A questão de um orçamento próprio tem sido levantada pela CNE, ao longo dos anos. Desta feita, o órgão superior da administração eleitoral recorreu ao Provedor de Justiça para levar o tópico ao Tribunal Constitucional. Solicitava-se, assim, que se verificasse se a inclusão da dotação da CNE nas despesas da Assembleia Nacional não violaria a autonomia financeira e administrativa e independência da Comissão, protegida pelo Código Eleitoral e pela Constituição, sendo portanto inconstitucional.
Em concreto, foi requerida (e aceite) a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade do Mapa XII anexo à Resolução n° 87/X/2022 que aprova o Orçamento Privativo da Assembleia Nacional para o Ano Económico de 2023, na parte em que contempla a CNE com uma dotação, no âmbito das despesas da Assembleia Nacional”. No pedido, invocando a independência constitucional da CNE e o Artigo 28.º do Código Eleitoral, que garante à CNE um orçamento privativo, questionou-se a constitucionalidade dessa prática.
O Tribunal Constitucional, após analisar a evolução legislativa e constitucional do regime jurídico da CNE, concluiu que a norma impugnada é, de facto, inconstitucional.
A decisão, plasmada no Acórdão N.º 120/2024, é precedida de uma longa fundamentação em que se recorda a evolução legislativa que veio delineando a centralidade e autonomia da Comissão. Esse histórico culminou no reforço da independência do órgão, na última revisão constitucional (2010), numa alteração que visou assegurar a sua imparcialidade e autonomia, prevenindo interferências políticas, especialmente durante os processos eleitorais.
Entretanto, como se refere, a CNE, antes dependente do Ministério das Finanças para cobrir os custos de funcionamento, passou a ter um orçamento próprio, aprovado conjuntamente com o orçamento da Assembleia Nacional. E este “conjuntamente” é um dos pomos da discórdia.
Artigo 11.º
Mas antes, no Acórdão são também identificadas contradições no Código Eleitoral em relação à própria independência da CNE. Desde logo, destaca-se o Artigo 11.º, que afirma que a CNE é um órgão independente, mas que “funciona junto à Assembleia Nacional”.
Para os juízes do TC, essa redacção é, pois, contraditória e potencialmente inconstitucional. Como argumentaram, a afirmação de que um órgão é independente, mas funciona junto a outro, gera uma incongruência. Essa contradição agrava-se, segundo o Acórdão, após a constitucionalização da CNE em 2010, uma vez que a ligação com a Assembleia Nacional, ainda que esta seja um órgão multipartidário, pode comprometer a sua independência.
O Tribunal Constitucional reconhece que a evolução da CNE se deu no sentido de uma maior autonomia em relação ao poder executivo, mas defende que a sua relação com outros órgãos, especialmente a Assembleia Nacional, é incompatível com o seu novo status constitucional, que exige total independência. Ademais, a constitucionalização da CNE, por si só, já garante a sua autonomia institucional, tornando desnecessária a sua vinculação à Assembleia Nacional.
O Tribunal alerta, assim, neste Acórdão para a necessidade de rever essa redacção, de modo a eliminar a incongruência.
Artigo.º 28
O segundo problema identificado pelo Tribunal Constitucional reside na interpretação controversa do Artigo 28.º do Código Eleitoral, que trata do orçamento da CNE. O Tribunal argumenta que a interpretação que vinha sendo aplicada na prática – a de que o orçamento da CNE deve ser uma dotação dentro do orçamento da Assembleia Nacional – é inconstitucional e resulta da aplicação de uma norma revogada em 2007.
Com a revisão do Código Eleitoral em 2007, o Artigo 28.º passou a garantir à CNE um “orçamento privativo”, aprovado pela Assembleia Nacional “conjuntamente com o orçamento privativo desta”. A controvérsia reside na interpretação da expressão “conjuntamente”, como referido.
Para o TC, isto “simplesmente significa que o orçamento privativo da Comissão Nacional de Eleições é aprovado no mesmo momento e com o Orçamento da Assembleia Nacional”
Assim, a interpretação correcta do Artigo seria a de que a CNE deve ter um orçamento próprio, aprovado em processo legislativo separado do orçamento da Assembleia Nacional.
Durante a apreciação do orçamento de 2023, a CNE pediu que o seu orçamento fosse aprovado separadamente, o que não foi aceite, resultando em que a dotação da CNE fosse incluída nas despesas da Assembleia Nacional, recorda-se.
Esse processo contraria a independência da CNE estabelecida pela Constituição em 2010, considera o TC. Assim, o Tribunal considera que essa prática é inconstitucional, pois limita indevidamente os recursos financeiros da CNE a uma dotação incluída no orçamento da Assembleia Nacional, criando uma situação em que a CNE não pode exercer a sua autonomia financeira plena.
Ainda em relação à norma inferida do Artigo 28.º, parágrafo primeiro, do Código Eleitoral, – segundo o qual o orçamento privativo da Comissão Nacional de Eleições é aprovado como uma dotação inscrita nas despesas previstas pelo orçamento privativo da Assembleia Nacional – não tendo sido pedida a fiscalização de inconstitucionalidade , o TC, “em respeito ao princípio do pedido, não a pode declarar inconstitucional”. Contudo, alerta para a vulnerabilidade dessa interpretação, já que ela sustentou os orçamentos de 2024 e 2025, recomendando que esta questão seja considerada em situações futuras.
A Decisão
Feitos estes “apontamentos”, foi então declarada a “inconstitucionalidade material decorrente do Artigo 1.º da Resolução N. 87/X/2022, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Privativo da Assembleia Nacional, na parte em que contemplou a CNE com uma dotação, no âmbito das despesas da AN, por desconformidade com o princípio da independência da CNE”.
Ou seja, uma decisão que defende que a independência da CNE, consagrada na Constituição, implica autonomia financeira e patrimonial, o que pressupõe a existência de um orçamento privativo, aprovado em separado do orçamento da Assembleia Nacional.
Para o TC, a inclusão da CNE com uma dotação dentro do orçamento da NA subverte a sua independência, criando uma relação de subordinação simbólica e real em relação a um órgão político, neste caso a Assembleia Nacional. Acrescenta-se que na AN estão os próprios actores das eleições, sendo, portanto, susceptível a pressões políticas, sobretudo num contexto em que o partido no poder costuma controlar o Parlamento.
“O que aqui está em causa é a questão de se saber se a Resolução desafiada ao prever uma dotação orçamental inserta nas despesas da Assembleia Nacional é compatível com este estatuto de independência, na medida em que deixa esta entidade numa situação de dependência e de subordinação em relação a um órgão político”, lê-se no Acórdão. Assim, para o TC “é evidente que a norma impugnada é inconstitucional por desconformidade com o princípio da independência”.
Apesar de declarar a inconstitucionalidade da norma, o Tribunal Constitucional decidiu modular os efeitos da decisão, limitando a sua retroactividade. Isso significa que a execução do orçamento da Assembleia Nacional para 2023, incluindo os recursos destinados à CNE, não será afectada. Justificou-se que uma aplicação retroactiva comprometeria a segurança jurídica, dado o número de relações já estabelecidas com base na norma, tanto entre órgãos estatais quanto entre o Estado e particulares
A posição de Aristides Lima
A declaração de inconstitucionalidade da norma, por desconformidade com o princípio da independência da CNE, não reuniu, porém, consenso entre os três Juízes que compõem o TC.
O acórdão também inclui uma declaração de voto do Juiz Conselheiro Aristides Lima, em que este afirma que “não obstante ter concordado com partes essenciais relativas ao estatuto jurídico-constitucional da CNE como órgão independente, previsto na Constituição”, não concordou com a “conclusão quanto à inconstitucionalidade da norma em questão por alegada violação do princípio da independência do órgão”.
Para o Juiz, a integração do orçamento da CNE no orçamento da Assembleia Nacional, como previsto na Resolução n.º 87/X/2022, não configura, por si só, uma violação do princípio da independência. E para sustentar essa convicção, atém o seu argumento ao próprio conceito de independência, que pode ser decomposto em três dimensões: a funcional; a orgânica e a financeira. A nível da independência funcional, o Juiz defende que o simples facto de a CNE funcionar junto à Assembleia Nacional, ou de ter o seu orçamento previsto dentro do orçamento do Parlamento, não afecta esta dimensão. Conforme destaca, a CNE tem exercido as suas competências com normalidade, tomando decisões importantes e agindo com independência em relação ao Governo e a partidos políticos.
Em relação à independência orgânica, Aristides Lima sustenta que a CNE dispõe de mecanismos que asseguram a sua liberdade e segurança no processo decisório. Os membros da CNE são escolhidos pela Assembleia Nacional, com uma maioria qualificada, e não pelo Governo. Além disso, têm um mandato de seis anos, mais longo do que o de uma legislatura (cinco anos), o que lhes dá estabilidade e liberdade de acção. A lei assegura ainda que os membros da CNE são independentes, inamovíveis e não podem ser responsabilizados pelas suas decisões. Conforme sublinha, não há nos autos, qualquer indício de que a CNE tenha enfrentado restrições à sua liberdade ou segurança para tomar decisões.
Na verdade, a CNE “tem tomado corajosamente decisões contra executivos e partidos de diversas cores políticas, como este Tribunal pôde comprovar”, escreve.
Dois exemplos ilustram essa actuação: em 2016, a CNE mandou suspender um evento público durante a campanha eleitoral, decisão confirmada pelo TC. Em 2024, considerou que benefícios concedidos pelo Governo em período eleitoral violavam a neutralidade exigida. “O Governo recorreu para o TC, mas este não admitiu o recurso por extemporaneidade (Acórdão n° 113/2024, de 13 de Dezembro)”, lembra.
Quanto à independência financeira, o Juiz Conselheiro argumenta que esta visa garantir que a CNE tenha recursos suficientes para desempenhar as suas funções sem depender do Governo. Isso pode ser feito por meio de uma dotação orçamental específica para a CNE. A resolução em questão define o montante das receitas e despesas da CNE, configurando, assim, um orçamento próprio. Ele defende que, no âmbito da fiscalização abstracta da constitucionalidade, não se pode afirmar que a CNE esteja desprovida de recursos suficientes para o seu funcionamento ou para o processo eleitoral, pelo que não se pode afirmar que a resolução viola o princípio da independência da CNE.
Um outro aspecto abordado na Declaração de voto é que a afirma “que o simples facto de a lei determinar que a CNE funciona junto da Assembleia Nacional põe em causa a sua independência”. Aristides Lima discorda da ideia de que esta relação comprometa a independência da CNE. Pelo contrário, como destaca, citando o jurista Mário Silva, trata-se de “mais uma dimensão da sua independência, pois a AN é um órgão com composição pluripartidária e o mais transparente órgão de soberania”.
Apesar de discordar da conclusão da maioria “quanto à violação do princípio da independência nas suas distintas dimensões”, Lima reconhece que o legislador não tem cumprido integralmente o disposto no Artigo 28.º do Código Eleitoral, que garante a CNE autonomia financeira e patrimonial, com orçamento próprio aprovado pela AN. Desde 2007, com a revisão do Código Eleitoral, verifica-se, pois, algum, incumprimento. Embora as normas exijam recursos suficientes para o funcionamento da CNE, o debate sobre o seu orçamento não tem recebido a atenção necessária, considera. Nesse sentido, defende que o processo orçamentário deve ser adaptado, garantindo à CNE a autonomia financeira que lhe é conferida pela lei, com a devida discussão e aprovação do seu orçamento pela NA.
Em concreto, o autor propõe que o legislador adeqúe o processo orçamental às normas do Artigo 28.º, garantindo que o orçamento da CNE seja debatido com maior profundidade, tanto na generalidade como na especialidade, tal como acontece com os orçamentos ministeriais.
“O debate parlamentar do orçamento da CNE certamente que pode levar a decisões mais fundamentadas, eficazes e transparentes, o que vai no sentido do reforço da democracia, da instituição parlamentar e da própria CNE”, conclui.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1207 de 15 de Janeiro de 2025.