Como pode ser a reconversão cabo-verdiana

PorJorge Montezinho,20 jun 2021 9:10

Há um ano, o ministro das finanças defendeu uma “reconversão” da dívida de 600 milhões de euros a Portugal em “investimentos estratégicos” no arquipélago, em “condições” que sejam “do interesse” de ambos os países.

 Quase doze meses depois, em Maio de 2021, o ministro dos Negócios Estrangeiros, depois de uma visita oficial a Lisboa, anunciou que Portugal mostrou abertura para negociar a dívida do país, com conversão de uma parte em investimentos.

A troca de dívida por investimento é um instrumento que foi usado pela primeira vez no século XIX, esteve na ribalta no início da década de 80 do século XX e voltou a ser falado no início do século XXI, com o FMI e o Banco Mundial, recentemente, a encorajar o seu uso. Eis o mundo complexo da reestruturação das dívidas.

“Este tipo de operação – troca de dívida por investimentos – é uma operação normal, que pode ser negociado entre uma parte devedora e uma parte credora, podendo revestir-se de modalidades diferentes”, diz ao Expresso das Ilhas Paulino Dias, gestor e PCA da PD Consult. “No mundo corporativo, por exemplo, não são incomuns as operações de troca de obrigações (dívidas) por acções (investimento). Em Cabo Verde, um caso relativamente recente ocorreu entre a Electra e o INPS, em que dívidas da primeira para com o segundo foram convertidas em acções (investimento), passando o INPS a ser um dos sócios da ELECTRA”.

Cabo Verde anunciou, em 2020, o interesse em renegociar a dívida ao Estado e à banca portuguesa e a possibilidade de uma parte dessa dívida poder ser reconvertida em investimentos com participação de empresas portuguesas. Mais recentemente, o Governo anunciou que Portugal mostrou abertura para essa negociação e que os Ministérios das Finanças dos dois países vão estudar e apresentar, em breve, uma proposta para reconversão da dívida.

A ideia da conversão de dívida em activos nos países devedores não é nova. Na década de 1880, o Peru elaborou uma resolução do seu endividamento numa troca maciça de dívida por património: títulos britânicos foram trocados por acções da Peruvian Corp., proprietária dos caminhos-de-ferro estatais, terras e concessões de mineração. Este tipo de reestruturação reapareceu na década de 1980, na sequência da crise da dívida externa (1982) e consequente suspensão dos financiamentos aos países devedores por parte da banca internacional. Isto arrastou os países para os programas de ajustamento do FMI, como pré-condição para a renegociação da dívida então acumulada.

“Como sabemos”, explica ao Expresso das Ilhas o economista João Estêvão, “os programas do Fundo não resolveram o problema do endividamento e a crise acabou por se tornar recorrente”. Foi neste contexto que se começou a falar de conversão da dívida em investimentos nos países devedores, opção logo considerada por países como a Argentina, Chile, México e, um pouco mais tarde, o Brasil.

Por exemplo, em 1986, a Nissan adquiriu cerca de 60 milhões de dólares da dívida do governo mexicano no mercado secundário ao preço de 40 milhões de dólares. Em seguida, revendeu a dívida ao banco central mexicano por 54 milhões de dólares, em pesos, para investimento na sua subsidiária mexicana. Como resultado, os cerca de 60 milhões em dívida do governo mexicano foram cancelados e a Nissan conseguiu injetar cerca de 54 milhões de capital na sua operação mexicana por um custo de 40 milhões.

O que acabou por prevalecer foi a criação de mecanismos que permitiam a utilização dos recursos da dívida externa para participação estrangeira no capital de empresas em funcionamento, para investimentos novos, ou para aumento de investimentos em empresas já instaladas.

“Mas esta era uma opção que não era vista, verdadeiramente, como solução para o problema do endividamento”, continua João Estêvão, “e por duas razões principais: (i) porque os volumes de dívida de cada país eram muito elevados, enquanto o tamanho das economias eram relativamente pequenos, pelo que bastava uma pequena parcela convertida da dívida para que os capitais externos assumissem largas fatias da actividade económica nos países devedores; (ii) porque as economias estavam estagnadas, fortemente condicionadas pelas políticas do FMI e, por isso, não reuniam condições para atrair nem mesmo um volume de recursos compatível com o pequeno tamanho das economias”.

Pandemia e pós-crise

Actualmente, os efeitos imediatos da pandemia que o mundo atravessa e a adopção de políticas para agir contra esses efeitos aumentaram as necessidades de liquidez para enfrentar esta fase de emergência. No caso dos países com elevado nível de endividamento, a situação levou ao agravamento do peso da dívida externa, o que coloca em perigo, não só as possibilidades de uma recuperação rápida, como a capacidade de construir melhores condições para sustentar a transformação produtiva necessária, o crescimento económico e a construção de um futuro melhor.

Cabo Verde e a generalidade dos países de rendimento médio (classificação do Banco Mundial), ou de desenvolvimento médio (classificação das Nações Unidas), têm uma situação difícil, na medida em que são penalizados por um sistema de cooperação internacional em que as avaliações do nível de desenvolvimento económico e social se baseiam nos valores alcançados do PIB por habitante. Acontece que muitos países de rendimento médio revelam vulnerabilidades e níveis de desigualdade tão elevados como nos países de rendimento baixo, ao mesmo tempo que não revelam capacidade para criar as competências empresariais, sociais e científicas necessárias para um percurso de transformação sustentada e de convergência com as economias mais avançadas.

Os países de rendimento médio enfrentam, por isso, um conjunto de desafios que se entrecruzam e cuja solução depende da capacidade conjunta de pressionar para uma mudança rápida, tanto nos mecanismos de financiamento internacional, como na arquitectura actual da dívida internacional.

“Três desafios são decisivos”, refere João Estêvão,especialista em economia e política do desenvolvimento, “ (i) como sustentar o crescimento da despesa pública para assegurar os gastos na saúde e no apoio social, nomeadamente, às camadas mais vulneráveis da sociedade, bem como os gastos de compensação dos prejuízos que as políticas de contenção adoptadas têm sobre a actividade económica, o tecido produtivo e o emprego; (ii) como garantir o crescimento da despesa pública necessária ao financiamento dos investimentos e outros desembolsos destinados à reestruturação e transformação produtiva, crescimento do emprego e criação de um ambiente de crescimento económico; (iii) como agir para reduzir e para gerir o nível actual do endividamento, num contexto de crise e num momento em que são crescentes as necessidades de garantir o financiamento da economia”.

“Para os objectivos pretendidos, de aceder a maior nível de financiamento internacional e de encontrar as estratégias para enfrentar o nível de endividamento actual, Cabo Verde tem de agir simultaneamente nos planos multilaterais e bilaterais”, sublinha o economista. “No primeiro plano, tem de acompanhar de perto as iniciativas internacionais que têm surgido para mitigar o impacto imediato da pandemia e para ajudar a financiar a recuperação económica, particularmente, nos países menos desenvolvidos”.

Uma iniciativa, já colocada na agenda pelo FMI, tem a ver com a possibilidade de uma nova afectação de DSE (Direitos de Saque Especiais) no montante de 650 mil milhões de dólares. Os DSE são activos internacionais de reserva criados pelo FMI como complemento para as reservas oficiais dos países-membros e que lhes são atribuídos de forma proporcional à sua participação (quota) no Fundo. Em Março deste ano, a Directora Executiva do FMI afirmou que a proposta seria apresentada formalmente em Junho e que, sendo aprovada, a nova afectação adicionaria um aumento substancial da liquidez directa dos países, sem aumentar o peso da dívida, o que libertaria recursos extremamente necessários para enfrentar os problemas actuais. Uma outra medida relaciona-se com o aumento da capacidade de empréstimo e de resposta dos bancos de desenvolvimento regionais, em estreita articulação com os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (BAD, por exemplo), sabendo que estes são financiadores fundamentais dos diferentes espaços regionais.

“Ainda no plano multilateral, o acesso a maior nível de financiamento também implica a adopção de medidas para reformar a arquitectura da dívida internacional”, diz João Estêvão. “Em primeiro lugar, essa reforma supõe a criação de um mecanismo de reestruturação da dívida e, em particular, a criação de uma agência multilateral de classificação de risco de crédito. Além disso, existem movimentos que defendem o alargamento da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida promovida pelo G20, para incluir todas as partes interessadas pertinentes (sector privado e instituições multilaterais) e os países vulneráveis de rendimento médio. Em segundo lugar, pode ser promovida uma maior utilização de instrumentos inovadores, principalmente destinados a evitar o endividamento excessivo e a aumentar a capacidade de os países enfrentarem futuras operações de reestruturação da dívida”.

Alguns exemplos já considerados incluem: (i) situações em que se vincula a capacidade de reembolso dos países à sua exposição a desastres naturais, ou aos ciclos económicos; (ii) utilização da ‘dívida contingente’ como instrumento de reestruturação, situação em que se indexa a dívida a uma variável que representa a capacidade soberana de pagar, como indicadores macroeconómicos (inflação, PIB, etc.), preços de matérias-primas fundamentais, ou outros recursos amplamente negociados; (iii) situações mais recentes, em que o financiamento está associado a cláusulas que fazem depender o alívio da dívida da execução de determinados tipos de reformas, principalmente com o objectivo de incentivar o desenvolvimento de políticas fiscais responsáveis, nuns casos associando as condições directamente à natureza das políticas fiscais e noutros ao desempenho do país no quadro de um programa do FMI.

“Uma questão de fundo que se coloca numa situação de crise como a actual, é a capacidade de interligar o acesso a maior liquidez e a redução da dívida aos objectivos de desenvolvimento de médio e longo prazo. Isto quer dizer que se pode aproveitar a crise actual como uma oportunidade, não só para repensar a agenda de financiamento dos países de rendimento médio (como Cabo Verde), mas também para se alcançar um amplo consenso social e político destinado à aplicação de reformas ambiciosas, capazes de induzir um processo de reconstrução económica sustentável e mais igualitário”, resume João Estêvão.

Na nova agenda de financiamento estão as trocas de dívida por desenvolvimento, que cresceram a partir de trocas de dívida por activos e agora incluem dívidas por natureza, dívida por educação e dívida por saúde, entre outras variantes. Mas estas cambiantes serão abordadas no próximo artigo.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1020 de 16 de Junho de 2021.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 jun 2021 9:10

Editado porFretson Rocha  em  1 abr 2022 23:20

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