Quais considera serem as principais aprendizagens que tivemos durante desta crise?
Se calhar a mais importante é que este mundo é constituído por tantos países, tão diferentes em dimensão, em poder económico, em poder militar, e, no entanto, não somos tão diferentes como imaginávamos antes desta pandemia. Porque a pandemia não escolhe a dimensão, nem o poder, ataca as pessoas de forma uniforme, inclusive, tem afectado mais os países do norte, que são os mais desenvolvidos, do que os do sul. No entanto, devemos sempre lembrar que as crises não são apenas um problema, são também uma oportunidade, porque este é o grande momento para reflectirmos sobre o que temos sido e o que podemos e devemos fazer para alterar o estatuto, quer a nível mundial, quer dentro dos próprios países e das ilhas, no nosso caso, onde há muito que deveríamos estar a fazer de forma diferente e não estávamos e não estamos ainda. Esta crise pode representar uma oportunidade para mudarmos aquilo que tem de ser mudado, que até temos falado, mas infelizmente não tem passado da retórica.
Cabo Verde é um país com muitas vulnerabilidades, como disse, muito faladas e muito estudadas e pouco alteradas. Acha que esta crise foi uma espécie de banho de realidade?
Exacto, a crise vem realçar as nossas vulnerabilidades. Do meu ponto de vista, a nossa maior vulnerabilidade tem a ver com um excesso de dependências. Em relação ao turismo enquanto actividade económica. Em relação a algumas ilhas que têm sido o motor de desenvolvimento do país. Em relação às fontes emissoras dos turistas. Muita concentração num número reduzido de operadores turísticos. Muita concentração num número reduzido de fornecedores dos grandes mercados turísticos. Essas concentrações, essas dependências, são, para mim, as nossas maiores vulnerabilidades. Obviamente, somos conscientes das nossas vulnerabilidades e não podemos pretender mudar de um dia para o outro e de forma radical. Agora, alguma coisa já devia estar alterada e não foi, e vamos ter de o fazer agora.
Mas há dependências, digamos, que terão de continuar.
Eu não acho que vamos poder mudar a nossa situação em relação ao turismo de forma radical, não vamos poder ter uma outra actividade, ou um outro sector, como motor principal para o desenvolvimento económico de Cabo Verde que não o turismo. E falo dos próximos anos e, se calhar, das próximas décadas. O que não podemos é continuar com esse nível de dependência do turismo. Por outro lado, também não acredito que vamos poder alterar substancialmente o modelo de turismo que temos em Cabo Verde, porque, infelizmente, nós não ditamos o mercado turístico. Agora, não podemos é continuar com essas dependências de reduzidos operadores, de reduzidas fontes de emissão e concentrado excessivamente em três ilhas.
O que deve ser feito de forma diferente, nesse caso?
Temos de aproveitar o turismo para desenvolver outras actividades que nos permitam fornecer o turismo, mas também reduzir o seu peso em função do crescimento das outras actividades e dos outros sectores. E, ao mesmo tempo, ir trabalhando no sentido da desconcentração em relação às ilhas e em relação ao produto turístico que oferecemos, para que não seja tão concentrado no sol e mar, porque temos outros produtos e tínhamos até, e temos, alguns sinais interessantes que começavam a despontar em Santo Antão e na ilha do Fogo, e de forma muito residual em Santiago, direccionados para um turismo mais rural, mais ambiental, e que precisamos de desenvolver para desconcentrar os turistas que chegam às ilhas de maior volume. Diria que temos de desenvolver, para além do terceiro sector – dos serviços, os sectores primário e secundário, tudo o que tem a ver com a agricultura, com a pecuária, com a pesca, porque são actividades que fornecem o sector terciário. Ao mesmo tempo ir também desenvolvendo nichos do sector secundário – as indústrias. Não podemos almejar ser competitivos importando a preços elevados, pagando mão-de-obra de forma elevando e esperar poder concorrer em grandes nichos no mercado internacional, mas há pequenos nichos de valor acrescentado que podemos, e devemos, explorar na indústria de transformação. É esse o caminho que teremos de trilhar.
Essa diversificação implica ter recursos humanos bem formados, e sabemos que esse é um problema que existe em Cabo Verde. é uma boa altura para repensar o próprio sistema de ensino?
Com certeza. Eu tenho sido, de algum modo, sublinho, de algum modo, crítico em relação ao sistema de educação que temos em Cabo Verde. Temos um sistema de educação clássico, formar para ter diplomados, para ter engenheiros, para ter doutores, para ter funcionários de gabinete, quando o desenvolvimento se faz, sobretudo, com quadros com competência ao nível de saber fazer e que estão directamente ligados Às unidades de produção e não de administração. Por exemplo, tenho sido moderadamente crítico em relação ao alargamento do sistema de ensino secundário, gratuito, para 8º, 9º e possivelmente nos próximos anos para o 12º, enquanto não conseguimos ter formação profissional, técnica, nem com valências que o mercado procura, nem com os níveis de competência que precisamos. Continuamos a educar no sistema clássico, alimentando a expectativa dos jovens de que todos podem e devem ser doutores e engenheiros e ir trabalhar nos escritórios, inclusive, esperando que o Estado lhes dê bolsas para se irem formar, acabando depois por ficar no desemprego, porque não há vagas nem no sector público nem no privado. E é o próprio sistema que cria essa expectativa errada nos jovens. Penso que tem de se reconverter, nomeadamente, criando um sistema que incentive a formação para onde nós queremos que a economia caminhe nos próximos anos. e tem de ser no sector produtivo.
Ao mesmo tempo, é também necessário modernizar esses sectores produtivos. Falou da pesca, da agricultura, acrescento o sector dos serviços suportados pelas TIC.
Antes de mais tem de haver uma política clara e consensualizada, ou seja, que ultrapasse o ciclo eleitoral. Tem de haver consenso alargado em certas matérias. Não podemos continuar a ter grandes opções, que implicam investimentos de longo prazo, que correm o risco de terminar numa legislatura. Em matéria do ensino e da formação, por exemplo, tem de haver consensos, para que se construa esse sistema que incentive, priorize e financie, porque não dará grandes resultados reestruturar os sectores produtivos se os outros subsectores não forem na mesma direcção. Todo o sistema tem de estar orientado para as opções estratégicas e essa orientação por vezes existe em discursos, em políticas enunciadas, mas não existe em termos de efectivação prática, nem tem durabilidade no tempo.
Pelo que já fomos falando, e pelo que temos visto desta crise, penso que ficou claro também que o país tem de ser mais autossustentável, ou seja, tem de conseguir produzir mais.
Com certeza. Apesar de todas as limitações e condicionantes que temos, acredito que temos um potencial no sector primário que está muito longe de esgotar. Acredito que a agricultura é um potencial, mas uma agricultura diferente daquela que nós fazemos ainda hoje, uma agricultura que utilize as tecnologias para aumentar a produtividade, ligada às energias, com custos suportáveis. Pode exigir subvenções? Nos primeiros tempos pode, mas não estamos também a subvencionar outros sectores? Estamos a subvencionar, e ainda bem que o fazemos, por exemplo, o sector dos transportes. Porque não também subvencionar durante algum tempo a agricultura, desde que seja uma agricultura orientada para objectivos: reduzir os custos dos factores e aumentar a produtividade. Mas há outros subsectores, eu não acredito que a União Europeia esteja a fazer acordos de pesca com Cabo Verde há décadas, tendo a possibilidade de colocar entre 80 a 90 embarcações nas nossas águas, se não conseguem captar recursos da nossa zona económica exclusiva. Se a União Europeia, se a China, se o Japão, vêm aqui pescar, nós também, apostando e investindo, poderíamos estar a pescar. Tenho sido também moderadamente crítico em relação ao acordo de pesca, não porque seja contra, mas porque acho que devemos impor algumas condições, porque não são os 500 mil euros pagos por ano que nos faz ganhar, mas se impuséssemos condições como a obrigação de ter um número de profissionais cabo-verdianos nesses barcos, ou se uma percentagem do peixe capturado fosse desembarcado em Cabo Verde, não é doado, é comprado para ser processado, para abastecer o mercado interno e, eventualmente, exportar e não estarmos a exportar peixe, pescado em Cabo Verde, que vai para outros países e que depois importamos para a nossa indústria hoteleira, não faz sentido.
Como economista, como vê o futuro de tantas micro, pequenas e mesmo médias empresas que estiveram fechadas neste últimos meses, sendo que a nível global, o que temos visto é que entre 25% a 30% das empresas já não consegue reabrir?
Temos um sector de micro e pequenas empresas extremamente grande em termos de números de empresas e do emprego que geram. Receio que a percentagem da mortalidade das micro e pequenas empresas derivado à Covid-19 seja superior à que está a acontecer nos países europeus. Porque as nossas micro e pequenas empresas são informais e isso faz com que, de acordo com as decisões que o governo tomou em termos de apoio a esse sector, essas empresas fiquem de fora das ajudas. A vantagem que temos é a flexibilidade que essas empresas têm em renascer rapidamente. Uma boa parte vai desaparecer, mas no seu lugar vão surgir outras e eu espero que essas apareçam com maior capacidade de adaptação à nova forma de fazer economia.
Há um outro impacto previsível desta crise, a diminuição das remessas. Como se pode responder a essa perda de rendimento das famílias cabo-verdianas?
Nós perdemos triplamente: internamente, por causa dos impactos; externamente, por causa do impacto na nossa diáspora; mas não podemos esquecer que somos também um país ainda muito dependente das ajudas externas e essas vão diminuir, porque todos os países foram afectados. Do ponto de vista das remessas, obviamente vamos ter durante algum tempo, que ainda não podemos contabilizar, uma redução, mas não creio que essa diminuição seja muito grande porque os emigrantes fazem sempre as suas poupanças, porque pensam sempre nas eventualidades. Sai, sacrifica-se, poupa, para trazer ou para regressar à sua ilha. O que vai acontecer é que terá de mexer nessa poupança e como acredito que o pós-crise vai ter um relançamento da economia será uma oportunidade para os nossos emigrantes reporem essas poupanças.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.