Nesta entrevista o ex-presidente do MpD recorda o processo que se iniciou em Fevereiro de 1990 e culminou numa “estrondosa vitória do MpD” nas primeiras eleições pluripartidárias, de 13 de Janeiro de 1991. Gualberto do Rosário considera que com o 13 de Janeiro Cabo Verde adquiriu a democracia plena e que a figura de Carlos Veiga foi essencial neste processo. “Isso é indiscutível. Pessoas com outro perfil teriam dado um resultado substancialmente diferente”, acrescenta Gualberto do Rosário.
Qual é a importância do 13 de Janeiro para Cabo Verde?
A importância do 13 de Janeiro é eterna. Quer dizer, o 13 de Janeiro não é uma construção pontual, senão que uma construção permanente, porque a vida interna cabo-verdiana e os desafios que o país tem, designadamente no plano internacional, obrigam a fazer do 13 de Janeiro uma realidade permanente, sobretudo de mudança, de alternativa, de modernização, nomeadamente no domínio político, mas também em outros domínios, como o económico, de ajustamento às dinâmicas mundiais e de resposta democrática aos desafios que se põem, porque a questão da democracia não é uma aquisição pontual. Com o 13 de Janeiro adquiriu-se a democracia plena porque o mundo é dinâmico, a vida vai mudando, as exigências são múltiplas e o aprofundamento dos sistemas é uma necessidade permanente. Então, o 13 de Janeiro coloca no centro do debate permanente da discussão e de soluções o problema das reformas e da adequação política, lato sensu, envolvendo também todas as outras dimensões: a social, a económica, etc. Portanto, coloca esse debate e as reformas como uma questão permanente das comunidades cabo-verdianas. E aqui eu quero dizer também que o 13 de Janeiro não é um problema apenas dos cabo-verdianos residentes aqui nestas ilhas. É um problema de um país fragmentado geograficamente, mas unido social e culturalmente numa única nação que é Cabo Verde, este Cabo Verde todo que nós conhecemos que extravasa largamente as fronteiras territoriais do país.
Sabemos que Carlos Veiga nunca quis vestir a pele do homem que foi o rosto da mudança em Cabo Verde. Na sua opinião, qual foi o contributo dele para o advento da liberdade e da democracia?
Nós temos que ver esta questão nas suas múltiplas dimensões, inclusive na dimensão ética. Se calhar é aquela que condiciona o dr. Carlos Veiga em assumir a condição da face motora da mudança. Ele desempenhou aí um papel indiscutivelmente fundamental. E eu penso que ninguém pode pôr isso em causa. Agora, há aqui outras dimensões que é preciso ter em conta. O 13 de Janeiro é um movimento social, não é sequer um movimento partidário. Portanto, o próprio MpD não pode assumir isso como se fosse uma coisa dele, do partido, que resolveu, num dia qualquer, organizar-se porque houve uma mudança ou uma perspectiva de mudança de regime político e, digamos, fez o 13 de Janeiro. O MpD liderou o processo do 13 de Janeiro, mas liderou como partido popular. Portanto, há aqui uma distinção enorme a fazer entre aquilo que é o MpD enquanto partido popular e aquilo que são os partidos políticos de nomenclaturas existentes por este mundo democrático fora. Portanto, o MpD foi, essencialmente, um movimento e um partido popular que assumiu a condição de partido político ao participar nas eleições legislativas, mas, de facto, foi um movimento social que integrou todos os cabo-verdianos que achavam que a mudança deveria existir, incluindo gente do PAICV. É preciso dizer isso sem constrangimentos, sem juízes de valor, porque houve muita gente do PAICV que participou do movimento de mudança social também. Eu lembro-me que em São Vicente, por exemplo, quando ganhamos as eleições, muita gente do PAICV, que esteve, inclusive, na Guiné-Conacri, foi comemorar connosco na nossa sede. Portanto, foi um movimento social impressionante, só comparável ao movimento para a independência do país, em termos de fenómenos políticos e históricos que aconteceram em Cabo Verde. Nessa perspectiva o dr. Carlos Veiga terá razão. Mas ele não tem razão quando não assume a condição do líder, da face, de quem deu a cara e de quem contribuiu de uma forma significativa para tudo aquilo que é a substância do 13 de Janeiro, seja em termos do momento das eleições, seja depois no processo de reformas políticas, económicas, sociais, que se seguiram, sobretudo, com as duas governações iniciais do MpD. A figura de Carlos Veiga, como homem de diálogo, como uma pessoa que escuta antes de tomar uma decisão, que dialoga de uma forma impressionante, que facilita e promove o diálogo, foi essencial no processo. Isso é indiscutível. Pessoas com outro perfil teriam dado um resultado substancialmente diferente.
Aliás, houve fundadores que criaram novos partidos e nas eleições legislativas não passaram de um único deputado. Portanto, como afirma, foi todo um movimento popular.
Acho que não tiveram deputado nenhum, não é? Suponho. Nunca conseguiram, portanto, seja o PCD, seja o PRD. Acho que não conseguiram os resultados pretendidos. Mas isso resulta da marca MpD, porque o MpD tornou-se uma marca, mas resulta também da confiança que o Carlos Veiga inspirou aos cabo-verdianos. Um homem de confiança. Ele foi escolhido como líder pelo povo. Não é apenas por aquilo que constituía a essência do MpD enquanto partido político... o MpD foi quem fez a primeira escolha e isso foi feliz, mas Carlos Veiga foi escolhido pelo povo como líder. Isso é inquestionável.
Qual foi a sua contribuição em todo esse processo que conduziu ao 13 de Janeiro?
Eu não gosto de falar disso. Eu tenho muita dificuldade em falar de mim. E a minha contribuição foi aquela que foi. Portanto, foi como parceiro, como membro efectivo do MpD, como membro da sua direcção, como colaborador de todos na busca de soluções que passaram designadamente pela elaboração do programa político do MpD, que foi um programa de reforma e de governação. Portanto, não foi um simples programa político. Um programa que está hoje desatualizado pelo tempo e precisa de ajustamento. Mas a minha contribuição não foi nem maior nem menor do que as outras.
Participou na elaboração do programa político do MpD, sobretudo na parte económica, financeira, não é?
Participei no programa todo, desde a parte política, das reformas constitucionais, nas reformas económicas. Fiz parte do grupo que negociou a transição com o PAICV. Mas isto não me faz nem maior nem menor do que o outro qualquer. No MpD nunca tivemos essa preocupação. Tivemos a preocupação de termos sucesso naquilo que estávamos a fazer como grupo, como companheiros, como actores de um processo em que a maior parte dos actores não são nomeados, mas são actores também com a mesma força e com a mesma intensidade de todos. Portanto, aqui não há relevância especial a dar a um ou ao outro, e muito menos a mim.
Quem são os fundadores do MpD?
Veja bem, fundadores há muitos, não é? Depende do contexto, do momento que a gente escolhe para achar que há fundador. Há uma ideia provavelmente errada de que o debate político sobre o regime cabo-verdiano não se fez de forma sustentada e profunda antes de Fevereiro de 1990. Há esta perspectiva errada. Sim, havia muitos círculos. E inclusivamente havia criações orgânicas que se ocupavam um pouco de Cabo Verde e destas discussões todas de grupos de amigos que sempre debateram desde a década de 70. Particularmente, a partir da década de 1980. Lembro-me, por exemplo, da Liga Cabo-verdiana para os Direitos Humanos, em Lisboa. Fez um trabalho notável. Denunciou as prisões da reforma agrária e os julgamentos da reforma agrária. E actuou. Fez sair artigos em jornais, inclusive. Podemos falar de coisas mais antigas, que eu aqui não quero desenvolver. O grupo chamado GRIS (Grupo Revolucionário de Intervenção Socialista). O CCPD (Círculo Cabo-verdiano para a Democracia) que também existiu e funcionou. Os tais grupos de Achada Santo António. E não só, porque havia grupos em outros lados, em Achadinha, para citar o caso da Praia. Portanto, é por isso que em 1990, quando se dá a perspectiva de mudança do regime político, as pessoas se reúnem e facilmente chegam a uma proposta de programa. São capazes de definir estratégias, são capazes de liderar o processo social, porque o fermento já existia. Tudo estava um pouco preparado. Era uma questão apenas de acontecer um flash qualquer, um evento que pudesse permitir às pessoas se unirem e trabalharem para a promoção, para o desenvolvimento e para a realização do 13 de Janeiro. Portanto, se nós quisermos escolher datas, temos a data da assinatura e da declaração política. É um momento. Temos um momento de formalização do partido político, que, de facto, é a primeira convenção. E isso também é um momento importante. As pessoas que façam escolhas, eu não tenho grandes preocupações com isso.
Qual foi o papel das mulheres na mudança de regime político?
Foi grande, foi um papel grande em todos os sentidos da palavra: na produção de ideias, na organização, nas dinâmicas todas e, posteriormente, com as eleições e o resultado eleitoral que houve. Foi a primeira vez que Cabo Verde teve governantes mulheres. Foi a primeira vez, nunca tinha tido antes. E não só no governo, mas também em outras dimensões da administração pública, do Estado, do Parlamento e das outras instituições do Estado e públicas, de uma forma geral. Portanto, o 13 de Janeiro é também um movimento, claramente, de emancipação da mulher cabo-verdiana. Um processo que já vinha de antes, mas encontrou no 13 de Janeiro as condições para se desenvolver e para ir a uma posição, do meu ponto de vista, de relativa paridade com os homens. Quer dizer, não é o número que aqui conta. Não é se as mulheres eram mais ou menos do que os homens. O que conta é o papel que as mulheres passam a desempenhar na vida social e política cabo-verdiana. E aí o 13 de Janeiro permitiu às mulheres ocupar lugares cimeiros na vida política, económica, política e nas instituições do Estado de Cabo Verde.
Se a derrota do PAICV nas eleições de 1991 deixou o partido surpreso, já o objectivo do MpD era a eleição de deputados em número superior a um terço do total, garantindo assim a possibilidade de condiccionar a revisão constitucional. Também o MpD ficou surpreendido com a primeira maioria qualificada?
Não, isso foi uma posição inicial. Em Junho de 1990 já tínhamos a ideia clara de que poderíamos ganhar as eleições com maioria absoluta. Mais tarde, aventávamos a hipótese de ter uma maioria qualificada. Portanto, o resultado das legislativas de 1991 não foi, de facto, surpresa para o MpD. Poderá ter sido surpresa para o PAICV, mas não foi para o MpD. Pelas sondagens, pelo movimento popular, pela dinâmica dos processos sociais, pela presença nos comícios antevia-se uma estrondosa vitória do MpD. Dou-lhe o exemplo de São Vicente: no comício de encerramento de campanha, de 1991, o PAICV não conseguiu pôr gente na Rua de Lisboa, que escolheram como palco para preencher aquela rua toda. O MpD fez o encerramento na Praça Nova, encheu a Rua 5 de Julho até à Rua de Lisboa. Foi estimada em 24 mil pessoas a participarem no encerramento da campanha. Portanto, pode ter sido surpresa para o PAICV, mas não foi surpresa para o MpD, embora o MpD tenha proposto esse objectivo modesto que já seria importante para a mudança que se pretendia no país.
Fala-se agora muito da crise do sistema da democracia representativo. Quais são os factores que estão a contribuir para enfraquecer a democracia.
Já percebi a sua questão. Eu fiz uma proposta sobre essa matéria há alguns anos atrás. Tinha sido então convidado pela Presidência da República para participar na Semana da República com o tema “Desafios da Democracia Cabo-verdiana”. Este documento que deveria ter sido publicado, foi adiado sucessivamente e nunca se publicou. E eu já levantava esta questão. Eu até falo da necessidade de uma reforma profunda do Estado. Isto é absolutamente necessário em Cabo Verde. E nesta reforma eu falo da democracia semi-directa. Ou seja, hoje a tecnologia e já estamos a falar inclusive da inteligência artificial e de outras coisas. A tecnologia permite uma maior participação, mesmo que seja indirecta. Ou seja, mesmo que mantendo o sistema representativo, será possível ter soluções de participação organizadas da comunidade no seu conjunto de uma forma quase imediata facilitando inclusivamente a percepção nos órgãos de decisão do Estado daquilo que é o sentimento da comunidade. Isto é possível, mas não se faz. Há um debate muito importante a se fazer sobre esta matéria. O modelo constitucional que nós temos hoje está ultrapassado. A nossa Constituição foi provavelmente uma das constituições mais modernas do mundo. Hoje, face ao contexto do novo mundo em que estamos a viver a nossa Constituição está ultrapassada. Eu considero que não é só o problema da representatividade, mas também o sistema de governo que já está ultrapassado há muito tempo. Há pelo menos duas dezenas de anos que eu tenho defendido a mudança do sistema de governo para um regime presidencial. Vou dar um exemplo. Hoje a diplomacia é feita pelos presidentes da república. Eles tratam-se por tu. Já não estamos no tempo em que os embaixadores tinham que ir com uma carta de um país para outro para irem levar uma mensagem. Hoje, utiliza-se a Internet, videoconferências e rapidamente os presidentes se reúnem de uma forma quase informal e decidem imediatamente sobre questões complexas do mundo que é necessariamente complexo. Hoje, nós podemos questionar qual é o papel dos ministérios dos negócios estrangeiros. Estas coisas todas estão numa dinâmica muito grande. Há países que estão muito mais avançados que outros nesta matéria, há também regiões que estão mais avançadas que outras nesta matéria. Por exemplo, nos Estados Unidos da América a questão é facilitada pela própria realidade americana. Na Europa é um pouco mais difícil porque a União Europeia não é, obviamente, os Estados Unidos da Europa. Mas aqui em Cabo Verde precisamos debater este tema para podermos adequar o nosso regime político, o nosso sistema, a nossa Constituição àquilo que são hoje as exigências do mundo contemporâneo e das tecnologias que existem e facilitam o aprofundamento das decisões e não pensarmos numa democracia que tem o formalismo que já vem do século XVIII.
Defende que o sistema representativo já está ultrapassado?
Eu acho que a democracia representativa ainda é válida e é provavelmente incontornável, mas ela pode ser melhorada, sim. Ela pode ser melhorada em função dos novos recursos que nós temos. Estou a falar sobretudo dos recursos tecnológicos, mas também da consciência cívica. Hoje a consciência cívica, em todas as partes do mundo, sofreu uma evolução extraordinária. O nível cultural das pessoas também, determinada pelos níveis de escolaridade. Há que pensar em tudo isso. As mulheres que inicialmente não participavam, nos primórdios da democracia, de forma activa, inclusive nas eleições, hoje não é nada disso. Portanto, há que pensar de uma forma séria e profunda, no Estado de Direito. É no âmbito dessa reforma que se deve equacionar todas essas questões. Devo dizer que do meu ponto de vista, e já defendi isso por escrito, a reforma do Estado em Cabo Verde, se quisermos fazê-la, de facto, não deve ser uma questão de governos. O que temos visto é que todos os sucessivos governos de Cabo Verde preveem reformas do Estado nos seus programas e não fazem absolutamente nada. Eu defendo que a reforma do Estado deve ser algo promovido pelo presidente da república enquanto moderador do sistema social e político como homem que facilita os diálogos sociais. Se não houver esta liderança isenta, do ponto de vista partidário. dificilmente vamos fazer a reforma do Estado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.