Muito já se disse por estes dias a favor e contra a paridade. A última reacção alérgica à lei foi manifestada por parte de um alto ex-dirigente político, que por sinal chegou a ser primeiro-ministro, ainda que na condição de interino, o que na altura muita celeuma tinha causado. Gualberto do Rosário ficou pasmado com o projecto de lei da paridade e confessa que ainda está a se esforçar para perceber se «o Paicv e o MpD vão votar uma “lei da paridade” para os obrigar a construir listas eleitorais onde a presença dos sexos seja paritária».
Logo neste começo, Gualberto do Rosário deu dois tiros no próprio pé. Primeiro, é que ele se esqueceu que, em democracia, os partidos devem legislar não em função dos seus próprios interesses, mas atendendo-se aos interesses da colectividade (da nação), composta por homens e mulheres. Segundo, a lei da paridade mais não é do que uma norma de distribuição de lugares para garantir a representatividade de ambos os sexos. Então, Gualberto do Rosário não se lembra que Cabo Verde é um país insular e que, desde que foi aqui instaurado a democracia representativa, o princípio da representação e da proporcionalidade é aplicado para a distribuição dos mandatos pelas várias ilhas e regiões do país?
Há tantas outras incongruências no pequeno texto de Gualberto do Rosário que, francamente, não vi razoabilidade nem racionalidade (nem tão pouco de natureza económica muito menos política ou social) na sua posição. Eu sei que ele é um liberal com plena convicção dos valores da democracia e, por isso, não consigo perceber por que razão não vai mais além na sua concepção. E agora, como se acordando de um sono profundo, vem com esta réplica: «Porque se recusa a instalar o Conselho Económico, Social e Ambiental, órgão constitucional onde há lugar para um departamento para a equidade? Eis a questão!!!» Oh, Gualberto do Rosário, estamos no século XXI e, graças a Deus, a luz é para todos e todas. Não tãosó para uns tantos ou apenas algumas.
Posto isso, seguem as minhas perguntas para Gualberto do Rosário, exprimeiro ministro interino da república soberana e democrática de Cabo Verde, defensor da democracia, da Constituição, da inserção económica de Cabo Verde no mundo e opositor à lei da paridade:
1) Acha mesmo que a reforma legal não é a solução para refundar a democracia, para democratizar as instituições e para ampliar as bases de recrutamento político? (Sugiro que pense duas vezes, até porque toda a liberalização económica e política de finais dos anos oitenta e princípios dos anos noventa foi com base na ampla revisão das leis autoritárias no sentido de darem lugar às leis fundacionais do Estado de direito democrático).
2) Acha mesmo que é democrático que metade da população ocupe apenas 23% dos lugares legislativos e 25% do executivo? (Talvez isto sim seja uma forma pequenina que olhar para as cabo-verdianas, inteligentes, lutadoras, dignas e que vêm demonstrando, particularmente depois da independência e da democracia, como se conquista a paridade. Isto sim é roubar o mérito às cabo-verdianas).
3) Enquanto economista, acha que a exclusão económica, política e social de metade da população beneficia o desenvolvimento de Cabo Verde? (Esta pergunta nem precisa dar ao trabalho de responder. Basta ir ao facebook do VPM e lá encontrará a resposta. Olavo Correia, ministro das finanças e VPM, já teve a plena consciência de que a efectiva contribuição das mulheres cabo-verdianas – sejam elas rabidantes, migrantes e outras profissionais – para o desenvolvimento do país não se resume apenas aos impostos que elas devem pagar. Se pagamos impostos em pé de igualdade, temos direitos de ocupar em igual circunstância todos os espaços da vida pública em sociedade).
Gualberto do Rosário vai ao ponto de questionar se os partidos «precisam de uma lei que os vincule ao princípio da paridade. Dito de outra forma, eles, PAICV e MpD, são os sujeitos únicos e os objectos únicos da Lei. Significa que, na ausência desta lei, não respeitam o princípio da paridade? Mas onde se viu tanta hipocrisia e tanta incoerência? Onde se viu tamanha demagogia e populismo? Onde se viu tanta instrumentalização para arregimentar votos femininos?» É neste sentido que dá mais um tiro no pé. Então, Gualberto do Rosário não é um dos promotores da reforma legislativa para a regionalização ou é só populismo? Cá vai a minha quarta e última questão.
4) Por que razão é a favor da lei da regionalização e contra a lei da paridade? (Quer dizer que, sem a lei da regionalização, não respeitam o princípio do equilíbrio regional? No meu caso, sou franca: da mesma forma que sou a favor do equilíbrio regional, sou a favor da representação equilibrada de ambos os sexos na política e em todos os órgãos de decisão).
Assim como a lei da regionalização, a lei da paridade é um avanço para a realidade de Cabo Verde. Somos ilhas, temos as nossas especificidades. Somos uma nação secular e um jovem país. Temos que tomar decisões em momentos certos, ainda que sejam difíceis. Gualberto do Rosário já chamou a atenção para este drama de Cabo Verde que é perder recorrentemente as oportunidades. Então, desta vez, não nos deixe perder mais esta oportunidade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 935 de 30 de Outubro de 2019.