivados. Na Praia, por exemplo, e de acordo com o relatório 2020/2021 do MP, entraram 10.618 processos, foram resolvidos 12.738, mas desses mais de 11 mil são processos que foram arquivados. Quando um processo é arquivado há a sensação de que não foi feita Justiça…
Exactamente, os processos arquivados, são precisamente processos prescritos. A prescrição é a denegação da justiça, e é isso que vamos combater. Estamos, neste momento discutir com os conselhos, a apresentação de um plano de redução de pendências, que terá que trazer um, por exemplo, acções que os Conselhos terão de desenvolver, e notas em relação à resolução das pendências. Se para a magistratura judicial, a questão da prescrição não se coloca, já para o MP, sim, porque um processo dá entrada e se fica
durante longos anos à espera, fica pendente ate prescrever. Portanto, há denegação da justiça de forma clara. E a sensação da não justiça leva a descontentamento. As pessoas têm razão. Há uns anos, fiz uns cálculos, que fui discutindo com uma pessoa que entende algo sobre a matéria, e a conclusão que tiramos é a seguinte: cerca de 70% dos processos-crimes prescrevem, vão para os arquivos. Só 25% é que recebem acusação, e mesmo entre esses há uma percentagem que depois ‘cai’, por falta de provas, processos às vezes malconduzidos, uma série de situações que podem ocorrer. Então, o que vai a julgamento é um número ínfimo, uma percentagem pouca e em termos de condenações, ainda menor. Isso quer dizer que precisamos de combater a prescrição. É isso que estamos a discutir, no plano de pendencias. Já lançamos aos conselhos superiores a proposta, por exemplo de trabalhar a mediação penal. Seria uma solução, seria receber um processo e, à entrada, tentar a mediação penal, dessa forma as partes ficariam logo, ad initium, satisfeitas em relação àquilo que é actuação rápida, e àquilo que é o consensual, em determinado caso.
Hoje temos, por exemplo, um grande número de processos pendentes nos tribunais de crimes contra a honra. Porquê? Fomos aprovando, ao nível do parlamento, várias alterações legislativas com processos urgentes, por exemplo, a VBG, e esses outros processos, que não são urgentes foram ficando … São poucos os casos de crimes contra a honra que chegam ao fim, porque o MP não tem tempo de analisar os processos. Assim, vamos propondo a mediação penal, logo ad initium, e vamos propor também ao parlamento no debate sobre a situação da Justiça, novas medidas para que possamos reduzir essas pendências. Normalizar a situação. Mas a normalização da situação passa necessariamente pelo funcionamento do Sistema de Informação da Justiça, o SIJ.
Outra questão importante. Em que ponto está o SIJ, que até agora têm sido… um “elefante branco”?
O SIJ é de 2009 e funcionou deficientemente em comarcas piloto. Houve um desligar, de certa forma.
Primeiro, um dos factores - isso foi consensual - foi o sistema trabalhado pela Universidade de Aveiro. O Estado investiu muito na formação de técnicos, mas depois o sistema veio e não teve muito desenvolvimento. Paralelamente, também se verificaram outros problemas. A gestão que aprovámos no parlamento. O conselho de gestão funcionou com dificuldades, porque colocar um magistrado para gerir um sistema que ele não conhece, em que fica praticamente atrelado aos técnicos, claro que traria dificuldades em por isso a funcionar. Mas nós aprovámos isso... era algo novo na altura, não tínhamos elementos, mas hoje sim, temos.
O SIJ passa agora para o NOSi? Vai entrar numa nova fase?
Uma das minhas primeiras acções, logo que entrei no Ministério, foi fazer a avaliação do sistema. O NOSi fez essa avaliação e apresentou-nos duas opções: a primeira é de se trabalhar a plataforma existente. A segunda seria começar tudo de novo. Nós, por uma razão, não só de custos, mas também de aproveitar aquilo que pode de ser aproveitado, estamos a negociar com o NOSi, que ficou de nos apresentar uma proposta técnica e uma proposta financeira, visando o desenvolvimento de uma plataforma que pudesse criar melhores condições de funcionamento, que pudesse ‘atrair’ também. Hoje a informatização é incontornável, o mundo evolui a uma velocidade enorme, então os magistrados também têm essa consciência. Mas houve também [outras] dificuldades. Temos, desde logo, um problema: a rede de internet, não funciona. Também os equipamentos estão, muitas vezes, obsoletos, e há várias outras situações, como a formação, o acompanhamento, porque para se instalar um sistema desse tipo, é necessária formação e um acompanhamento contínuos das várias comarcas piloto. O que vamos fazer agora? Com a avaliação, já há um consenso com os dois conselhos superiores. Vamos aguardar a proposta técnica e a proposta financeira do NOSi.
Mas o SIJ será fundamental para a nossa Justiça, as pendências processuais serão certamente resolvidas com a implementação e entrada em funcionamento em pleno do sistema. Entrei no governo com esta incumbência. Uma das missões que eu tenho é fazer funcionar o SIJ. E também criar condições para que o Tribunal da comarca da Praia possa ter um espaço digno.
O Campus da Justiça…
Sim. Estamos a trabalhar o campus de justiça do Palmarejo. Já temos uma equipa formada, que deverá deslocar-se a lisboa para se inteirar do funcionamento, daquilo que é layout do campus de justiça de Lisboa. Desta forma, estaremos em condições de vir implementar aquilo que é um grande projecto desta governação, desta legislatura que é o campus de justiça.
Que ganhos concretos trará?
Muitos. Vamos criar condições, por exemplo, o maior problema do tribunal da comarca da Praia tem a ver com a falta de salas de audiências, no Palácio de Justiça. Os juízos, às vezes com 2 juízes, fazem uma escala, o que quer dizer que cada juízo utiliza a sala de audiências uma vez por semana. Isso atrasa os processos, os julgamentos, atrasa as diligências. Vamos criar condições para que cada juízo possa ter uma sala de audiências. Vamos trabalhar também para que o Campus de Justiça tenha fibra óptica, criando condições para que não haja quebra do sistema. Vamos modernizar os equipamentos dos tribunais e, paralelamente, vamos fazer uma nova organização das secretarias judiciais. Para isso, estamos a trabalhar com o Ministério da Justiça de Portugal, vamos ministrar formações, já no próximo ano, sobre a organização das secretarias, o atendimento.
O programa de governo fala também na Escola de Formação Jurídica e Judiciária, que ficará situada na antiga escola de Negócios da UNICV. Já estamos a trabalhar no TDR em relação a esta matéria e vamos depois ter todas as propostas visando a implementação deste que é um grande desiderato nosso, e que é a criação de condições para que possamos fazer a formação contínua dos magistrados, dos oficiais de justiça, dos conservadores notários, dos oficiais das conservatórias, e dos agentes prisionais, aqui no país. Já temos um corpo significativo de magistrados reformados, jubilados, advogados com uma alta preparação, que podem ser aproveitados para leccionar e partilhar a sua grande experiência.
Outro desiderato é o Instituto de Medicina Legal…
O pacote já foi objecto de consulta pública, há dias fizemos um fórum para debate, com presença de magistrados, de advogados, polícias, sociedade civil, muita gente interessada em conhecer o que se pretende em relação ao instituto. Vamos para breve trabalhar no sentido de se começar a instalação faseada, tal como diz o programa do governo. O pacote vai ser objecto de alguma revisão, em função do contributo recebido no fórum, e os consultores prometeram entregar o pacote final até Novembro. A partir daí vamos encaminhar o pacote ao conselho de ministros para aprovação.
E ficará sob a tutela da Justiça?
Já consta da orgânica do Ministério da Justiça, mas sendo um instituto público tem um regime próprio. Vamos ter de fazer a aprovação do pacote no conselho de ministros. Temos um desafio: os médicos legistas. Vamos assinar um protocolo no sentido de trabalhar ao nível da cooperação internacional para que possamos ter médicos legistas e formações a fins de fazer funcionar o instituto. Estamos com vários canais abertos com a ONUDC, a embaixada dos EUA, o PNUD. Estamos a trabalhara em termos daquilo que é a urgência em termos de equipamentos de instituto.
Os testes de ADN, por exemplo, deixam a PJ e passarão para lá?
Vão passar para o instituto de medicina legal. Há equipamentos na PJ que vão ter de ser transferidos. O estudo recomenda isso. O Instituto vai ajudar os tribunais, em termos de agilização de processos, de certeza em termos de as provas periciais
Vai melhorar até tratamento das próprias vítimas, que não precisam de se expor tanto?
Exactamente.
Falando da PJ, uma das queixas recorrentes é a articulação entre as polícias e, neste relatório do MP, há mesmo a queixa de que a PJ ficou aquém do desejável. A PJ está na sua tutela...
Como sabe, entrei há pouco mais de seis meses, então ainda não tive muito tempo, mas no pouco tempo que estive, tenho vindo a alterar… A actual direcção tem tomado muitas medidas, e boas, visando criar condições para que a PJ possa funcionar. Temos um corpo de inspectores muito competente, profissionais, vamos agora contar com todos.
O próprio director da PJ mostrou-se um pouco insatisfeito com as pendências e produtividade…
É por isso que ele tem essa incumbência de agregar tudo e todos. De pôr todos a funcionar. Funcionando todos, tratando todos de igual forma, criando melhores condições de trabalho, melhor ambiente de trabalho, certamente teremos melhores resultados nos próximos tempos.
E na articulação, temos vários casos em que é evidente a falta de coordenação entre as polícias? Temos casos em que o individuo é preso pela PN, solto porque a competência é da PJ... Há uma sobreposição?
Isso é um problema de investigação criminal. Não é um problema da Lei da Investigação criminal, é um outro problema. Porque a PJ tem as suas funções próprias, de investigação da grande criminalidade. E a Polícia Nacional, uma polícia de ordem pública, que tem a incumbência de garantir a ordem pública e de tratar da pequena criminalidade. Sendo uma ‘grande’ criminalidade a competência é da PJ e não da PN. Agora, eu já estou no Parlamento há muitos anos, há 3 mandatos, agora no 4.º, e nesses anos não vi nenhum relatório do MP que não tenha criticado o problema de articulação. É um problema de competição interna, é um problema que tem a ver também com a própria organização do MP. Um problema complexo. Como parlamentar, durante esses anos todos, andei a indagar, a tentar entender o porquê desta falta de articulação. Tem a ver com competição entre as polícias, mas não pode haver. A competição é saudável, mas não pode haver intromissão das competências de um, em relação às competências de outro. Cada um tem de agir de acordo com as suas competências e desta forma estaremos a eliminar o problemas que tem a ver com a falta de articulação. O actual director nacional da PJ está ciente, ele tem criado um ambiente de diálogo com o MP, com a própria PN, para que possamos eliminar os ruídos e estaremos certamente nos próximos anos a garantir uma convivência bem mais saudável entre estas várias instituições.
Um factor que condiciona e muito a aplicação da justiça é que muitas vezes os oficiais não conseguem notificar os arguidos. O julgamento de arguidos ausentes, já está previsto no novo Código penal. Como vão resolver isso?
É um problema. Somos ilhas, mas para além disso, se uma pessoa cometer um delito na Praia e fugir para outra ilha, desaparece. Não há mecanismos, de certa forma, de ser controlado, ser apanhado para se apresentar aos tribunais. Às vezes fica um mês numa ilha, no mês seguinte volta para outras, e faz essa movimentação para fugir da justiça. Quando assim é, as pessoas ficam quase que impunes. O que fizemos, na revisão do código penal, foi trazer uma figura nova, ao nosso ordenamento jurídico, que é a contumância, a possibilidade de julgamento de arguidos ausentes.
Mas um outro problema na notificação é que não há toponímia. E, na Praia, se uma pessoa muda de bairro, perde-se o rasto. Não temos como. Então, já estamos a trabalhar nisso. Teríamos certamente que fazer passar essa questão à comissão de protecção de dados, mas pretende-se trabalhar um sistema de localização das pessoas. Entrando um processo, a pessoa deixa os dados sobre a sua localização, havendo mudança de localização essa pessoa teria obrigação de comunicar aos tribunais. Vamos trabalhando com os Conselhos superiores, introduzindo algumas alterações para que possamos resolver essa situação. Entretanto também estamos a trabalhar a criação de condições para que os arguidos que estejam em outras ilhas possam ser julgados à distância por exemplo, via vídeo conferência.
Mas isso ainda já está a funcionar?
Vai funcionar. Por exemplo, não temos cadeias em todas as ilhas, temos 2 cadeias centrais, Praia e São Vicente, temos 3 regionais, Sal, Fogo e Ponta do Sol (Santo Antão). Então, o que vamos fazer, estando esses arguidos presos, vão poder ser ouvidos à distância. Já instalamos salas de vídeo conferência em todos os serviços prisionais. Já estão a ser testados, na Praia já está a funcionar. Vamos criar condições para julgamentos, interrogatórios, etc, à distância. De igual forma, vamos instalar, no tribunal de execução de penas aqui na Praia o sistema de vídeo-conferência para que os tribunais possam ouvir, por exemplo, os reclusos que reúnem os requisitos para a liberdade condicional, ou pedido de precária. O que acontece agora é que o detido tem de ser levado presencialmente ao tribunal de execução de pena. Mas estamos a criar condições para que o tribunal de execução de penas possa ouvir esses reclusos à distância. Já instalamos o sistema nas cadeias, vamos instalar o sistema também nos juízos de execução de penas.
Falando em Penas. Já temos previstas outras penas alternativas, como o trabalho comunitário, mas não está ainda a ser implementado na prática.
Quando se fala em penas alternativas, estamos a falar em penas outras que não seja prisão preventiva. O que estamos a falar é o seguinte: não se justifica tout court estar o tribunal a decretar prisão preventiva, vamos tendo prisões abarrotadas, e sem solução. Porque a prisão per si não resolve o problema. O que vamos criar, estamos a fazê-lo, são condições para que os tribunais possam começar a aplicar medidas alternativas, por exemplo, trabalho comunitário. Porque não aplicar a um arguido que tenha cometido um furto, penas, que não a prisão?
Mas já se fala nisto há algum tempo e nunca se avançou.
O que nós pretendemos é criar um mecanismo, dizer aos tribunais: ‘já estamos em condições para que possam aplicar essas penas’. Vamos trabalhar com os municípios no sentido de serem os serviços sociais dos municípios, sob coordenação do serviço central da direcção geral dos serviços prisionais e reinserção social, para que possam acompanhar a aplicação dessas medidas alternativas por exemplo, o trabalho à comunidade. Esta é uma questão. A outra questão tem a ver com a prisão domiciliária.
Há condições para tal? Montar esse regime exige uma grande estrutura para conseguir monitorar, por exemplo, as pulseiras electrónicas.
Exactamente, não temos condições. Mas vamos criando as condições aos poucos. Por exemplo, os grandes os processos … já estamos a trabalhar TDRs visando a institucionalização das pulseiras electrónicas.
Vamos precisar fazer uma montagem do sistema. Há custos, mas há custos que se justificam de certa forma. Porque vamos tendo as prisões abarrotadas, vamos ter situações até de falta de segurança. Puderam ver recentemente a opção dos tribunais em mandar para custódia do Ministério da Administração Interna… a situação de extradição. Porque não há condições para se fazer de forma diferente. Com a pulseira electrónica vamos poder acompanhar a pessoa submetida a este regime, para que possa ficar em casa, controlada através de um sistema central que vamos criando. Claro que tem custos, mas vamos fazer o máximo e ter o mínimo para que isso possa funcionar dentro daquilo que são os condicionalismo do país.
Passando para a questão do Orçamento de Estado. Tivemos este ano um OE rectificativo, com cortes na Justiça, e impacto nas actividades. Como está a parte da justiça no OE para 2022?
A verdade é que com a pandemia houve restrição orçamental. E a restrição também foi extensível aos tribunais. Afectou sim, afectou a realização de algumas inspecções. O plano não pode ser cumprido precisamente por falta de recursos. De toda a forma, nós estivemos a debater, a fazer a arbitragem do OE 2022 e a fazer a sensibilização ao Conselho de Ministros, no sentido de se levar em conta que o sector de justiça é um sector importantíssimo para a vida do país. Para a criação de bom ambiente de negócios, para a atracção de investimentos externo, para aquilo que é a normalização da vida do cidadão. É um ministério que lida desde o nascimento até à morte, com as pessoas. Portanto, tem de merecer uma atenção especial do ponto de vista daquilo que são os orçamentos. A verdade é que tem havido um aumento substancial dos Orçamentos da Justiça, ao longo desses anos. Comparado com o OE que tínhamos em 2015, hoje temos um orçamento 2, quase 3, vezes maior. Tem havido ganhos e os conselhos reconhecem isso. Precisamos é levar em conta que o MJ deve merecer o mesmo tratamento por exemplo que o Ministério da Educação ou o da Saúde, e é isso que tenho estado a defender na arbitragem política que tenho estado a fazer. Vamos normalizar a situação dentro daquilo que é o quadro de restrição que temos para o próximo ano, mas vamos apresentando medidas ao Conselho de Ministros, de recrutamento de magistrados, de oficiais de justiça, dos agentes prisionais, dos notários e conservadores e desta forma estaremos a normalizar a situação, a cumprir o caderno de encargos que encontramos em relação aos agentes prisionais e que tem de ser cumprido. Portanto, é criar condições para a motivação dos magistrados e de todos quantos trabalham no MJ. Houve um compromisso desde a aprovação do pacote sobre a Justiça de trabalhar o índice 100. há uma proposta dos Conselhos superiores, isso é normalizar de certa forma aquilo que é a grelha salarial dos magistrados. Decidiu-se na altura que se devia desindexar o salário dos magistrados do salário do PR. Temos de fazer isso, e por via disso temos de ter uma grelha salarial para os magistrados, para que possam fazer descontos na Previdência Social, ter protecção na saúde, ter uma reforma digna e condigna. Portanto, vamos trabalhando esse aspecto que tem a ver com a moralização, a criação de condições de trabalho, a motivação das magistraturas e de todo o pessoal que trabalha no MJ e vamos também criando mecanismos de responsabilização na medida do possível.
Mas é um OE é superior ao Rectificativo?
No rectificativo houve rubricas que foram congeladas, a 100%. Em termos de rubricas para as deslocações houve uma decisão geral do Estado na redução.
É um orçamento na mesma linha que o Orçamento do ano transacto, antes do Rectificativo.
Uma aposta da justiça, que é transversal a todas as áreas, tem a ver coma economia, o doing business. O que esperar a esse nível?
Tem havido várias medidas que foram sendo tomadas ao nível das conservatórias, o registo predial, registo automóvel, registo criminal, agora tudo informatizado. Ao nível das conservatórias estamos a trabalhar a informatização dos cartórios, o quer dizer que as escrituras públicas vão passar a ser também informatizadas e vamos melhorar substancial o ambiente de negócios. Em 2022 vamos ter de executar grande parte daquilo que é o programa do governo para esta legislatura. Já começamos a implementar, mas temos de acelerar. Temos pressa, queremos ter resultados em relação aquilo que é a produtividade dos tribunais, e sabemos que o bom resultado dos tribunais não depende só dos tribunais, ou daquilo que é a reforma dos tribunais. Também depende de outras medidas que precisam de ser tomadas como a criação de condições, ao nível das conservatórias, por exemplo. O desafio que temos para o próximo ano é começarmos a prestar serviços online e já estamos a desenvolver plataformas com o SNIAC para que o possamos fazer. São avanços e são desafios que temos de acelerar o quanto antes porque vai melhorar o ambiente de negócios, atrair investimento externo, dar maior a segurança jurídica, dar mais confiança aos cidadãos. As novas tecnologias são o presente e futuro do mundo, e a justiça não pode ficar aquém. O SIJ é um ganho. Vamos também pôr a funcionar o diário electrónico da justiça, passar informações, divulgar. Os conselhos estão a trabalhar na divulgação dos acórdãos, São avanços que vamos tendo. Portanto temos um bom futuro para a Justiça, os cabo-verdianos podem confiar. Há empenho total do governo, da ministra da justiça, mas também, sobretudo, há o empenho dos Conselhos superiores, dos magistrados, dos oficiais de justiça, dos conservadores notários, de todos operadores judiciários motivados para a implementação daquilo que é o novo paradigma para o sector.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.