“Esperamos que a pandemia não venha atrapalhar”, diz Jorge Maurício ao Expresso das Ilhas. E quando se fala em atrapalhar, fala-se do regresso dos navios de cruzeiros a Cabo Verde. No passado mês de Outubro, no dia 19, chegava ao Porto Grande o “MS Europa 2”, um navio de 225 metros de comprimento. Era a primeira vez, em 19 meses, que Cabo Verde recebia um navio do género, numa altura em que o resto do país reabria, gradualmente, a todos os segmentos turísticos.
Na altura, a Enapor, sublinhava que se abria “um novo capítulo” no sector do turismo de cruzeiros no arquipélago e, de acordo com a empresa, estavam previstas mais de sessenta escalas até ao final do ano. Entretanto, a pandemia da Covid-19 regressou novamente em força à Europa, o principal emissor, e com ela regressam outra vez algumas dúvidas.
“É verdade que há mais casos na Europa e isso poderá provocar uma contracção”, refere o presidente da Câmara do Barlavento, “mas, neste momento, os navios e as companhias estão muito bem preparados para acolher os turistas a bordo e com condições para fazerem testes. E há outras medidas, alguns países estão a adoptar medidas restritivas apenas para os não vacinados, o que não deixa de ser interessante, ou seja, as pessoas são livres de fazerem o que querem, mas os estados também são livres de adoptarem as suas regras e isto, em princípio, não deve ser uma condicionante negativa”.
Por isso, Jorge Maurício resume que as expectativas são boas. “As companhias e os navios demonstram confiança no nosso trabalho de combate ao coronavírus, isso dá segurança para quem vem. E isto tem de ser dos dois lados, o do emissor, que vem vacinado, mas também sabe que vai encontrar um destino seguro e com o vírus controlado. É com muito bons olhos que todos, câmaras de comércio, empresários, entidades portuárias, os guias turísticos – às vezes não pensamos no individual que também viveu momentos muito difíceis – o transporte aéreo, marítimo e terrestre, olhamos para o regresso dos cruzeiros”.
Os impactos dos cruzeiros
Em termos globais, a indústria de cruzeiros movimenta mais de 30 mil milhões de euros por ano, um valor que entretanto desapareceu de um ano para o outro. Em Cabo Verde, antes da pandemia, o impacto da presença dos navios de cruzeiros variou entre os 3 os 5 milhões de euros por ano. Em 2019, ano do melhor registo de sempre, cerca de 48.500 turistas e 149 navios de cruzeiro visitaram o país, um aumento de 3% face ao ano de 2018.
Depois veio a pandemia, que fez desaparecer quase 64% dos turistas de cruzeiro. Em 2020, oito portos cabo-verdianos receberam pouco mais de 18 mil turistas. De acordo com o relatório de tráfego anual, elaborado pela Enapor, foram movimentados 40 navios de cruzeiro durante todo o ano, metade dos quais — e 10.690 turistas – no Porto Grande, em São Vicente.
O regresso que está a acontecer, actualmente, já trouxe alguns impactos positivos. “Cada navio, cada escala, atrai um leque de serviços que beneficia os membros da comunidade”, explica Jorge Maurício. “O porto em si, acaba por ser quem menos ganha, mas há o reboque, os serviços de pilotagem, de saneamento, recolha de lixo, o bunkering, o fornecimento de água e depois há os gastos dos tripulantes em terra. Isto é interessante, porque começa também a ser um produto. Os tripulantes acabam por deixar dinheiro na cidade, nos restaurantes, nos transportes, nos guias turísticos. É um circuito tão abrangente que acaba por ser difícil de contabilizar. Por exemplo, fazemos aqui uma coisa interessante que não se faz em muitas cidades do mundo, um táxi tour, onde 2 ou 3 pessoas alugam um táxi, pagam 50 euros e dão uma volta à ilha”.
Isto não significa, como refere o presidente da Câmara de Comércio do Barlavento, que não seja preciso continuar o trabalho, até porque esta é uma oferta com 3 pilares essenciais: a infra-estrutura, a criação do produto e a promoção. Em termos de infra-estruturas, está em curso o terminal de cruzeiros do Mindelo, com um prazo de execução à volta dos 22 meses, e que envolve um terrapleno, denominado ‘Ponte Terrestre’, com 2 700 metros quadrados, a dragagem de aproximadamente 124 mil metros cúbicos na bacia portuária e no canal de acesso e a reabilitação do cais nove, que passará a servir navios de recreio de pequeno porte. Envolve ainda a construção de um molhe de atracação de 400 metros de comprimento, com uma profundidade de 11 metros a Norte e nove metros a Sul, bem como uma gare de passageiros com 900 metros quadrados de área e respectivo ordenamento exterior.
Já na questão do produto turístico, no fundo, a oferta das cidades, Jorge Maurício refere que o poder local tem de ter um papel fundamental. “O envolvimento dos municípios é determinante, os municípios devem assumir isto de forma directa, sem ver as questões das competências, devem vender o seu município e a sua cidade”.
O último pilar, a promoção, tem vindo a ser trabalhado pelas câmaras de comércio, pelos membros da comunidade portuária, e outros, para fazer de Cabo Verde, cada vez mais, um destino de cruzeiros. “E hoje, estamos a ver outro fenómeno interessante, Cabo Verde como destino de náutica de recreio”, explica o presidente da Câmara de Comércio do Barlavento. “Temos mais escalas de iates, de super iates - um segmento de luxo que deixa muito dinheiro em terra - e as próprias regatas. O turismo de cruzeiro e a náutica de recreio devem ser promovidos num todo, mesmo sendo segmentos diferentes. Outro dado interessante, para nós, o turismo de cruzeiro já é mais do que o porto do Mindelo ou do que o porto da Praia. Nos últimos anos, investimos junto de companhias com navios mais pequenos que fazem itinerários por várias ilhas de Cabo Verde e assim fazer com que o rendimento que vem do turista seja repartido pelas demais ilhas e regiões. Neste momento isso já se verifica em Santo Antão, São Nicolau, Sal, Fogo, Brava, onde quase nunca se viam escalas. Antes da crise, isto estava já bem alinhado. Chegámos a ter um navio a fazer mais de 15 escalas por ano, em seis ou sete ilhas. Quer dizer que o trabalho de anos está a dar frutos”.
O pós-crise
Não se pode comparar o Cabo Verde de hoje com o de 2019. Nesse ano, o crescimento económico rondava os 6 por cento, os turistas vieram em massa, com 819.308 a entrarem no arquipélago. Depois veio 2020, o pior ano de sempre do turismo cabo-verdiano, a pandemia provocou uma queda de mais de 70% do número de visitantes o que ajudou a varrer a riqueza do país, cujo PIB caiu quase 15%.
2020, 2021 e o futuro 2022 representam, cada um, uma perda de 20 milhões de contos para os cofres do Estado, 60 milhões de contos no total, entre impostos que se esfumaram devido à paralisação da economia, ou de serviços que não foram vendidos.
A região do Barlavento não escapou da crise, como resume o Jorge Maurício, “sofreu muito”. “E muitos a sofrer em silêncio, porque nem toda a gente grita. Parece que a verdadeira crise económica começa agora. Já não há almofadas, estamos todos descapitalizados: empresas, famílias e Estado. Um buraco de todo o tamanho”.
É neste contexto, e no das incertezas que ainda rondam a economia mundial, que foi apresentado, e vai ser discutido, o orçamento de estado (OE) para o próximo ano, um dos “mais desafiantes de sempre”, como disse o Ministro das Finanças, Olavo Correia. Um OE que tem como prioridades: a resposta sanitária, a recuperação económica, a inclusão social e a sustentabilidade orçamental. Mas é também um orçamento que tem uma espada de Dâmocles sobre empresários e cidadãos, um possível aumento do IVA, de 15% para 17%, isto se o governo não conseguir negociar uma moratória da dívida externa e se o Parlamento não aprovar uma alteração da lei que limita o défice de endividamento.
Mais um mar de incertezas que deixa os empresários sem saber como vão navegar. “Há demasiados ‘se’ e alguns não dependem de nós”, diz o presidente da Câmara do Comércio do Barlavento. “Mais moratórias para a dívida púbica depende dos parceiros. E se não houver o ‘se’, vamos mesmo aumentar os impostos? 2 por cento é muito. Não sabemos onde vamos tirar mais coelhos da cartola”.
“Fazemos um apelo aos partidos todos”, continua Jorge Maurício, “é hora de união e não de política, façam o que for necessário para facilitar a vida aos cabo-verdianos, mesmo que seja através do aumento do tecto de endividamento. É em tempos de crise que devemos ir até ao limite, salvaguardando sempre a sustentabilidade, claro. Devemos todos pensar de uma forma suprapartidária e centrar-nos na ajuda às famílias. Se o Estado não conseguir há três alternativas: subida de impostos, emissão de títulos de tesouro ou mais empréstimos. Nós não estamos confortáveis com o aumento dos impostos em 2022. Em vez de sairmos rapidamente da crise, teremos de esperar mais dois ou três anos”.
Este ano, a economia pode crescer 6 por cento, nas contas do governo, 6,5 por cento, na contabilidade do FMI, ou mesmo mais de 7%, nas estimativas do Banco de Cabo Verde. Já em 2022, e em relação ao sector com maior peso no PIB nacional, o turismo, o governante espera um forte aumento do número de visitantes, entre 100% e 150% comparando com 2021.
“Temos de ter esperança”, conclui Jorge Maurício, presidente da Câmara de Comércio do Barlavento, “aprendemos muito com a crise, estamos mais resilientes”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.