Os enormes desafios que se colocam neste momento ao país e vão-se colocar nos próximos anos assim o exigem. Infelizmente não é o que provavelmente vai acontecer. A tentação é de continuar a fazer política da mesma forma venha seca, venha pandemia ou venha crise económica mundial. O recente ciclo eleitoral foi ilustrativo a esse respeito.
De facto, não se aproveitaram os vários embates eleitorais para trazer para a consciências das pessoas os problemas do país. Os actores políticos limitaram-se a renovar as promessas e a fazer acusações mútuas do não cumprimento do que foi prometido no passado. Em consequência, a situação real do país não passou a ser mais conhecida e eventuais soluções para sair da crise socioeconómica não foram realmente debatidas. O impacto da crise pandémica no mundo e dos efeitos nos bens e serviços, associados aos aumentos no preço dos combustíveis, aos estrangulamentos no shipping e nas cadeias de produção e de distribuição, às alterações climáticas, e a dificuldades na transição energética, não foi explicado de forma inteligível à população.
Pelo contrário, deixou-se entender às pessoas que por acção ou por omissão o governo é de alguma forma responsável pela inflação nos preços que se já se fazem notar em todos os sectores. Há mesmo quem atribua o desaire eleitoral do candidato apoiado pelo partido no governo ao mau “timing” dos aumentos do preço dos combustíveis e de energia e água e também à proposta intempestiva de aumento do IVA. Entretanto, não se dá a devida atenção às razões de fundo das vulnerabilidades nacionais, às ineficiências em vários sectores que prejudicam a produtividade e a competitividade do país e a comportamentos avessos a critérios meritocráticos, à orientação por resultados e à valorização do conhecimento que são nocivos. E sem essa atenção, e sem a clarificação dos problemas reais, dificilmente será possível federar vontades na sociedade para fazer as reformas necessárias do Estado, da educação e da economia e se ter, de facto, desenvolvimento sustentável.
Todos dizem que a realidade actual de uma economia pouco diversificada, dependente do turismo, altamente endividada (mais de 155% do PIB) e sem possibilidade aparente de crescer a taxas superiores a 7% do PIB consideradas necessárias para debelar o desemprego, mesmo numa conjuntura favorável como foi a anterior à pandemia, não pode continuar. Agir, porém, é mais difícil. Mesmo quando se procura falar a verdade dos factos não se é ouvido. O governo através do ministro das Finanças tem-se referido em vários momentos ao problema da dívida pública que está a atingir níveis quase insustentáveis. Para 2022 o serviço da dívida pública, segundo ele, vai aumentar 9 milhões de contos com o fim das moratórias dos créditos contraídos entre 2008 e 2016, passando a totalizar cerca de 24 milhões contos. Perante esta declaração, aparentemente nem o país pestaneja e nem se vê razão suficiente para os partidos com assento no parlamento chegarem a acordo e alterar na lei os mínimos dos valores do défice e da dívida interna para o Estado de Cabo Verde poder fazer face aos seus compromissos junto dos credores.
Caso para perguntar que situação difícil ou crise consegue forçar as pessoas, a sociedade e os actores políticos a focar nas reformas que devem ser feitas e chegar aos compromissos necessários para as materializar. O poeta Ovídio Martins dizia que “as secas já não nos metem medo porque descobrimos a origem das coisas”, mas na realidade parece que o que se descobriu foi a solução da ajuda externa quando há qualquer calamidade seja ela seca, pandemia ou desastre natural. As reformas para diminuir vulnerabilidades e ganhar resiliência são sucessivamente adiadas ou quando encetadas ficam aquém dos resultados pretendidos. O que parece perdurar é a convicção de que talvez o país seja “too small to fail” e qualquer ajuda, qual migalha a cair do prato dos outros, tem grande impacto na sua pequena economia. Nesse sentido, ninguém se sente grandemente pressionado para fazer os arranjos políticos e sociais que poderiam apressar reformas e assegurar que tivessem os resultados desejados.
Para responder ao grande fardo de cumprir com o serviço da dívida pública (capital mais juro) já se estão a mobilizar parceiros como o BAD, o Banco Mundial, Luxemburgo, Portugal e a União Europeia sendo todos os contactos feitos e as promessas de ajuda anunciados com grande fanfarra pelo governo. Do FMI vieram cerca de 30 milhões de dólares correspondentes a 21 milhões de SDR, de direitos especiais de saque. Foi o que coube a Cabo Verde em resultado da distribuição feita pelo FMI por todos os países do mundo de acordo com as suas respectivas cotas a partir de um bolo comum correspondente a 650 bilhões de dólares. O interessante neste esquema para ajudar os países com dificuldades acrescidas devido à crise pandémica é que os SDRs recebidos não contribuem para o aumento da dívida pública.
O FMI, através do fundo Poverty and Resilience Trust constituído a partir de SDRs cedidos por países sem dificuldades orçamentais, pretende alargar ainda mais a ajuda aos países mais pobres. Cabo Verde deve poder usar esse canal multilateral para conseguir mais SDRs e reestruturar a sua dívida externa com esquemas que lhe permitam moratórias mais longas e juros mais baixos. Devia-se explorar também canais bilaterais com os países mais próximos e em particular com aqueles como Portugal em que uma parte da dívida é de natureza comercial (exemplo Casa Para Todos) e o serviço da dívida é mais pesado. Nos anos noventa inovou-se com a criação do Trust Fund para diminuir o impacto do serviço da dívida interna acumulada na transição da economia estatizada para economia de mercado. Talvez seja agora o tempo para uma entidade igualmente inovadora para fazer face aos constrangimentos orçamentais que irão ser postos pela dívida externa a partir de 2022.
Não se deve é ficar por aí. O espaço ganho deve ser utilizado para se avançar com as reformas que podem tornar o Estado e a sua máquina mais eficiente e eficaz e também mais útil e competente enquanto agente do desenvolvimento. A rigidez das despesas do Estado que segundo o OE de 2022 atinge os 90 % deve ser diminuída consideravelmente. Para isso e também para se poder atingir os objectivos de resiliência e sustentabilidade, compromissos sociais e políticos terão que ser firmados. Se em tempo de crise profunda não se conseguir o que a realidade nacional e internacional força todos a fazer para se poder construir um futuro de prosperidade, ninguém garante que mais tarde haverá motivação para isso. É responsabilidade de todos assegurar que esta crise não seja mais uma oportunidade perdida. Ao governo da República naturalmente cabe uma responsabilidade muito maior.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.