“Um dos maiores desafios é tornar a dívida em investimento produtivo, para que possa impactar positivamente a economia”

PorNuno Andrade Ferreira,28 abr 2024 12:12

A África Subsaariana parece ter entrado no caminho da recuperação. Porém, esta é “tímida e cara”. Nas Perspectivas Económicas Regionais (PER), divulgadas na última sexta-feira, o Fundo Monetário Internacional (FMI) avança que o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) na região passará de 3,4 por cento, em 2023, para 3,8 por cento, em 2024, e 4%, em 2025. A inflação mediana diminuiu de quase 10 por cento, em Novembro de 2022, para cerca de 6 por cento, em Fevereiro de 2024. O economista do Departamento Africano do FMI, Thibault Lemaire, comenta ao Expresso das Ilhas as principais linhas do relatório.

De acordo com os dados das últimas perspectivas económicas, a inflação continua a mostrar sinais de desaceleração, face aos máximos dos últimos anos. Além disso, as economias da região evidenciam crescimento. Em conjunto, que sinais é que estes indicadores nos sugerem?

Efectivamente, a inflação abrandou de 10%, no final de 2022, para 6%, mais ou menos, no mês de Fevereiro de 2024. Isto é a inflação mediana na região. Metade dos países têm uma inflação mais elevada, metade uma inflação menos elevada. É algo muito positivo para a região, inclusive para os países mais vulneráveis. Os preços alimentares, por exemplo, deixarão de aumentar tanto. Também projectamos uma taxa de crescimento económico mais elevada, este ano. Foi de 3,4% em 2023 e projectamos que seja 3,8% no ano 2024. É uma recuperação tímida, cara, mas é um sinal muito positivo para a região, que se pode explicar por uma melhoria das condições mundiais, em parte, e noutra parte, também, pelos esforços feitos na região, em termos de política monetária e fiscal, por parte dos governos.

Nos últimos meses, tivemos três países que regressaram ao mercado, Côte d’Ivoire, Benin e Quénia. A emissão correu bem, os valores que conseguiram arrecadar são positivos, mas tivemos analistas a mostrar algum receio de que se crie a ilusão de que um regresso aos mercados é fácil e possível e que, no fundo, isso acabe por contribuir para agravar a situação dos países. Como é que olha para o regresso aos mercados destes países e que sinais é que isso nos dá sobre a economia da região, no seu conjunto?

Primeiro, o facto de os mercados de capitais internacionais estarem novamente abertos para algumas economias da região é uma boa notícia. Esse regresso acontece depois de quase dois anos sem poder emitir dívida, nesses mercados. Contudo, só três países, este ano, de momento, poderão emitir Eurobonds. A taxa média de rendibilidade ainda é elevada. Calculamos que era quase 11%, na região, no final de Março, comparado com 7,3% antes da pandemia. Então, são taxas de rendibilidade ainda elevadas. Também, algumas emissões tiveram um prazo de vencimento relativamente curto, mais curto do que observado antes da pandemia. Portanto, este regresso aos mercados é algo positivo, mas não observamos, digamos, uma festa de empréstimos. Não é o caso, actualmente.

Nas suas mais recentes Perspectivas Económicas Regionais, o Fundo Monetário Internacional assinala o equilíbrio difícil entre cumprir as obrigações para com os credores e manter um nível de investimento capaz de promover o desenvolvimento. Dá-me ideia que esse equilíbrio tem sido conseguido, muitas vezes, à custa de mais dívida. Como é que quebramos este ciclo? É possível fazê-lo?

O desafio principal, um dos maiores desafios, é tornar a dívida em investimento produtivo, para que realmente essa dívida possa impactar positivamente a economia. E aqui são duas as condições para se conseguir isso. Primeiro, é importante que esses fundos, obtidos através da emissão da dívida, se transformem em investimento de alta rendibilidade. Isso passa por uma boa selecção de projectos e boa execução dos projectos. Mas também é importante que os benefícios desses projectos gerem mais receitas para os estados da região e essas receitas adicionais permitirão reembolsar essa dívida no futuro.

Alargamento da base tributária, reforma da administração fiscal: fala-se muito sobre isto, mas é algo que também requer investimento. Também se fala sobre modernização da economia, o que requer investimento. O que é que os parceiros internacionais podem fazer, estão a fazer, para ajudar os países a desbloquear este dilema?

Primeiro, é importante mencionar que nem toda dívida é má. A dívida é boa se vai aumentar os investimentos de alta rendabilidade, que vão gerar mais receitas fiscais. O que os países podem fazer é diversificar as suas fontes de financiamento. E aqui um desafio é tentar conseguir mais investimentos directos estrangeiros, por exemplo, que são fundos de longo prazo, que são menos voláteis que outros fundos e que também têm benefícios, por várias razões, para a produtividade da economia. Na Ásia, por exemplo, o sector privado tem um papel mais importante na economia e este sector privado é responsável pela maior parte do investimento na economia. Essa é uma possibilidade, para favorecer o desenvolvimento.

Qualquer reforma estrutural precisa de tempo para produzir efeitos. Falávamos há pouco da reforma da educação. Os desafios, esses, são reais e muitos deles são urgentes. Precisam de resposta não daqui a 5 ou 10 anos, mas agora. É possível responder a estes desafios, com os mecanismos que hoje existem, ao mesmo tempo que quebramos alguns laços de dependência que parecem persistir?

Concordamos que as reformas estruturais levam tempo. A mobilização de recursos internos, por exemplo, de que já falámos. Também o desenvolvimento do sector financeiro doméstico precisa de tempo para ser implementado e para produzir efeitos. Por isso, no relatório das Perspectivas Económicas Regionais, fazemos um apelo ao apoio e à solidariedade internacionais. Achamos que são importantes, justamente, para facilitar a implementação dessas reformas e para gerar frutos no médio e longo prazo.

Nas Perspectivas Económicas, o FMI sublinha a importância dos financiamentos a título concessional para os países mais pobres. Contudo, fico com a sensação de que, para os países de rendimento médio, como é o caso de Cabo Verde, por vezes, faltam respostas às suas necessidades. Por um lado, não são países pobres, por outro, também não são países ricos. Gostava de ouvir a sua opinião sobre os mecanismos que existem especificamente para países de renda média.

Tema muito importante. No relatório, falamos da região em termos gerais, então, não vou falar de um exemplo em particular, mas vou ficar a um nível mais geral. À medida que os países atingem um nível de rendimento per capita mais elevado, a diversificação das fontes de financiamento tem uma importância ainda maior, digamos. E também tem uma importância ainda maior que o motor do crescimento seja o sector privado. Para isso, algo que os países podem fazer é atrair fluxo de capitais de mais longo prazo, como investimento directo estrangeiro. Também, favorecer o desenvolvimento dos mercados financeiros domésticos.

As poupanças existem na região. A região tem recursos internos. Muitas vezes, em forma de activos que não são financeiros. E, então, esse desenvolvimento dos mercados financeiros domésticos vai poder fazer com que essas poupanças tenham um uso mais produtivo, que melhore a produtividade da economia. Essa é uma forma de financiar o desenvolvimento, quando os países atingem um nível de rendimento per capita mais elevado. Financiamento externo de mais longo prazo, como investimento directo estrangeiro, mas também financiamento doméstico.

O FMI também sublinha, nas suas Perspectivas, a questão da procura por novas fontes de financiamento. Porventura, fontes com menos exigências de elegibilidade, mas talvez mais caras ou com mais riscos a médio e longo prazos. A procura por essas novas fontes de financiamento, que fogem aos mecanismos e parceiros tradicionais... o que é que isto pode significar para esses países e para a região?

Falamos de financiamentos não tradicionais e observamos as mudanças nos últimos 10, 15 anos. A proporção da dívida pública interna, no total da dívida pública, aumentou bastante e agora é mais da metade da dívida pública. Outra mudança está relacionada com a dívida externa. A maior importância dos Eurobonds e também financiamentos de membros não tradicionais, que não fazem parte do Clube de Paris. Isso é uma boa notícia, isso é exactamente a diversificação das fontes de financiamento. Então, é uma boa notícia para a região. Algo importante, como em qualquer tipo de financiamento, é que o país deve ser cauteloso com os termos associados com essa dívida e com os custos associados com essas novas fontes de financiamento. É também importante que o financiamento faça parte de um marco de gestão da dívida pública que seja sólido.

Parece-lhe, parece ao FMI, que, para alguns países, a questão da reestruturação da dívida é inevitável, vai ter de se colocar em algum momento?

Vou falar de forma geral. Começar o processo de reestruturação da dívida é uma decisão do país. Agora, achamos que é uma boa decisão quando a dívida pública já não é sustentável, o que significa que não pode ser paga, por razões económicas ou sociais. Neste caso, aconselhamos a começar esse processo, mas é decisão do país. Quando a dívida já não é sustentável, quanto mais cedo o país começar a conversar com seus credores, melhor, porque vai minimizar o custo dessa reestruturação.

A forma que o FMI tem de ajudar é na concepção de um pacote de políticas para conseguir um equilíbrio entre assegurar a recuperação económica, por um lado, e executar um ajuste, que reduza as necessidades de financiamento e que resolva as fragilidades económicas, por outro. O FMI também pode prestar apoio financeiro, a fim de responder às necessidades do país em termos de balança de pagamentos e assim contribuir a um ajuste suave. Mas, novamente, a decisão de começar um processo de reestruturação da dívida é uma decisão do país.

Na frente política, o vosso relatório também frisa isto, este é um ano de muitas eleições. Por vezes, na África Subsaariana estes processos significam alguma instabilidade antes, durante e até depois do processo – foi um bocadinho isso que vimos no início do ano no Senegal, por exemplo. Por outro lado, temos os casos de Burkina Faso, Guiné-Conakry e Mali. Como é que o FMI avalia o risco de alguma instabilidade e possíveis consequências no desempenho das economias ao longo dos próximos meses? Quais são as chamadas de atenção, os alertas, o que é que sinaliza como importante?

Os países que menciona, do Sahel, anunciaram que vão sair da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDAO), que é um acordo comercial. Mas não anunciaram que vão sair da União Económica e Monetária do Oeste Africano, a UEMOA. É importante mencionar isso.

Sobre essa saída da CEDEAO, nós projectamos que o impacto na balança comercial seja limitado. Projectamos que tenha um impacto negativo sobre as taxas de crescimento, por várias razões, mas antecipamos um impacto na inflação e nas receitas orçamentais provavelmente baixo, também. As estimativas do FMI para esses países vão ser actualizadas no próximo Artigo 4, que é uma visita do FMI a esses países. As equipas do FMI vão actualizar as projecções no contexto dessas visitas. A incerteza com essa situação pode aumentar o custo do financiamento doméstico. Esse é um impacto possível. E também pode ter mais repercussões sobre as decisões de investimento no médio e longo prazo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,28 abr 2024 12:12

Editado porEdisângela Tavares  em  20 nov 2024 23:25

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