Foi na sala de sua casa que Benfeito Mosso Ramos teve os primeiros contactos com a aplicação da justiça. O pai era cabo-chefe da Palmeira, figura respeitada e de autoridade assumida por consenso, e durante muitos anos foi responsável pela justiça na localidade.
À falta de um edifício público para o efeito, as pessoas com litígios iam à moradia da família e ali expunham os seus problemas. "O meu pai tentava dirimir o litígio na medida do possível e sempre com o máximo bom senso, na razoabilidade", recorda.
"Encontrei a justiça em casa e esse aspecto terá também influenciado muito a minha opção de seguir o curso de Direito", reconhece o Juiz-Conselheiro. Mas peso terá tido igualmente a dimensão idealista de quem vem "de estratos mais humildes da população": a ambição, talvez utópica, de contribuir para trazer justiça à sociedade.
E foi assim que, chegado o momento de escolher o curso, apesar do gosto também por Economia, o Direito prevaleceu.
Da Palmeira a Lisboa
Benfeito Mosso Ramos nasceu a 6 de Julho de 1959 na Palmeira, codé de seis filhos de uma família humilde. A primeira classe fê-la na sua localidade, na própria capela, porque "não havia um edifício próprio para o funcionamento da escola". Entre Palmeira e Espargos, fez os restantes anos da primária.
Quando terminou a quarta classe, ao mesmo tempo que um irmão, a família enfrentou um dilema: era preciso pagar para prosseguir os estudos e o dinheiro não chegava para os dois filhos. O pai explicou: “Os recursos não dão neste momento para ires para o ciclo, tens de passar um ano sem estudar.”
Passou um ano parado, mas ainda assim considera que ele e os seus irmãos foram “privilegiados”, porque o Sal tinha liceu até ao 5.º ano, algo que muitas ilhas não tinham.
“Mesmo com todas as dificuldades, tivemos oportunidade de fazer todo o ensino”, conta.
Entrou, então, no externato do aeroporto do Sal, criado para filhos de funcionários, mas que também aceitava alunos de fora.
Seguiu-se, no seu percurso, São Vicente, onde concluiu os dois últimos anos do Liceu. Depois, Lisboa e a Faculdade de Direito, anos dos quais guarda "excelentes recordações”. A capital portuguesa acolhia muitos cabo-verdianos, estudantes e emigrantes, que, “de um modo geral, conseguiam integrar-se na sociedade portuguesa, sem grandes traumas, mas preservando também a sua identidade”. A música cabo-verdiana era um exemplo disso, projectando-se com força crescente, com ‘Voz de Cabo Verde’ a encher os espaços onde actuava.
Após terminar a licenciatura em 1985, fez ainda um estágio no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), dirigido por Álvaro Laborinho Lúcio, “homem que deixou uma grande influência em nós, os cabo-verdianos que passámos pelo CEJ".
Os estudantes em Portugal, esses, tinham uma preocupação comum: "Concluir a licenciatura, prepararmo-nos para regressar e dar a nossa contribuição ao nosso país."
O Início
O regresso a Cabo Verde em 1986 marcou o início de um novo capítulo: começa, pouco depois, a trabalhar como Procurador da República em Ponta do Sol, Santo Antão. Uma colocação que vai também marcar a sua vida pessoal. É aí que conhece aquela que virá a ser a sua esposa e aí contraem casamento.
A nível profissional, rapidamente percebe que a sua vocação está noutro lugar da magistratura, onde se procede efectivamente à aplicação da justiça: a magistratura judicial.
"O juiz faz mesmo aplicação do direito, enquanto o Ministério Público faz, normalmente, promoção para que o juiz aprecie e decida”, explica. “Senti que estaria melhor vocacionado para a função de juiz e era também uma oportunidade para um melhor desenvolvimento na minha carreira.”
Foi empossado no cargo pelo então Presidente do STJ, António Mascarenhas Monteiro, que viria a ser Presidente da República. Corria o ano de 1988, e Mascarenhas Monteiro visitava a ilha pela primeira vez. “Ele ficou, de facto, impressionado com a ilha de que só tinha ouvido falar”, recorda.
No ano seguinte, Benfeito foi colocado em São Vicente, onde permaneceu até 1993, "como juiz cível". É, pois, nessa ilha que atravessa todo o período de transição política. E é também a partir do Mindelo que dá a sua “modesta contribuição” para a Constituição de 1992, particularmente no modelo de fiscalização da constitucionalidade aí plasmado.
Logo a seguir, integra o primeiro STJ composto já “na vigência da Constituição de 1992”.
O órgão, que era então simultaneamente tribunal de recurso e tribunal constitucional, passa a ser integrado por cinco membros, designados da seguinte forma: um pelo Presidente da República, um pelo Parlamento e três pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ). Benfeito Ramos é um dos três eleitos pelo CSMJ para um mandato de cinco anos.
Depois, torna-se Inspector Superior Judicial do país e é nestas funções que surge uma oportunidade que o levaria ao outro lado do mundo.
Três latitudes
Entre 2001 e 2003, trabalha em Timor-Leste, "quando o território estava sob administração das Nações Unidas". Sérgio Vieira de Melo, representante especial do Secretário-Geral da ONU, dá-lhe posse como juiz de um painel especial “para julgar os crimes graves cometidos pelas milícias, aquando do processo do referendo para a independência de Timor-Leste".
Eram casos complexos, recorda, instruídos, mas que "dificilmente chegavam ao julgamento, porque a maior parte dos arguidos, que eram indonésios, fugiram para a Indonésia e não eram extraditados". De qualquer modo, foi uma experiência rica, que incluiu trabalho intenso junto dos juízes timorenses, "num sistema de mentoria”.
Quando regressa a Cabo Verde em 2003, um novo desafio o espera no STJ, que ele já conhece bem. É eleito Presidente do Supremo e, por inerência, do CSMJ, num momento em que o país procurava resolver um impasse constitucional que se arrastava há anos.
O STJ funcionava ainda, transitoriamente, como Tribunal Constitucional. O TC tinha sido criado pela revisão constitucional de 1999, mas nunca fora instalado, e faltava entendimento político sobre o caminho a seguir: renovar o Supremo para continuar a acumular funções ou partir directamente para a instalação do TC autónomo?
O impasse prolongou-se. E com ele, o mandato de Benfeito Ramos. Até que, em 2009, o CSMJ tomou posição: não podia aceitar mais indefinições e iria avançar com a designação dos juízes que lhe competia. Foi esse impulso que desbloqueou o processo. Perante a firmeza do Conselho, o Parlamento e o Presidente da República também designaram os seus juízes.
Mas 2009 trouxe também uma decisão pessoal.
Benfeito Ramos, que já tinha sido o primeiro cabo-verdiano a trabalhar em Timor-Leste, no quadro das Nações Unidas, concorreu e entrou no Tribunal da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), tornando-se também o “primeiro cabo-verdiano a chegar à CEDEAO como quadro estatutário".
Por trás da nova partida, várias motivações. Por um lado, Timor-Leste tinha-lhe deixado o gosto pelo trabalho em ambiente internacional, interagindo com pessoas de várias proveniências. Por outro, queria aprofundar o conhecimento da Common Law, sistema anglo-saxónico baseado em decisões judiciais (jurisprudência) e precedentes, diferente da matriz jurídica de Cabo Verde que tem como “fonte principal do direito a lei”.
“Nós citamos a lei, eles o caso ‘tal’, a decisão ‘tal’”, explicita.
Além disso, o Tribunal da CEDEAO oferecia-lhe a possibilidade de trabalhar numa “área interessante, que é da integração regional, mas também na protecção dos direitos do homem”, conta.
“Foi então uma experiência muito enriquecedora para mim”, avalia. E, em balanço do trabalho feito, mostra-se satisfeito pela contribuição dada à Comunidade, "em alguns casos até para a afirmação da jurisprudência do Tribunal da CEDEAO”.
Sobre os casos que marcaram os seus cinco anos no tribunal da CEDEAO, onde viria a assumir a posição de vice-presidente, lembra um, a título de exemplo: o das comunidades do Delta do Níger, que processaram o Estado nigeriano e empresas petrolíferas por violação de direitos económicos e sociais. A poluição causada pela extracção de petróleo estava a destruir o ambiente e a saúde das populações locais. O tribunal julgou procedente a queixa e reconheceu que "teria havido violação dos direitos dos habitantes dessas regiões a uma vida saudável", direito esse lesado com consentimento do Estado da Nigéria.
Regresso a casa
Com nova bagagem jurídica e pessoal, em 2014 Benfeito Ramos volta a casa e encontra mudanças em curso. No ano seguinte, é finalmente instalado o TC, e o STJ passa agora a funcionar exclusivamente como tribunal judicial.
Acontece também uma outra mudança, que no seu entender é “uma das grandes conquistas de que pouco se fala: os juízes do Supremo passam a ser designados através do concurso público”. Participa no concurso, é aprovado e, tal como integrara a primeira composição do STJ em democracia, integra agora a primeira composição escolhida exclusivamente por concurso público.
Mas a instância enfrentava vários desafios. O quadro de juízes conselheiros estava desfalcado. Vários assessores tinham entrado na magistratura, deixando o tribunal sem apoio técnico. E havia o problema maior: "O número de processos acumulados, particularmente na área criminal, onde a questão se colocou com maior acuidade pelo risco das prescrições."
As dificuldades foram "sendo geridas paulatinamente, e o Supremo conseguiu levar o barco a bom porto" sob a liderança de Fátima Coronel, avalia. Com a saída da então presidente, Benfeito Ramos assume a presidência interina em 2020 e em 2022 é eleito Presidente do STJ. Um segundo mandato, quase duas décadas após o primeiro.
São já quase 40 anos de magistratura. Nesse tempo, Benfeito Ramos viu a justiça cabo-verdiana transformar-se profundamente e continua a trabalhar, movido pelo mesmo sentido de dever que sempre o trouxe de volta ao país e pela vocação da justiça. Mas o olhar pessoal não o impede de fazer um balanço crítico do sistema que ajudou a construir: dos marcos conquistados aos desafios que persistem.
***
Iniciou a sua carreira em 1987. Como era a aplicação da justiça em contexto de Partido Único?
Num regime de partido único, é sempre legítimo questionar se a justiça é verdadeiramente independente. Desde logo, o procedimento para a designação dos juízes era diferente do que temos hoje, instituído após a aprovação da Constituição de 1992, e que trouxe uma evolução nesse sentido. Mas, apesar do contexto, os magistrados mais antigos diziam que, no exercício das suas funções, nunca se sentiram pressionados para decidir em determinado sentido, sobretudo no sentido de beneficiar o partido único. Acredito que os magistrados, de modo geral, terão agido ciosos da sua própria independência. Pela minha experiência e pelo que sempre ouvi dos magistrados mais antigos, eles exerceram a sua independência sem pressões visíveis ou notórias de outros poderes do Estado.
A própria organização da Justiça era bastante diferente. Havia, por exemplo, os tribunais de zona. Como é que esse modelo serviu aquele tempo?
Havia uma filosofia do regime quanto à justiça, que defendia o princípio da participação popular na administração da justiça. No papel, essa participação deveria estender-se da base até ao STJ. Enquanto na base teríamos os tribunais de zona, tribunais populares de base, nos escalões superiores teríamos assessores populares. Mas esse princípio de justiça popular restringiu-se aos tribunais de zona. Apesar da previsão legal, nos escalões superiores nunca se assistiu a qualquer resquício de participação popular na administração da Justiça. Portanto, a Justiça Popular foi contida na base, sendo que a nível dos tribunais sub-regionais, regionais e mesmo do STJ, nunca vingou o princípio da participação popular na administração da Justiça.
Com a mudança política, em 1991, surge a Constituição de 1992. Que mudanças se fizeram sentir na Justiça?
A Constituição de 92 rompe, em todos os aspectos, com o sistema anterior da Justiça, e garante a independência dos tribunais, com um Conselho Superior de Magistratura que assegura a independência dos juízes. O CSMJ procede à nomeação dos juízes e, de um modo geral, há toda uma série de garantias que rodeiam a administração da justiça e o próprio exercício da função judicial. Há um salto qualitativo.
Fez parte do primeiro STJ pós-Constituição de 92 e foi presidente deste órgão de 2003 a 2009. Quais eram os principais desafios vividos?
Para mim, o principal desafio que enfrentámos em Cabo Verde durante muitos anos foi termos apenas duas instâncias: a primeira instância e o STJ. Apesar de se poder argumentar que num país pequeno duas instâncias seriam suficientes, atrasámo-nos em ultrapassar essa situação. A acumulação de processos no STJ vem desse tempo, porque era a única instância de recurso. No quadro legal vigente na altura não se deu pelos efeitos perniciosos dessa acumulação. Porém, a partir do momento em que se alterou o quadro legal, nomeadamente com a aprovação do novo Código Penal em 2004, tornou-se evidente que havia processos pendentes há muito tempo, muitos dos quais em risco de prescrever ou mesmo já prescritos. Devíamos ter antecipado, em anos, a criação e instalação dos Tribunais da Relação, criados apenas na revisão constitucional de 2010 e com efectiva instalação em 2016. Portanto, penso que o facto de termos centrado durante muitos anos todas as funções de recurso no STJ terá tido um efeito perverso para o funcionamento da justiça em Cabo Verde.
Quando assumiu a Presidência do STJ, assumiu também a do CSMJ. Dentro da questão da gestão dos tribunais, quais eram as maiores dificuldades de então?
O CSMJ é um órgão constitucional a quem é confiada a responsabilidade de gerir a magistratura judicial. E geria na altura, mas sem uma estrutura como a que existe agora. Como era presidido pelo presidente do STJ, a sua secretaria funcionava nas instalações do Supremo. Faltavam recursos humanos e meios para cumprir cabalmente a missão constitucional. Apesar dessas dificuldades, penso que o CSMJ não terá deixado de cumprir as suas atribuições, mas cumpriu-as com as limitações que existiam.
Também foi Inspector Superior. A inspecção continua a ser motivo de críticas. Como era na altura?
Durante vários anos,a inspecção funcionou de forma muito incipiente ou rudimentar: um inspector e um secretário. Era um quadro insuficiente para dar resposta a todas as demandas. Com a autonomização do CSMJ, a partir da revisão constitucional de 2010, o serviço de inspecção ganhou algum dinamismo. Sei que a expectativa das pessoas é vê-lo a funcionar com maior dinamismo ainda. Há reparos, mas a minha posição pessoal é que estamos a caminhar no sentido de pôr o serviço de inspecção judicial a funcionar na plenitude. Nos últimos anos têm-se registado avanços. As críticas são legítimas, mas peço apenas que se confrontem com os factos. Neste momento, há juízes que são avaliados, tem havido inspecção ao desempenho dos juízes, fazem-se concursos de promoção. Nos próximos dias, chegará ao STJ uma nova Juíza-Conselheira, seleccionada em concurso, e com base na classificação atribuída pela Inspecção Judicial. É prova de que a Inspecção está a funcionar. Aliás, este é um dos grandes avanços que conseguimos na Justiça e que muitas vezes não é citado. Os juízes chegam Supremo por concurso público, exactamente porque são avaliados. Há um serviço de inspecção que é fundamental para identificar quem tem aptidão para essas funções.Fazemos reparos ao serviço de inspecção judicial, mas ele, com as suas limitações, tem estado a cumprir o seu papel.
O quadro do STJ já não está completo?
É um processo de renovação gradual. O Conselheiro Anildo Martins vai sair e entrará a novel Juíza-Conselheira Rosa Vicente, vinda do Tribunal da Relação de Sotavento. Não haverá qualquer hiato, o que é também um indicador de que, mesmo com as dificuldades, o CSMJ tem estado a cumprir com as suas responsabilidades. Com a devida antecedência, preparou os concursos e seleccionou os candidatos.
Falando ainda da inspecção. Além do corporativismo, não se torna difícil avaliar os colegas num meio tão pequeno? Sentiu isso?
Reconheço que a tarefa de inspector não é fácil num meio pequeno e há sempre algum constrangimento em inspeccionar. Às vezes, leva a inimizades entre colegas, porque acham que o inspector terá sido injusto. Mas quem escolheu a carreira de magistrado, judicial ou do Ministério Público, tem de estar preparado para desagradar. O facto de ser colega de outro juiz não me pode levar a pôr de lado o meu dever ético, o profissionalismo e a objectividade. Tenho de avaliar esse colega com clareza, sendo certo que se a avaliação que lhe é atribuída não o satisfizer, ele pode impugná-la. Tem sempre essa porta aberta. O inspector propõe uma avaliação, mas o órgão que delibera é o CSMJ. É como o juiz: decide com independência, esforça-se por preservar a sua independência e objectividade e às vezes as partes não ficam satisfeitas com a decisão. São os ossos do ofício. Portanto, não devemos subestimar esse aspecto do meio pequeno, mas ainda assim temos condições de pôr de pé um serviço de inspecção funcional e credível no nosso país.
Nos anos 2003-2009, quando era presidente do STJ: quais os casos mais complicados com que lidaram?
Quando se está a apreciar casos, por vezes deparamo-nos com alguns que são intrinsecamente complexos, sobretudo casos cuja decisão pode ter uma repercussão social mais alargada, mais profunda. Os casos mais delicados foram os de arbitragem do contencioso eleitoral. Houve algumas impugnações de eleições. Essas decisões, sobretudo numa sociedade bipolarizada como Cabo Verde, colocavam o Supremo num ambiente de alguma pressão social. Não quer dizer que os juízes se tenham deixado influenciar por essa pressão, mas é sempre um ambiente que não é o mais confortável para um juiz decidir.
Esses casos agora passaram para o Tribunal Constitucional.
Sim, e esse é um dos aspectos em que reconheço enorme vantagem na existência do TC. O TC tem dado uma contribuição muito significativa para a evolução e construção da nossa democracia, particularmente na arbitragem do contencioso político-eleitoral. E qual é a vantagem em relação ao sistema que existia no STJ? É que os juízes do TC são todos designados pelo Parlamento. Há uma maioria de dois terços que força a um entendimento entre as principais forças políticas, e os protagonistas da vida política reconhecem-se nesses juízes porque são por eles designados. Era diferente do formato do STJ que nem sempre dava conforto aos protagonistas políticos. Uma das enormes vantagens da justiça constitucional autónoma é, pois, essa possibilidade de fazer arbitragem do contencioso político-eleitoral por um órgão completamente designado pelo Parlamento. Penso que isso contribui imensamente para apaziguar e normalizar a arbitragem da justiça constitucional.
Esteve também no Tribunal da CEDEAO, onde foi vice-presidente. Como vê o desafio de fazer cumprir as decisões desse Tribunal, dado que nem todos os Estados-membros o fazem?
Esse é, de facto, um dos grandes problemas do Tribunal da CEDEAO: a execução das suas decisões. O Tribunal profere decisões, mas tem experimentado imensas dificuldades na sua implementação, porque esta já depende dos Estados e o Tribunal praticamente não tem poder de coacção para os levar a executar as decisões proferidas contra esses Estados. É que os Estados, no momento de aprovação dos tratados, não querem ficar mal. Portanto, aprovam o tratado, até porque às vezes há pressão internacional para aderir, mas depois não assumem todas as implicações dessa adesão. Indo um pouco mais além da mera instituição tribunal, a CEDEAO tem tentado fazer uma integração regional na África Ocidental, mas mais no plano formal, replicando o modelo da União Europeia. Mas a realidade, a História e as afinidades entre os Estados são diferentes. Diria até que a vontade política de integração é também diferente: não goza da mesma intensidade. Além disso, a CEDEAO depara-se com problemas gravíssimos neste momento: o risco de alguma desintegração progressiva. Há um bloco de países francófonos que saíram. Tudo isso levanta problemas sérios e convida-nos a uma reflexão séria sobre os desafios que se colocam à integração regional. Ver que soluções se poderá adoptar para ultrapassar esses problemas e preservar, em certa medida, a ideia da integração. Penso que a CEDEAO terá que convocar um pouco a razão de ser da sua existência. Na origem era uma integração económica. Depois acelerou-se no sentido da integração política, mas os Estados não estavam preparados para um processo de integração mais ou menos no modelo e quase à mesma velocidade com que se verificou na UE.
Quando regressou da CEDEAO em 2014, que diferenças sentiu no modo de funcionamento da Justiça em Cabo Verde?
Estava habituado a um outro contexto de trabalho, e encontro o nosso sistema de justiça que não está ainda modernizado. Ainda trabalhávamos com um estilo que vinha de há muitos anos e tive que fazer algum esforço de adaptação. Por exemplo, na CEDEAO, tinha assessores. Quando chego ao STJ, não tínhamos, praticamente. Ora, trabalhar num STJ sem assessoria jurídica tem implicações sérias…
Mas, de 2015 para cá houve mudanças nessa vertente?
Sim. Entretanto, assumi as funções de presidente interino e consegui persuadir o governo da necessidade de se criar um quadro de assessores no STJ. O Governo mostrou-se receptivo no quadro da preparação do Orçamento do Estado e, desde então, temos já esse quadro de assessores que tem sido de enorme importância para nos ajudar na redução das pendências. Nos últimos anos conseguimos fazer uma redução extraordinária: de 2016 até 2025, reduzimos o volume de pendências do Supremo em cerca de dois terços, ou seja, neste momento temos um terço dos processos que tínhamos em 2016. Às vezes as pessoas não se dão conta disso ou subestimam esses avanços.
O que é contribuiu para essa redução?
Sobretudo esse trabalho dos assessores. Ajudou a que os juízes pudessem ter tempo para se concentrar nas decisões dos processos, enquanto os assessores ajudam na preparação, nas pesquisas e na recolha do material que é indispensável para a aprovação das decisões. A instalação dos Tribunais da Relação também ajudou. As Relações, particularmente a Relação de Sotavento, têm dado uma enorme contribuição para conter a avalanche de processos que chegava ao STJ. De facto, particularmente na área do cível, os processos que chegam ao Supremo são reduzidos porque terminam praticamente nas Relações. Os processos da área crime continuam a chegar, mas ainda assim em número muito mais reduzido.
Vamos ter também a criação de juízos administrativos.
E espero que venham a ter grande impacto, porque é das medidas mais significativas e de maior alcance que já foram adoptadas em sede da Justiça Administrativa no nosso país, depois de 1984. Isso faz parte do actual pacote da Justiça - a nova lei de organização e funcionamento dos tribunais - , que já veio transferir para o juízo administrativo, o grosso das competências que estavam com o STJ. No horizonte temporal de um ou dois anos teremos o STJ normalizado em termos das pendências do contencioso administrativo.
Entretanto, disse há cerca de um ano, que os cabo-verdianos tinham razão em estar insatisfeitos com a justiça. Temos avanços, mas ainda não estamos onde queremos?
O sentido da minha afirmação é que os cabo-verdianos almejam mais, esperam mais da sua Justiça. E também devo reconhecer que a Justiça continua com disfunções. Tem havido investimentos, uma maior entrega dos magistrados, mas acredito que globalmente podemos fazer mais, por exemplo, em termos de produtividade na justiça. Enquanto houver processos pendentes por muitos anos, as pessoas que forem partes nesses processos estarão insatisfeitas. Mas isso não quer dizer que a justiça não tem conhecido avanços. Tem, mas há margem para se fazer mais. Temos que concentrar-nos na mobilização interna dos agentes judiciais para fazermos mais e preenchermos essa margem de progressão, no sentido de maior produtividade, que ainda é possível.
Espera-se que com o Sistema de Informação da Justiça, que já começa a funcionar, se dê o salto.
O SIJ é uma medida que vai ajudar a dar salto, mas o método de gestão é também importante, e fico satisfeito porque já noto medidas nessa direcção. Já temos a contingentação, ou seja, a fixação do número de processos que cada juiz deve decidir por ano, mas devemos aprimorar os nossos métodos de gestão. Precisamos de uma gestão por objectivos aprimorada no sentido, sobretudo, de responder à principal insatisfação dos cidadãos, que são os processos pendentes há muitos anos. Penso que devia-se fixar em todos os tribunais, como estamos a fixar no STJ, que processos com mais de 10 anos não podem estar pendentes no próximo ano. O SIJ vai ajudar, mas não por si só. É preciso que, primeiro, se fixe o objectivo e depois que haja monitorização ao longo do ano para ver se está a ser cumprido ou não.
Em suma, e olhando a evolução da justiça desde que iniciou a carreira até agora, quais seriam os grandes avanços da Justiça?
Na macroestrutura: a própria Constituição da República. Quando se dá a mudança do regime de partido único para a democracia pluralista, a nova Constituição já cria um quadro mais favorável ao funcionamento da justiça independente. A aprovação da Constituição em 1992 é o ponto de partida, o grande marco na evolução da justiça. Depois, há as mudanças estruturais. Com a revisão constitucional de 2010, veio a criação dos tribunais de segunda instância, os Tribunais da Relação. Outro marco que concorre também para a melhoria da justiça é a criação do Tribunal Constitucional, que veio aliviar o STJ da jurisdição constitucional. E a nível das comarcas, o alargamento da rede dos tribunais a praticamente todos os concelhos. Houve, de facto, um esforço de levar a justiça para mais próximo dos cidadãos. Houve também um esforço de especialização: temos juízos de trabalho, de família, e vamos ter juízos administrativos. Mesmo nos tribunais superiores, houve especialização. No STJ temos as secções, que permitem aos juízes concentrarem-se numa determinada matéria. Portanto, há uma série de ganhos que marcam a evolução pela positiva, embora haja sempre a insatisfação dos cidadãos quanto aos resultados. Mas eu deposito muita esperança no último pacote da justiça, que veio responder a inquietações e reivindicações da comunidade jurídica, dos cidadãos e da própria magistratura. Por exemplo, a transferência para a primeira instância do grosso do contencioso administrativo é um passo significativo. É uma justiça que dá mais garantias porque, começando o processo na primeira instância, há sempre possibilidade de recurso. Quando o processo começa no STJ, praticamente já não há para onde recorrer. Então, sintetizando os grandes ganhos: a Constituição de 1992, que veio, do ponto de vista institucional, garantir a efectiva independência do poder judicial; a organização judiciária que evoluiu com a criação dos tribunais de Relação; a criação do TC, na sua vertente de órgão de arbitragem do contencioso político-eleitoral e da fiscalização da constitucionalidade das leis; a especialização; e, embora seja mais recente e o seu impacto ainda esteja por avaliar, o esforço de informatização dos tribunais que temos assistido de forma mais evidente ao longo de 2025.
Mas nada disso serve, se não houver as pessoas certas para administrar a justiça. Em relação aos magistrados, quais são as características que devem ter? Vê-as nos magistrados actuais?
É um pouco delicado abordar isso, para não sermos acusados de algum elitismo. Mas, um magistrado deve ter uma boa formação jurídica e uma boa formação humana. E há uma característica que é inarredável, que é o bom senso, a razoabilidade. E deve ter também vocação. É um trabalho exigente, particularmente num meio pequeno. Quem enveredar pela magistratura tem que ter consciência de que o espera muito trabalho, não para matar processos ou fazer número, mas para decidir com fundamentação, com sentido de justiça e em conformidade com a lei. Nesse sentido, acho que fez muito bem o poder político em atribuir aos magistrados o estatuto remuneratório que foi agora aprovado. A magistratura tem de ser uma elite, no bom sentido, dos melhores.
Elitista, mas que preste contas.
Os magistrados devem estar sujeitos à prestação de contas, porque nós não somos verdadeiramente os titulares deste poder. Os juízes, que são titulares do órgão de soberania que é o tribunal, estão a exercer uma função em representação do povo. Sempre fui apologista da prestação de contas, da inspecção, do escrutínio e da transparência no exercício das funções. Aliás, é isso que acaba por emprestar autoridade moral à magistratura. Na ausência de prestação de contas e transparência, ficará sempre espaço para os “pescadores de águas turvas” atacarem a magistratura.
Para terminar, numa nota pessoal: ao longo da sua já longa carreira, alguma vez se arrependeu de ter escolhido esta área?
Não, nunca me arrependi. Sinto-me realizado como magistrado.Tenho mais dois anos de mandato e sinto-me bem. Talvez pela minha origem, pelo meu percurso, o que mais me motiva é sentir que estou a dar algo para a minha comunidade. Sou de uma geração em que se não fosse a possibilidade de beneficiarmos de uma bolsa de estudo do Estado, provavelmente não teríamos feito um curso, nas diversas áreas. Então sempre tive presente esse dever de dar a minha contribuição. Podia estar neste momento já a entrar na aposentação, mas se tenho condições para dar e, em consciência, sinto que ainda posso dar um contributo à justiça cabo-verdiana, vou dando esta contribuição.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.
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