Há um ano conhecia-se a vontade do governo: extinguir a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC), transferindo as suas competências para o Provedor de Justiça.
Em Julho de 2021, a ministra da Justiça, Joana Rosa, assegurava que o processo não colocaria em causa a protecção dos direitos humanos.
“O que se está a fazer é atribuir a competência à Provedoria da Justiça, um órgão independente, eleito pelo parlamento, com estatutos próprios e que dá garantia em termos de execução”, explicava a governante, para quem a reorganização permitirá “consolidar os ganhos alcançados” e “melhorar o desempenho”.
O anúncio não convenceu a presidente da entidade visada, Zaida Freitas, que expressou claro desacordo com a opção assumida.
“O nosso nível de realização dos direitos humanos precisa de instituições com as características da CNDHC, para estarmos mais próximos, sobretudo, dos grupos mais vulneráveis. A proposta de intensificar as questões de promoção dos direitos humanos ainda é extramente importante em Cabo Verde. Este modelo de juntar o Provedor de Justiça e atribuir-lhe as competências de uma instituição nacional de direitos humanos é um modelo que se adequa muito mais aos países que tenham um outro desenvolvimento”, analisava em meados do ano passado.
Doze meses depois do anúncio, a proposta de lei que aprova o renovado estatuto do Provedor de Justiça chegou na semana passada ao Parlamento (tinha sido apresentada em Abril). A alteração legislativa é um passo fundamental para a efectivação da extinção da CNDHC. Contudo, sujeito a maioria qualificada (tal como a eleição do próprio Provedor), cedo se percebeu que o diploma teria um caminho parlamentar sinuoso, acabando por ser retirado pelo governo, à espera de “negociações” e “consensos”.
PAICV e a UCID são declaradamente contra a extinção da comissão. O líder parlamentar do maior partido da oposição, João Baptista Pereira (PAICV), lembrou nos últimos dias que, ao contrário da CNDHC, o Provedor é um órgão singular, o que implicaria o fim da pluralidade existente no actual modelo, algo que a força política não aceita.
“O Provedor da Justiça é um órgão singular. Portanto, per si, não tem como, a menos que façamos uma alteração à Constituição, criando um quadro para permitir que esta instituição possa ser plural e, eventualmente, assumir essa responsabilidade relativamente aos direitos humanos. Até lá, somos contra a extinção da CNDHC e também somos contra a aprovação do novo estatuto”, comentou.
Do lado da UCID, antes da sessão plenária, a deputada Zilda Oliveira não escondeu as dúvidas sobre a reorganização proposta pelo executivo.
“Um dos motivos [avançados pelo governo] tem a ver com a sobreposição [de competências entre CNDHC e Provedor de Justiça] mas entretanto, quando analisamos essas duas instituições, acabamos por perceber que as competências da Comissão Nacional para os Direitos Humanos acabam por ser muito mais abrangentes. Temos um conjunto de dúvidas relativamente à extinção da CNDHC”, argumentou ao anunciar antecipadamente o ‘não’ à proposta de lei.
Da bancada da maioria, coube a Damião Medina (MpD) expressar a esperança num entendimento alargado.
“Estão-se a criar alguns entendimentos necessários, em todos os players envolvidos, para que se possa,primeiro, agendar e também criar as condições para a sua aprovação. É algo que é necessário e pensamos que os partidos saberão criar os melhores entendimentos”, declarava na antecipação da reunião magna e antes de se saber que o diploma seria retirado da agenda, perante a certeza de ‘chumbo’.
Se o governo conseguir convencer a oposição, a transferência de competências da CNDHC para o Provedor de Justiça ditará que este passe a ser o único órgão do Estado com responsabilidades na área dos direitos humanos.
“Alarga-se o seu âmbito [do Provedor de Justiça] de actuação aos direitos humanos, passando a ser o único órgão da República com tais responsabilidades, constitucionalmente legitimado para tanto, fortalecendo não só a sua actuação, mas também a sua imagem na sociedade e nas relações de cooperação regional e internacional, o que acontece sempre que se concentra num só órgão estas responsabilidades”, lê-se na proposta de lei original.
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CNDHC, órgão plural
A Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC) foi instituída em 2004, enquanto entidade estatutariamente autónoma e independente. Desde a fundação, a CNDHC tem funcionado como órgão consultivo e de monitorização das políticas públicas na área dos direitos humanos. Tem uma composição plural, da qual fazem parte organizações governamentais e não governamentais, com reuniões trimestrais regulares e pontos focais em todos os concelhos.
A promoção da educação para os direitos humanos, direito internacional humanitário e cidadania é uma das competências específicas da CNDHC, a par da participação na elaboração e execução de políticas públicas nessas mesmas áreas. A CNDHC também investiga situações atentatórias dos direitos humanos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1077 de 20 de Julho de 2022.