A história que nos queima e o sol que nos esquece

PorMário Loff,3 fev 2025 9:32

Quando se pensa em Cabo Verde, dois elementos vêm à mente imediatamente: o mar e o calor. O mar é agitado, rabugento, como o cabelo das senhoras badias que, para a nossa desgraça da época, morreram de fome sem jamais pentear seus cabelos. E o calor, esse calor seco, gruda na pele como a história gruda na alma deste povo as vezes desatento. O mar, as ondas, moldam as rochas como se quisessem deixar mensagens, mas são apenas enigmas esquecidos, enquanto o sol, esse cruel árbitro do tempo, grava lembranças em cada ruga da terra.

E as pedras... aquelas pedras que nada dizem, mas tudo testemunham. Ficam ali, sentinelas mudas, observando o ciclo da vida, a ascensão e queda das coisas. São elas, as pedras, que realmente sabem o que aconteceu. Talvez o problema é que ninguém escuta as pedras. A verdade não está nas opiniões das pessoas, que mudam de forma tão rápida quanto o vento. Não, a verdade está nas pedras, silenciosas e imutáveis, e é isso que nos assusta. Um país que caminha entre o banal e o sublime, entre o “padodu” (o trivial) e os influenciadores a serviço de interesses obscuros, cheira a promessa, mas também a decadência.

Agora, sobre o recente debate do PAICV pedir desculpas pelos tempos de monopartidarismo... isso é como uma rachadura no solo de massapé, firme por fora, mas à medida que se escava, surgem os vestígios do passado. O MPD, com sua proposta carregada de intenções políticas, lembra-nos que o tempo não apaga as feridas. Ele só as cobre com uma camada de esquecimento. A história, meus amigos, é como um vulcão que parece adormecido, como o do Fogo por exemplo, mas se enganem, porque ela tem seus momentos de erupção. Cada debate é uma chama acesa que reacende a necessidade de enfrentar os fantasmas do passado. Agora, a pergunta é: estamos prontos para convocar esse tribunal invisível? Estamos prontos para ouvir as memórias abafadas e os gritos nunca ouvidos? Ou vamos continuar no silêncio cúmplice, enquanto os erros do passado continuam a reverberar no presente?

A recusa do PAICV em pedir desculpas é algo curioso. De um lado, temos o medo de abrir uma fenda tão grande que engolirá tudo, até sua própria identidade. E do outro, a recusa se torna uma afirmação de que a história é muito mais complexa para ser resumida a desculpas simples. A independência, com todas as suas glórias, é a bandeira que o PAICV ergue para justificar sua posição. Mas será que isso é realmente uma defesa ou apenas um medo de mexer em um passado que poderia revelar verdades incómodas? Verdades que reescreveriam não só o passado, mas também o presente.

Como disse Mia Couto, “A história não se faz apenas com aquilo que aconteceu, mas com o modo como escolhemos recordar.” E em Cabo Verde, recordar é um ato de coragem, um ato político. O perdão, ou sua ausência, pesa como uma pedra solitária carregada montanha Graciosa acima. Em Tarrafal, onde a dor é quase palpável, as pedras não são apenas símbolos. Elas são testemunhas que pedem para serem ouvidas. E entre aqueles que exigem justiça e os que preferem esquecer, existe uma linha tão tênue quanto a sombra de uma acácia americana ao meio-dia.

Em outros países, pedidos de desculpas também seguiram caminhos tortuosos, incluíveis partidos com histórias marcantes. Em Angola, a fala do presidente sobre os eventos de 1977 trouxe alívio e tensão. Na África do Sul, o reconhecimento do Apartheid por F.W. de Klerk foi um peso difícil de carregar para muitos. E em países como o Canadá, Brasil e Estados Unidos, as desculpas soaram mais como gestos formais do que como uma verdadeira transformação. O perdão, meus caros, não é uma solução mágica. Ele é, sim, um convite ao diálogo, uma ponte que precisa ser construída com cuidado, ou corre o risco de desmoronar sob o peso das expectativas. Mas o que me intriga é que a nova largada e ideário do PAICV é a promoção da humildade que se pode ver nas bocas dos autarcas afetos, e quando lhe é chamado para demonstrá-lo de forma mais retumbante, nega-se a desculpar, nha boka ka sta la, só uma constatação. Mas, pondé tem razão: foge de pessoas puras,… porque gente do bem não come a outra.

Agora, sobre o pedido do deputado Celso Ribeiro. Bem, não sei se esse pedido realmente repercute no coração da nação ou se apenas ressoa entre os militantes do MPD, em especial os que se acham órfãos e que foram maltratados no regime ditatorial dos quinze anos, eles que se consideram abandonados pelo partido. Eles, que têm entre 40 e 60 anos, ainda remoem a raiva de terem sido vítimas do partido da ditadura, sentem mais essa obrigação e dor do que os jovens que por exemplo têm acesso ao ensino de forma grátis e mesmo assim não estudam e se acham no direto de revoltaram, mais tarde imigram. No entanto, se essa raiva não for curada por outros meios, não será por um pedido de desculpas do PAICV, que é algo que nunca virá, pois, essa ideologia parece mais preocupada em se honrar pela vida inteira e em retornar aos tempos de milicianos, ideia difundida por um dos seus autarcas e militantes com ambição de poder mais auspiciosos. E quem sabe, um dia, até ressuscitar a velha bandeira verde, vermelha e amarela que nos ligava a terra dos nossos brodas da Guiné-Bissau, e sim, exigirem novamente o pedido de desculpa pela mudança das corres, é que a democracia permite tudo até os seus inimigos disfarçados, basta atingirem o poder.

Aí, meu Cabo Verde, nunca deves deixar de procurar e construir pontes, que vai reconciliar o peso do passado com as esperanças do futuro. Enquanto isso, o mar continuará agitado e o calor seco vai continuar a grudar na pele, como um lembrete constante de que somos um povo em transição. E talvez, um dia, possamos caminhar por essa ponte com o coração leve, sabendo que enfrentamos nossas memórias não com silêncio, mas com a coragem de quem acredita que a justiça e o perdão podem ser instrumentos para um futuro melhor.

E é assim que as coisas vão por aqui, nesses dias, amigos leitores. Sempre à beira de uma hipotética tormenta, mas com a esperança de que, de alguma forma, o sol vai brilhar novamente.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1209 de 29 de Janeiro de 2025.

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Autoria:Mário Loff,3 fev 2025 9:32

Editado porAndre Amaral  em  3 fev 2025 14:19

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