Morte de três crianças em barraca relança debate sobre problemas habitacionais

PorNuno Andrade Ferreira,11 jan 2020 7:55

O ano começou com a notícia trágica da morte de três crianças, num incêndio numa ‘casa de tambor’, na localidade de Pedra Rolada, ilha de São Vicente. Além das vítimas mortais, o incêndio, na madrugada de dia 1, deixou quatro pessoas hospitalizadas, com ferimentos causados por queimaduras e inalação de fumos.

As circunstâncias em que que se deu o acidente relançaram o debate sobre as condições de precariedade em que ainda vivem muitos milhares de famílias em todo o país.

De acordo com o Perfil do Sector da Habitação, divul­gado em 2019, Cabo Verde tem um défice habitacional aproximado de 8,7%, valor que corresponde a 11.119 agregados familiares. Trata-se de um problema essencialmente urbano. O Sal apresenta um défice de 20,2% e a Boa Vista de 16,3%, correspondentes a 1.666 e 605 agregados familiares, respectivamente. A Praia tem um défice de 3.201 habitações, Em São Vicente esse número é de 2.762. No total, mais de 39 mil indivíduos viverão em situação de precariedade habitacional.

Perante a crueza dos números, Lídia Lima, vereadora da Câmara Municipal de São Vicente, responsável pelo pelouro da habitação, concorda que se está perante um quadro “preocupante”.

“Temos muitas famílias sem rendimentos suficientes para construírem uma habitação digna. Temos situações de precariedade habitacional, a nível de construção de casas de lata, mas também a nível das construções precárias de cimento, de pessoas que conseguem um terreno na Câmara Municipal, por exemplo, por aforamento, mas que por falta de meios financeiros vão construindo um ou dois quartos, muitas vezes não constroem casas de banho e vão vivendo na precariedade”, explica.

Num contexto de baixos rendimentos, é reduzida a capacidade de muitas famílias para fazer face aos custos com habitação.

“Uma família que tenha um rendimento de 15 mil escudos mensais, esse valor não dá para pagar uma renda, construir uma habitação com dignidade, não dá para suprir essas necessidades em termos habitacionais”, realça a vereadora da autarquia mindelense.

Alguma coisa está a ser feita. Em Dezembro, o Ministério das Infra-estruturas Habitação e Ordenamento do Território, com a parceria da cooperação chinesa, lançou a construção de 88 apartamentos sociais, em Portelinha, São Vicente. Meses antes, a mesma tutela já havia prometido o realojamento de 600 famílias, na Boa Vista. No âmbito do Programa de Requalificação, Reabilitação e Acessibilidades (PRRA), já terão sido reabilitadas cerca de 2.000 habitações.

Três exemplos que se juntam, no caso são-vicentino, às intervenções levadas a cabo pelo próprio município, tanto pela via da melhoria de construções existentes, como através da edificação de novos fogos de habitação social.

“Temos o programa que consiste em ajudar as pessoas a reabilitarem as suas casas, principalmente a nível dos tectos. Temos outro programa que é construção de habitações para famílias de baixa renda. Em termos orçamentais, a câmara também não consegue dar vazão à demanda. São milhares de famílias”, observa Lídia Lima.

A autarca pede mais. Quer o envolvimento de todos, incluindo o sector privado, particularmente a nível “do grande investimento externo”.

“Quando uma pessoa vive em situação habitacional bastante precária, tudo o resto vai ter dificuldades. Vai ter que encarar dificuldades, por exemplo, na questão da educação dos filhos, saúde, segurança, etc.”, sustenta.

Habitação e Pobreza

As estimativas do Perfil do Sector da Habitação apontam para a necessidade de construção de 26 mil novas habitações, em meio urbano, ao longo da próxima década. Anualmente, terão que ser construídas entre 1.700 e 2.000 novas casas.

O Governo defende uma resposta transversal. A Política Nacional de Habitação, conhecida no final do ano passado, aponta para a criação de um estrutura integrada que incorpore as estratégias habitacionais nos planos urbanos e políticas sectoriais, a nível nacional e municipal. Ao mesmo tempo, preconiza uma abordagem inclusiva, com melhoria das condições de habitabilidade e urbanização dos assentamentos informais.

Salvador Mascarenhas, do movimento cívico Sokols, subscreve a necessidade de uma maior aposta na redução do défice habitacional e acredita que essa deve ser uma prioridade nacional.

“Eu próprio sinto-me culpado, como cidadão, por não ter pressionado com mais força para que haja uma política de habitação digna para todos. Se não tivermos habitação digna, as pessoas nunca terão ambições de vida, nem contribuirão para o desenvolvimento do país”, destaca.

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Num estudo publicado em 2018, o Instituto Nacional de Estatística revelava que, em 2015, Cabo Verde registava, a nível nacional, uma incidência de pobreza na ordem dos 35,2%, o que significa que cerca de 179.909 pessoas (32.738 agregados familiares) eram consideradas pobres, vivendo com menos de 262 escudos por dia, no meio urbano, e 224 escudos diários, no meio rural.

A socióloga Antónia Mosso estreita os laços entre habitação indigna e pobreza e coloca o enfoque no combate às desigualdades sociais.

“É imprescindível que haja na nossa sociedade uma maior sensibilização dos actores sociais e da opinião pública, em geral, na luta contra as desigualdades e a pobreza, já que o pobre não se encontra em condições de o fazer. Cabo Verde precisa de definir políticas públicas que previnem situações de pobreza e aptas para reabilitar psicológica e socialmente a população mais carenciada”, comenta.

Do mesmo modo, para a vereadora Lídia Lima, é necessário quebrar o ciclo de pobreza.

“Temos de actuar na prevenção e é nas famílias. Somos um país pequeno, as ilhas também não têm uma população muito expressiva. É possível controlarmos isso e revertermos esse quadro de pobreza”, confia.

A habitação condigna é, em Cabo Verde, um direito fundamental, consagrado no artigo 72 da Constituição da República, que determina que cabe ao Estado a promoção de condições para que todos os cidadãos tenham acesso a habitação adequada. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 945 de 08 de Janeiro de 2020. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,11 jan 2020 7:55

Editado porFretson Rocha  em  1 out 2020 23:21

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