Começamos pela situação internacional. O que podemos esperar para 2023? A continuação da incerteza?
A situação internacional continua ensombrada pelas tensões geopolíticas, inflação elevada, e não podemos descurar o impacto do recrudescimento da Covid-19 na China na economia global. A inflação continuará elevada pelo que os principais bancos centrais já manifestaram a intenção em continuar com a subida das taxas de juros numa tentativa de trazer a inflação aos níveis considerados aceitáveis. Uma inflação elevada não é desejável porque não só prejudica o crescimento económico, como também penaliza os mais vulneráveis. Por outro lado, a manutenção do aperto das condições monetárias por parte dos principais bancos centrais pode, em última instância, provocar uma recessão económica global. Aliás, o próprio FMI já reconheceu que 1/3 da economia mundial estará em recessão em 2023. A evolução do cambio Euro Dólar também poderá ser uma incerteza, tendo o Euro atingido o valor mais baixo em 20 anos no ano passado. Em 2023 espera-se alguma recuperação do Euro e depreciação do Dólar, com as implicações na dívida pública e nos preços de importações de combustíveis. Por outro lado, um dólar muito forte pode agravar ainda mais a situação da dívida dos países emergentes e em desenvolvimento sendo que o “default” recente do Gana ilustra claramente as dificuldades que este contexto externo difícil está a provocar nos países. O conflito na Ucrânia continuará a influenciar negativamente os preços das matérias-primas e da energia, com implicações diretas e indiretas na inflação e nos custos de produção. Perante estes últimos choques, parece-nos estarmos perante o que chamamos um “Novo normal”, cuja conjuntura é marcada pela incerteza. Poderá ocorrer o que se chama de soft landing, se atendermos a uma desejável redução dos preços dos combustíveis nos mercados internacionais o que aliviaria a tendência dos bancos centrais em aumentar as taxas de juros. Assim, podemos dizer que os níveis de incerteza persistem. Temos sempre a prerrogativa de almejar uma melhoria da situação.
E até quando será possível à economia não saber o que vai suceder a médio/longo prazo? Ou o fim da guerra traria um certo conforto?
Tudo vai depender da evolução e materialização ou não dos riscos. Naturalmente, o fim da guerra traria maiores perspectivas de crescimento económico ao permitir às economias realizarem o potencial de crescimento, e com mais matérias-primas e energia a um custo mais reduzido. A normalização da cadeia de produção e distribuição seria uma consequência natural do fim da guerra. O fim do conflito armado permitiria o retomar de alguma normalidade relativa ao mercado, criando as condições para uma retoma do crescimento e do investimento e o próprio processo de reconstrução da Ucrânia, constituiria um impulso para a economia mundial, mas como as coisas vão evoluir no futuro ninguém sabe e o mais provável é que as sanções à Rússia e a guerra continuem em 2023.
É considerado pelos economistas que a globalização como a conhecíamos acabou? Concorda com esta visão?
Claro que não. A globalização é irreversível e a produção mundial é hoje mais eficiente por causa da globalização. Por outro lado, as economias mundiais tanto do ponto de vista financeiro como em termos de trocas comerciais já alcançaram um elevado grau de interdependência entre si o que torna a globalização de difícil reversão, a não ser em situações extremas. No actual contexto internacional, estamos sim a assistir a uma deslocalização (re-shoring) das cadeias internacionais de produção e distribuição da China para outros locais quer por razões de geoestratégia, quer por razões de segurança ou de proximidade o que se chama o nearshoring, ou seja produção em países vizinhos. Por exemplo, investimentos produtivos dos EUA na China estão a ser deslocalizados para o México, enquanto outros países se deslocalizam para o Vietname, Camboja, Malásia e México. A ideia de produzir levando apenas em conta os baixos custos de mão-de-obra, parece-nos ter os dias contados, pelo que na nova procura de localização para os investimentos estão a ser levados em conta aspectos de geopolítica, segurança e soberania.
Que impactos pode ter esta desglobalização na economia africana?
Primeiro temos que relembrar que um grupo de países (EUA, China, Índia, Japão e Alemanha) respondem por mais de metade do PIB mundial e na lista de 25 maiores economias mundiais com um contributo de 84% para o PIB mundial, nenhum está no continente Africano. Não obstante este facto, o continente Africano tem grandes oportunidades de melhorar esta estatística a seu favor. Mas, conforme disse anteriormente, não vejo a “desglobalização“ a acontecer, mas sim a deslocalização industrial, o que poderá ser uma boa oportunidade para a África. Este continente com todo o seu potencial de energia, minerais e matérias-primas, pode colocar esta disponibilidade ao serviço da economia mundial. Já há bons exemplos, nomeadamente a maior fábrica de fertilizantes foi construída logo na sequência da guerra na Ucrânia. Em vez de empresas ocidentais produzirem na Ásia, do ponto de vista logístico seria mais perto produzirem em África, mas para tal há um conjunto de reformas a serem feitas, nomeadamente no sistema de transporte e conectividade, na gestão macroeconómica, na estabilidade política e social, no sistema de educação e no sistema judicial. Seria uma boa oportunidade, pelo que as economias africanas necessitam, eventualmente, de alavancar o seu potencial e reivindicar um papel de maior protagonismo nas esferas de influência global, aliado a uma certa constância e estabilidade institucionais.
BCE, Reserva Federal, Banco de Inglaterra, têm referido que esperam taxas de inflação elevadas para o próximo ano. Como vê as políticas adoptadas pelas entidades internacionais – aumento das taxas de juro – que têm sido tão criticadas pelos políticos, principalmente os europeus?
Há um princípio básico que foi a conquista da independência por parte destes bancos centrais que menciona e o resultado de quase três décadas de estabilidade de preços foi muito graças ao trabalho de bancos centrais independentes. Por isso, esta crítica mostra que os bancos centrais continuam independentes e a fazerem o seu trabalho sem qualquer influência externa. Foram, inicialmente, criticados por agirem tardiamente quando a inflação deu os primeiros sinais como resultado da reabertura das economias na sequência do controle da pandemia. Agora, estão sendo criticados por agirem rapidamente contra a inflação. Apesar da agressividade das medidas adoptadas, estas ainda não parecem estar a surtir os efeitos no timing desejável e o custo de vida tem vindo a aumentar. Não obstante, devermos trazer para a equação que os principais bancos centrais, de alguma forma têm mandatos distintos, ou seja, alguns focam-se exclusivamente no combate à inflação enquanto outros fomentam também o crescimento económico e o emprego.
E qual o impacto que podemos esperar destas medidas em Cabo Verde?
Cabo Verde é um país que depende fortemente dos fluxos externos de financiamento. Assim, naturalmente estas medidas terão impacto directo ou indirecto ao nível do investimento directo estrangeiro porque aumenta o custo do financiamento bancário, fazendo uma espécie de selecção natural dos investimentos e exigindo uma rentabilidade mais elevada para os projectos viáveis. Também podem ter influências nas remessas dos emigrantes porque aumenta o custo de vida e os emigrantes ficam com menos recursos para enviarem às famílias ou para investirem. Ao nível da política monetária do BCV, já dissemos e reafirmamos aqui que manteremos a defesa do peg fixo mediante a manutenção de reservas externas suficientes para cerca de 5 meses de importações.
O BCV tem referido que não haverá aumento das taxas de juro em Cabo Verde, mas até quando será possível manter essa medida?
No nosso actual regime cambial, e com uma inflação que é importada, ou seja, os preços já vêm de fora aumentados, temos pouca margem de manobra para reduzir esta inflação. Quando a Reserva Federal dos EUA ou o BCE aumenta as taxas de juros, o objectivo é arrefecer a procura de forma a reduzir a pressão que é exercida sobre os preços, mas mesmo assim a inflação continua ainda em níveis elevados, pois parte importante da pressão inflacionária resulta dos constrangimentos do lado da oferta. É preciso ter atenção que o quadro operacional da nossa política monetária é diferente. A nossa actuação é mais no sentido de preservar o regime cambial de peg fixo através da manutenção do nível adequado de reservas cambiais em divisas e activos (Euro, Dólar, Ouro). Até agora as reservas têm estado até a crescer, de modo que não se registam pressões significativas na balança de pagamentos, apesar do diferencial das taxas de juros com a zona euro a ser-nos desfavorável, mas estamos atentos, a seguir o evoluir da conjuntura para qualquer eventualidade. De qualquer maneira, tal como o BCE, deixamos de dar o chamado forward guidance, ou seja, qual a indicação futura do sentido das taxas de juros.
O governo avançou recentemente que espera um crescimento entre 10% a 15% do PIB para 2022. Mesmo sabendo que o BCV é por norma comedido nos seus números, este crescimento acaba por surpreender ou já era esperado?
Nós tivemos de rever em baixa o crescimento logo em Abril de 2022 na sequência da guerra na Ucrânia porque não sabíamos quais seriam os impactos da guerra na economia mundial e na economia nacional. Mas já no Relatório de Política Monetária (RPM) de Outubro de 2022, e mediante os resultados do primeiro semestre, atualizámos para cima o crescimento do PIB para cerca de 8%. Não podemos esquecer que estamos numa fase de recuperação de uma queda expressiva em 2020 (14,8%) e a retoma da actividade tem sido preponderante para alguns sectores da nossa economia, nomeadamente os serviços com capacidade de gerar efeitos de arrastamento ou externalidades positivas com benefício para o crescimento económico. Mas estamos de acordo que o crescimento económico para 2022 vai ser surpreendente e o mais alto jamais registado na história de Cabo Verde. Alias, após a divulgação do PIB para o terceiro trimestre de 2022 pelo INE (um crescimento homólogo do PIB de 17%) e, de acordo com o exercício de previsão feito pelo BCV, o PIB real para o ano de 2022, deverá crescer em torno dos 15 por cento, (7% em 2021) explicado pelo crescimento excepcional que se espera, sobretudo, nos ramos de alojamento e restauração, comércio e transportes. Do lado da procura, o consumo privado e a procura turística estarão na base deste crescimento.
Por outro lado, a inflação projetada para 2023 é de cerca de 4% (quase metade da de 2022). Quando sabemos que a inflação acima dos 2% perturba significativamente o crescimento económico, o que se pode esperar para este ano, em termos de crescimento?
Esperamos uma moderação do crescimento económico tendo em conta a conjuntura internacional e o facto de a economia estar a aproximar-se da sua trajetória limite de crescimento potencial. Para 2023 esperamos que o PIB retome a sua trajetória natural de crescimento, ou seja, o potencial, que será perto dos 5 a 6%. Naturalmente precisaríamos de reformas que alterassem significativamente a produtividade para podermos aumentar o potencial de crescimento do PIB sem provocar inflação endógena, ou seja uma inflação originada por excesso de procura interna.
A reposição do poder de compra da população deve ser uma prioridade? Ou, novamente, o combate à inflação terá um peso superior a um potencial aumento de salários?
Isso já se trata de política de rendimento e preços do Governo. No entanto, há que ter em conta que a reposição integral do poder de compra provoca o que se chama inflação de segunda ordem, ou seja, as empresas tendem a aumentar os preços quando os custos de produção aumentam e, neste caso, o custo adicional seria o aumento do salário. Portanto, resumindo, sempre que há um aumento salarial derivado de uma primeira leva de inflação, é de se esperar uma segunda leva de inflação devido ao aumento dos salários nominais, criando uma ilusão monetária, porque em termos reais os trabalhadores podem até ficar piores. Poder-se-ia entrar na chamada espiral inflacionária, em que além da inflação importada, acrescentaríamos a inflação gerada pelo aumento dos custos salariais.
Em relação à economia cabo-verdiana, preocupa-o o ano de 2023? Ou não mais que nos anos anteriores?
Julgamos que as preocupações são as mesmas, nomeadamente, o endividamento, a inflação elevada e a necessidade de consolidação orçamental. Precisamos de mais investimentos de qualidade para potenciar o crescimento económico, precisamos de fazer reformas que estimulem e aumentem a produtividade dos factores. Precisamos diversificar as fontes de crescimento nomeadamente o que o Governo tem apostado; economia azul, economia verde e transição digital.
Quais considera serem os principais riscos e os principais desafios para 2023 para a economia de Cabo Verde?
Como riscos podemos apontar o endividamento e os créditos malparados existentes na banca que, apesar da tendência descendente, continuam elevados em termos de parâmetros internacionais, as moratórias que foram concedidas podem implicar alguma renegociação das dívidas, as contingências do orçamento de Estado e a situação de algumas empresas públicas. Os desafios prendem-se com o aumento da produtividade para que possamos crescer ainda mais e reduzir a pobreza. O sistema de ensino e da justiça, são áreas que apresentam desafios importantes se queremos atrair mais investimentos que são necessários ao desenvolvimento do país. Não podemos esquecer o sector privado que precisa de mais capitais, mas também melhorias na qualidade de gestão se quiserem materializar o potencial que temos perante a integração na nossa região.
O que podemos esperar das políticas do BCV para este ano?
Nós continuaremos centrados na nossa missão de estabilidade de preços e na estabilidade do sistema financeiro. Tal mandato é conseguido através da manutenção do regime de câmbio (peg) fixo com o Euro, naturalmente ajudados com uma boa política fiscal e orçamental. Sobre a evolução das taxas de juros, como já referimos, as decisões, tal como no BCE, serão tomadas reunião-a-reunião de acordo com as informações disponíveis. Por outro lado, a nossa acção como regulador do sistema financeiro continuará a ser marcada pelas inspeções on site e off site aos bancos e outras instituições do sistema financeiro. Também como já tínhamos anunciado, estamos ainda a trabalhar na eventual emissão de moeda digital, sabendo que primeiro deve haver uma alteração na lei orgânica para que o BCV possa ser legalmente mandatado.
O que se pode esperar para o emprego?
Com os sinais de recuperação é expectável que haja melhorias no emprego, principalmente nos sectores de maior dinamismo da economia. Dados recentes, com base no Censo da população de 2021, apontam para uma taxa de desemprego de 8% em 2021, uma redução quando comparado com os 14,5% de 2020.
A dívida pública deve continuar acima dos 140% do PIB. Qual seria o valor ideal, em 2023, para o BCV?
Quando a dívida se cifra em valores elevados, que é o caso de Cabo Verde, uma clara estratégia de redução e consolidação é essencial para garantir a sustentabilidade desta mesma dívida. A preocupação do BCV é com uma boa estratégia de gestão da dívida pública visando a redução dos riscos orçamentais inerentes. Assim, defendemos que é um imperativo baixar o rácio da dívida pública para valores próximos de 90% do PIB e penso que o país deve trabalhar no sentido de atingir este valor em 2026 mediante a consolidação orçamental que, em última instância, produza excedentes primários substanciais. Nestes dois últimos anos a dívida aumentou por causa das sucessivas crises, nomeadamente a pandemia e devido à queda do PIB em 14.8% em 2020, tendo chegado a atingir 155% do PIB. Mas já com o crescimento do PIB em 2021 e 2022, a dívida em percentagem do PIB está a diminuir e os últimos dados apontam para cerca de 130%.
Considera que a política orçamental está alinhada com a política monetária?
O Banco de Cabo Verde para além de regulador do sistema financeiro é a autoridade cambial da República de Cabo Verde. No âmbito da execução da política monetária e cambial, regime cambial em vigor de peg fixo com liberdade de circulação de capitais é determinante que as políticas orçamental e monetária estejam na mesma direcção para a defesa do regime cambial. Caso contrário, ou seja, uma descoordenação entre as duas políticas (independentes, mas trabalhando na mesma direção) poderia pôr em causa a sobrevivência do regime cambial do peg fixo com o Euro.
Que sinais serão dados para o sector privado por parte do BCV?
Continuar a nossa missão de estabilidade de preços e do sistema financeiro, garantindo o regime cambial de peg fixo. Esta estabilidade cambial permite que se façam negócios internacionais com a mínima preocupação sobre os riscos cambiais quando se negoceia com a Europa, nosso principal parceiro económico. A estabilidade macroeconómica é um dos principais activos que o país possui.
Por último, como aumentar os índices de confiança de consumidores e investidores?
Com reformas no sistema judicial de modo a garantir o cumprimento dos contratos e uma resolução célere das disputas judiciais, com melhorias no sistema de conectividade entre as ilhas e entre o país e o resto do mundo de modo a permitir uma regularidade dos transportes. Os empresários reclamam de custos de contexto elevados, pelo que uma redução nos custos de contexto (água, energia, comunicações) facilitaria a atracção de mais investimentos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1102 de 11 de Janeiro de 2023.