Há uma data gravada na memória dos cabo-verdianos: 19 de Março, a quinta-feira em que foi detectado o primeiro caso de infecção por Covid-19 em Cabo Verde e o dia em que o país fechou.
Poucos dias depois, a 25 de Março, o Expresso das Ilhas avançava que a recessão era real e que seria forte. As perdas já estavam contabilizadas: quase metade da arrecadação fiscal prevista evaporou-se devido ao impacto global coronavírus e cerca de 2/3 dos turistas que o país devia receber tiveram o mesmo destino. Em entrevista, o ministro das finanças, Olavo Correia, dizia que “cada um de nós, hoje, está a enfrentar o desafio da sua vida”. Era uma crise que começava a ser gerida dia-a-dia, com medidas que procuravam garantir duas coisas: a protecção da saúde das pessoas e da saúde colectiva e a protecção do emprego e dos rendimentos.
Nas últimas semanas de Março, os economistas estiveram debruçados sobre as máquinas de calcular a tentarem descobrir o impacto do coronavírus na economia. Havia quem dissesse que, em comparação, a crise de 2008 ia parecer uma brincadeira, havia quem acreditasse que uma resposta coordenada a nível global poderia amenizar as quebras anunciadas. O que se sabia então, praticamente no início da pandemia, era que as instituições internacionais (Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, etc.) estavam a projectar uma significativa desaceleração do crescimento mundial, no melhor dos cenários, ou uma recessão global em 2020, em cenários menos optimistas.
E enquanto o mundo olhava atarantado para um lado e para o outro, completamente impreparado para a pandemia que o atingiu, a economia global parecia a televisão pública dos anos 80, com a emissão interrompida e a ser retomada quando fosse possível. Mas a economia não é um conceito abstrato, mexe com a vida das pessoas, tem implicações directas no rendimento das famílias, promove ou restringe o consumo e o bem-estar geral, qualquer paragem pode levar ao caos.
Crucial, diziam então todos os analistas era que os governos não deixassem empresas em insolvência, falirem e demitirem trabalhadores. No fundo, defendiam que o Estado devia ir até onde fosse possível para proteger os trabalhadores e contribuir para a manutenção da capacidade produtiva e do stock de capital.
No final de Março já se sabia que a crise não só era irreversível como já estava sentada no camarote a assistir à derrocada do edifício económico. Com as pessoas impossibilitadas de viajar, o turismo era dos sectores que mais estava a apanhar os efeitos adversos.
É que na economia do século 21, há uma indústria que concentra riqueza e outra que a distribui. A primeira é a de Tecnologia da Informação, sector em que estão as cinco empresas com o maior valor de mercado no mundo hoje. Apple, Amazon, Microsoft, Alphabet (que controla o Google) e Facebook. A indústria que distribui o rendimento é mais fragmentada. Trata-se do turismo, que promove um constante fluxo de pessoas pelo globo e gera oportunidades de negócio tanto para grandes conglomerados (companhias aéreas, redes hoteleiras, empresas de cruzeiros) quanto para pequenos empreendimentos, sejam agências de viagem locais, pousadas, restaurantes ou guias turísticos.
E foi por isso que no início de Abril, o Expresso das Ilhas foi falar com os investidores turísticos de São Vicente. Agora, parece que foi há mais tempo, mas foi apenas a meio de Janeiro que o Expresso das Ilhas escreveu sobre os cinco novos empreendimentos hoteleiros entre a Marginal e a Lajinha, que estavam em construção ou em vias de iniciar os trabalhos. De lá para cá, aconteceu a crise turística associada ao coronavírus. E, em consequência, todo um mar de incertezas.
“Temos pela frente um buraco negro de desconhecimento”, disse ao Expresso das Ilhas Alexandre Novais, um dos promotores dos projectos turísticos planeados para o Mindelo, o quatro estrelas superior Golden Tulip Hotel, que deveria integrar a cadeia internacional Louvre Hotels.
No conjunto, os investimentos significariam um aumento considerável da oferta hoteleira, um dos ‘calcanhares de Aquiles’ do turismo em São Vicente, em mais de mil novas camas. Ainda hoje são mais as interrogações que as certezas.
Damos agora um salto de dois meses. Em Junho, já se sabia que os próximos tempos iriam evoluir de acordo com uma simples premissa: com Covid ou sem Covid. A evolução da economia dependeria do ressurgimento, ou não, da pandemia (que, como sabemos hoje, voltou). Sobre a crise em Cabo Verde, começávamos a ter os primeiros números, o PIB poderia ter uma queda entre os 11% e os 14% e a dívida pública ia disparar para os 150%.
Se uma imagem vale por mil palavras, há um gráfico que é a representação perfeita da frase, o do Produto Interno Bruto do arquipélago. De um crescimento constante, o PIB cabo-verdiano sofre, a partir de Março, uma queda vertiginosa para valores negativos.
A crise, sempre a crise
Se os primeiros três meses do ano não faziam prever os que se seguiram, depois de Março… Bem, depois de Março, nada. Ou melhor, muito, mas não o que estávamos à espera
Nos finais de Julho, já se conseguia medir a crise através dos números, sabíamos que o turismo ia perder cerca de 30 milhões de contos e que o desemprego ia subir para quase 20%. Mas mais dados, disponibilizados pela Pró-Empresa, ajudavam a ver a dimensão do impacto. Tinham sido aprovadas 660 moratórias, num valor global de 15,447,717,000 de escudos. A suspensão dos contratos de trabalho afectavam 15.974 trabalhadores. O rendimento solidário do Ministério da Família e Inclusão Social (MFIS) tinha 20.146 beneficiários, o que representava mais de 200 mil contos. A estes juntavam-se 3.827 beneficiários do rendimento solidário do INPS, num valor superior a 38 mil contos e os 3.273 beneficiários do rendimento social de inclusão emergencial, do MFIS, num valor de mais de 18 mil contos. Havia ainda 22.671 agregados familiares a receber assistência alimentar.
O governo repetia que as prioridades eram a saúde, salvar as empresas e proteger os rendimentos e que os aceleradores de desenvolvimento já estavam identificados: capital humano, economia azul, economia digital e indústria do turismo. Mas a crise estava, e está, para durar, e até as maiores empresas do país estavam, e estão, a sentir os efeitos da crise, como contou o Expresso das Ilhas, em Setembro.
Foi o mês em que houve um regresso tímido do negócio aeroportuário, essencialmente com as operações internas, mas voltar aos números de 2019 levará anos, disse, na altura, o PCA da ASA, Jorge Benchimol. A empresa pública de Aeroportos e Segurança Aérea mantinha há meses os custos, mas sem qualquer retorno financeiro. As perdas ultrapassavam o milhão de contos.
Na navegação aérea, que inclui os voos de origem/destino Cabo Verde e os sobrevoos – a gestão da FIR oceânica do Sal – a actividade reduziu em cerca de 85 por cento. A gestão da FIR oceânica representava uma fatia importante das receitas da ASA. Cabo Verde recebeu, a partir de 2018, três milhões de contos anuais. Em 2019, os números da ASA apontaram para mais de 59 mil sobrevoos no espaço aéreo do país, e projectava-se que o número tenderia a aumentar. Afinal, em 2020, assistiu-se, praticamente, ao desaparecimento das fontes de receita da ASA.
Na CVTelecom e na Electra, o cenário não era melhor. Com a pausa das viagens internacionais e da vinda de turistas acumularam-se os prejuízos na maior empresa de telecomunicações e na maior produtora e distribuidora de energia e água em Cabo Verde. 90% das perdas da CVTelecom tinham origem no fecho dos hotéis e a Electra viu cair as suas receitas em mais de um milhão de contos.
O turismo representava mais de ¼ da riqueza nacional e a crise do sector teve um impacto que se generalizou a toda a economia. “Só no negócio directo, que tínhamos com as empresas de hotelaria, vai-nos custar cerca de 180 mil contos”, dizia ao Expresso das Ilhas João Domingos, PCA da CV Telecom.
Todos os países sofreram uma redução global na procura de electricidade. A queda foi particularmente elevada em países mais pequenos com economias orientadas para o turismo. Cabo Verde teve um declínio de 70% a 80% na procura de eletricidade nas duas ilhas turísticas: Sal e Boa Vista. “Os nossos níveis de cobrança reduziram-se substancialmente”, disse ao Expresso das Ilhas Alcindo Mota, PCA da Electra. “Estamos a falar de quedas de cobrança mensais superiores a 200 mil contos. Na ilha do Sal, só para dar um exemplo, tínhamos só um hotel a consumir mais do que toda a ilha de Santo Antão”.
Não havia volta a dar, a crise do novo coronavírus deixou de joelhos sectores importantes da economia nacional. Uma crise que tinha uma característica diferente das anteriores, todos estavam a apanhar por tabela.
O mercado de turismo representava para a SOCIAVE cerca de 30 por cento do negócio, e não era só o Sal, Santo Antão também estava com numa dinâmica de crescimento, São Vicente já começava a dar sinais, a Boa Vista, mais esporadicamente por causa dos transportes marítimos. Sem turismo, “tivemos de travar a produção. Reduzimos a produção de ovos e frangos”, contava João Santos, empresário e administrador da SOCIAVE.
Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA) com o isolamento social para conter a expansão da COVID-19, a procura por petróleo caiu em 20%, equivalente a 20 milhões de barris por dia. Calculava-se que os meses de Março a Setembro deitaram abaixo a última década de crescimento no sector.
“O nosso negócio internacional, em 2019, representou 69 por cento dos volumes distribuídos”, disse ao Expresso das Ilhas Abílio Madalena, director-geral da ENACOL, “dos quais, metade é aviação e a outra metade é transporte marítimo internacional, bunkering. Em resumo, temos um impacto muito significativo”.
Este contexto provocou uma quebra acentuada em termos de facturação, porque à quebra de mercado, de cerca de 40 por cento, juntou-se a quebra significativa no preço dos produtos petrolíferos, à volta dos 60%.
Actualmente, depois destes meses que parecem anos, já conhecemos um pouco melhor a crise, mas o contexto continua incerto. A economia cabo-verdiana vive uma recessão como nunca houve igual e as projecções de hoje deixam de ser válidas amanhã. Como resumiu ao Expresso das Ilhas Olavo Correia, Ministro das Finanças, depois de aprovado o Orçamento de Estado para 2021: “Temos que, nesta altura, fazer do impossível o possível”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020.