“Para além de todos os discursos, retomados na sequência das crises recentes que atingiram o país, a dimensão ‘para além das remessas’ continua a ser muito frágil. Os discursos são, não só muito repetitivos, como acabam por se centrar principalmente na dimensão financeira”, diz ao Expresso das Ilhas o economista e investigador João Estêvão, um dos organizadores do colóquio do próximo sábado. “Ou seja, a preocupação é fundamentalmente a do financiamento do desenvolvimento cabo-verdiano. Esta é uma dimensão importante, mas não esgota as possibilidades da contribuição da Diáspora”, reforça.
O debate sobre o financiamento foi desencadeado no início deste século e resultou da percepção de que a queda na ajuda ao desenvolvimento e as limitações ao financiamento pelas organizações financeiras multilaterais poderiam ser compensadas pelas remessas de emigrantes, cujos fluxos crescentes para os países em desenvolvimento poderiam constituir um importante instrumento de financiamento do desenvolvimento nesses países.
“Foi neste quadro que se desenvolveu a ideia de passar da lógica das remessas para a lógica da captação de poupanças dos emigrantes”, refere o académico. “O debate tem sido orientado nos últimos anos para a constituição de produtos financeiros que possam atrair essas poupanças. Fala-se muito no lançamento de títulos de dívida dirigidos para a Diáspora – os diaspora bonds”.
O Governo estabeleceu no programa da X Legislatura que as comunidades são uma extensão das ilhas do ponto de vista identitário, cultural, económico e de conhecimento. No passado mês de Maio foi apresentado pelo governo o Plano Estratégico das Comunidades, que tem como objectivo eliminar o distanciamento que existe entre as comunidades residentes e da diáspora e que está assente em dois pilares: dar centralidade à diáspora e criar instrumentos de integração dos cabo-verdianos espalhados pelo mundo.
“O novo Plano Estratégico das Comunidades não avança muito em relação ao que tínhamos discutido, em 2006, no IV Congresso dos Quadros Cabo-verdianos da Diáspora, cujo tema foi A Diáspora e o Desenvolvimento de Cabo Verde”, sublinha João Estêvão.
“O debate em 2006 orientou-se para outras dimensões”, continua o economista, “nomeadamente, para o tema da contribuição da Diáspora para o desenvolvimento de competências e qualificações em Cabo Verde. Defendia-se que a emigração qualificada, tal como se discutia nessa época, não devia ser considerada como uma perda líquida para os países de emigração (brain drain). Pelo contrário, ela devia ser considerada em termos de ganhos (brain gain), no sentido em que as competências emigradas constituíam um activo potencial de que o país dispunha e que poderiam ser aproveitadas de várias formas, nomeadamente, através da constituição de redes, capazes de impulsionar contactos mais regulares com o país e de favorecer o desenvolvimento e a transferência de competências e qualificações, bem como a criação de oportunidades de relacionamento com universidades, empresas e outras instituições económicas e financeiras estabelecidas em Cabo Verde”.
“Em resumo”, refere o investigador, “Cabo Verde precisa impulsionar o debate sobre a contribuição da sua Diáspora no processo de desenvolvimento do país, ultrapassando a tradicional perspectiva das remessas”.
Diásporas como agentes do desenvolvimento
Os efeitos que as migrações podem ter sobre um país em desenvolvimento estão nos debates políticos desde a década de 70. O governo francês foi pioneiro na questão, encarando-a como uma relação entre Estados de origem e de acolhimento, pensamento que fez emergir o conceito de co-desenvolvimento. Porém, devido à natureza problemática da definição do conceito, bem como à complexidade e às divergências sobre o papel que cada actor internacional desenvolveria nesse processo, a União Europeia (UE) prefere utilizar a expressão ‘nexo entre migração e desenvolvimento’.
Em 1977, as Nações Unidas lançaram, no âmbito do Programa para o Desenvolvimento, o Programa Transfer of Knowledge Through Expatriate Nationals
[Transferência de Conhecimento através de Cidadãos Expatriados]. Mas foi apenas com a Conferência do Cairo sobre População, em 1994, que este nexo começou a aparecer de forma sistemática nos discursos governamentais e regionais, dando origem a políticas mais consistentes. Nesta altura, iniciaram-se também os debates sobre o papel da sociedade civil no âmbito destas políticas. Nas Nações Unidas, esta temática foi alvo de uma série de acções durante a década de 1990 e em Setembro de 2006 foi realizado o Diálogo de Alto Nível sobre Migração e Desenvolvimento, que teve como objetivo discutir a utilização deste nexo para a redução da pobreza, para a identificação de boas práticas e para o reconhecimento do papel colaborativo dos imigrantes para os países desenvolvidos.
Desde que as Políticas de Imigração passaram a integrar o quadro comunitário, a Comissão Europeia procura uma inserção dessas questões nos programas de parceria de cooperação para o desenvolvimento com diferentes países e regiões. Entretanto, as acções da UE voltadas para o fomento deste nexo intensificaram-se no período pós 11 de Setembro, quando a questão migratória ganhou relevo por ter sofrido um processo de securitização. Assim, a política de imigração ganhou três pilares: segurança (combate à imigração ilegal), solidariedade (gestão da imigração legal) e prosperidade (migração e desenvolvimento).
As discussões giram em torno dos efeitos que as migrações trazem para o desenvolvimento dos países de origem, especialmente a fuga de cérebros, o impacto das remessas e a formulação de políticas que tratem da migração circular, o retorno de migrantes qualificados, a promoção do empreendedorismo imigrante e as relações existentes entre comunidades transnacionais. Para além das remessas financeiras, dá-se atenção às chamadas remessas sociais - as “ideias, comportamentos, identidades, e capital social que fluem do país receptor para o país emissor”. Essas remessas sociais podem influenciar atitudes políticas acerca dos Direitos Humanos, promover o ganho de cérebros, a transferência de tecnologias e até mesmo incentivar investimentos no país de origem por meio da divulgação de productos e da acção dos empresários da diáspora.
Os desafios da Diáspora
As remessas dos emigrantes aumentaram mais de 37% em 2021. Os emigrantes cabo-verdianos em Portugal lideraram o crescimento no envio de dinheiro para o arquipélago (quase 26 milhões de contos), segundo dados do Banco de Cabo Verde (BCV), que reconheceu o “altruísmo” da diáspora.
As remessas dos emigrantes de 2021 financiaram 44% do total do défice comercial de bens e representaram 16% do PIB, mas as contribuições económicas e financeiras directas e indirectas representam um valor superior a 25% do PIB, superando a ajuda pública ao desenvolvimento e o investimento directo estrangeiro.
Mas a colaboração efectiva da Diáspora coloca ainda alguns desafios. Na abertura do colóquio de sábado, o economista João Estêvão vai falar da situação económica e social de Cabo Verde e sobre os principais reptos que o país enfrenta e aceitou antecipar alguns aspectos do tema ao Expresso das Ilhas. “Assunção efectiva, e não apenas no plano da retórica, de que o país dispõe de duas grandes comunidades secularmente entrelaças: a ‘nação de dentro’ e a ‘nação de fora’. A sua inter-relação tem sido importante ao longo de mais de dois séculos da nossa história e temos de continuar a assumir plenamente a importância dessa colaboração. Essa assunção efectiva tem uma consequência importante no plano interno: deixar de dar prioridade aos ‘profissionais’ estrangeiros da cooperação e à profusão de consultores que as organizações multilaterais estimularam nos países em desenvolvimento, para dar mais atenção à diversidade de recursos qualificados que existem nas diversas comunidades emigradas e com os quais o país pode estabelecer uma relação mais estreita e mais motivada pelos objectivos reais do desenvolvimento”.
Para o economista é igualmente necessário criar condições institucionais capazes de enquadrar adequadamente a colaboração entre o país e a Diáspora, tanto instituições políticas, como económicas e sociais. “Um exemplo é o do Conselho das Comunidades, constitucionalmente estatuído e que deve funcionar como comissão especializada do Conselho Económico, Social e Ambiental. Definido há décadas, continua por funcionar. Outro exemplo é o de organizações criadas na Diáspora, mas que acabam por encontrar muitas dificuldades no relacionamento com o país”.
“Também importante”, sublinha João Estêvão, “é a criação de uma prática de maior sinergia entre os ministérios governamentais, que permitiria maior organicidade e maior eficácia na densificação das relações entre o país e a Diáspora. Estes exemplos não esgotam os desafios que hoje se colocam à colaboração da Diáspora no desenvolvimento de Cabo Verde”.
O papel do Estado
“O Estado cabo-verdiano precisa ser mais pró-activo na definição de opções estratégicas em que pode recorrer preferencialmente à diáspora. Na generalidade dos recursos disponíveis na Diáspora e, em particular, no domínio da captação de investimentos”, explica João Estêvão. “Com opções estratégicas definidas, o país pode orientar de forma mais eficaz a sua acção na mobilização de recursos de investimento disponíveis na Diáspora”.
Há um enviesamento da discussão para o domínio financeiro” João Estêvão, economista
Segundo a literatura especializada, em cada regresso a casa, mesmo que de curta duração, há uma contribuição da diáspora na difusão das suas competências, do saber fazer e/ou atitudes culturais. Mas ainda há debates por fazer em Cabo Verde, na opinião do economista.
“Uma discussão mais alargada, dando ênfase à dimensão das competências, poderia colocar a questão da constituição de redes na Diáspora, o que ajudaria a encorajar formas de migração circular. A migração circular é relativamente recente na agenda política dos governos. A adopção de formas de migração circular pressupõe não só a existência de medidas nacionais, mas também a necessidade de estabelecimento de acordos entre países que facilitem, por exemplo, a adopção de programas legais de migração temporária, com benefícios para ambos os países”.
Além desta ajuda, a diáspora é, além dos recursos financeiros, uma fonte de transferência de tecnologia, de oportunidades económicas, de atitudes progressistas e também um veículo de promoção da boa imagem do país no exterior. Mas mais uma vez, como analisa João Estêvão, faltam estratégias para utilizar o potencial da diáspora.
“Por exemplo, o Governo pensa promover fóruns empresariais para divulgação de oportunidades de investimento, do ecossistema de promoção empresarial, ou de títulos de dívida pública. Mas nunca dei conta de fóruns do mesmo género noutras áreas. Por exemplo, a nova Universidade em criação, a UTA, não proporcionou nenhuma acção concertada com universitários, cientistas e investigadores da Diáspora. Uma outra questão pertinente é compreender as razões que têm levado algumas experiências individualizadas com membros de comunidades da Diáspora a fracassar, criando, muitas vezes, a ideia de que essas experiências falharam porque defrontaram barreiras difíceis de transpor”, conclui o economista.
O colóquio online “A Participação da Diáspora no Desenvolvimento de Cabo Verde”, realiza-se no sábado, das 14h30 às 17h30 de Cabo Verde (16h30-19h30 em Portugal; 11h30-14h30 em Boston). Será transmitido em directo pelas redes sociais (canal YouTube, Facebook) e as actas serão publicadas.
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Tertúlia Nôs e Nôs Terra é um espaço de diálogo constituído há cerca de 18 meses e que conta com a participação habitual do advogado Lucas da Cruz, do constitucionalista Wladimir Brito, do economista João Estevão, da historiadora Ângela Coutinho (residentes em Portugal), do embaixador Jorge Borges, da cientista Raffaella Gozzellino (residentes em Cabo Verde), da Dra. Dulce Évora (Itália) e do investigador António da Graça (Países Baixos). Com muita frequência, juntam-se às reuniões da Tertúlia convidados de Cabo Verde e de outras comunidades da nossa Diáspora.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1075 de 6 de Julho de 2022.