Novo Código Penal quer acabar com sentimento de impunidade

PorSara Almeida,8 ago 2020 9:07

Mais duro, mais alinhado com a realidade e fenómenos da actualidade, tanto a nível nacional como internacional, e mais afinado no sentido em que foram colmatadas falhas identificadas na moldura legislativa anterior. Este é o novo Código Penal proposto pelo governo e que foi aprovado na generalidade pelos deputados da nação, no passado dia 30. Em conversa com o Expresso das Ilhas, a ministra da Justiça, Janine Lélis, traças as principais mudanças previstas no direito penal cabo-verdiano.

Por três vezes o Código Penal cabo-verdiano já foi revisto. A última revisão aconteceu em 2015 e agora, cinco anos volvidos, há uma quarta alteração, que já foi aprovada na generalidade e deverá voltar a subir à plenária, para discussão na especialidade em Outubro. Cinco anos, em tempo de vida das Leis, não é muito. Na verdade, conta a ministra da Justiça, esta revisão não estava prevista no início da legistura, nem constava do programa do governo.

Contudo, ao longo dos últimos anos, impôs-se como uma necessidade, destacadamente devido ao sentimento de impunidade que se sente perante, principalmente, a pequena e média criminalidade, a mais comum no país.

“Esse sentimento de impunidade que se consegue perceber na reacção das pessoas, em relação a determinadas decisões ou aplicação da lei” foi o motor para “pequenos ajustes para poder garantir uma melhor eficácia em termos de política criminal”, explica a ministra da Justiça.

Foram então propostas nesta revisão “alterações, que não sendo muito extensas, são profundas seja em sede de direito penal, seja em sede processual penal”.

Em termos de Código Penal, a reforma incide em especial no agravamento de alguns crimes, nomeadamente crimes mais comuns, como, aliás, já tinha sido anunciado pelo primeiro-ministro em Novembro passado, aquando da apresentação das 14 medidas concretas para combater a onda de criminalidade urbana então vivida na capital.

Mas não só. A revisão traz também, entre outros aspectos, uma maior atenção a certo tipo de vítimas, como os menores, e também a introdução de novos tipos penais, mais consentâneos com a sociedade actual.

Mão dura

A criminalidade em Cabo Verde é essencialmente a chamada pequena e média criminalidade. Assim, roubos e furtos são crimes frequentes para os quais se prevê um agravamento de penas, com vista a uma moldura penal também de efeito preventivo e representativa do repúdio do Estado face aos mesmos. No caso dos furtos, a pena passa de 6 meses a três anos (ou multa de 80 a 200 dias) para 6 meses a 4 anos (multa de 100 a 240 dias). Tratando-se de um furto qualificado, a pena passa de 1 a 5 anos para 2 a 6 anos. E no caso deste último, há também alterações relevantes em matéria de qualificação, com a introdução de algumas novas circunstâncias agravantes como o uso de capuz.

“No fundo, em função da violência que se usa para a prática do crime há o agravamento. Não é a mesma coisa fazer um furto com ou sem violência, por isso é que existe essa qualificação”, aponta Janine Lélis.

Já no que toca ao crime de roubo, há um agravamento da pena mínima, até agora de 2 anos, e que passa a 4. A máxima mantém-se nos 8 anos. Introduz-se, ainda, aqui também o conceito de violência sobre pessoas e coisas como agravantes.

Outros crimes que também sofrem um agravamento na moldura penal são diversos.

“A base tem de ser a pena máxima, o que é, para que tipo de crimes, e como escalonar os demais crimes em função do que representa em termos de valoração da conduta criminal. Como se deve escalonar em termos de gravidade, e em termos da ameaça que representam também para a sociedade, para a paz social e para as questões de segurança. É um puzzle complicado”, expõe.

Por exemplo, o crime de homicídio simples (que passa de 10 a 16 anos para 12 a 20 anos) ou o sequestro que passa de 6 meses a 3 anos, para 2 a 6 anos.

Este “é um crime de natureza muito grave para ter como limite máximo de prisão 3 anos”, aponta a ministra.

Prisão e multas

Mas não há só mão dura. Procura-se efectividade do cumprimento das penas. Hoje, basicamente, os tribunais aplicam sempre uma pena substitutiva de multa às penas de prisão até um ano. O que acontece é que muitos condenados não pagam a multa. Para alguns condenados a lei em vigor prevê mesmo a possibilidade de isenção da multa. Na prática é como se não existisse pena, logo, há impunidade. “Não há nenhuma espécie de reparação para a vítima e não há nenhuma punição efectiva para o agente do crime”, sublinha a governante.

Agora, além do afastamento da obrigatoriedade da substituição de pena de prisão (não superior a um ano) por multa, esta depende do consentimento do condenado, estabelecendo-se o compromisso de cumprir a condenação ou efectivamente pagar essa multa. O pagamento da mesma pode ser negociado, mas se não for cumprido será dada ordem de prisão.

Suspensão de penas

O novo código traz também novos critérios condicionantes para a suspensão de execução da pena de prisão, prevendo-se por um lado a suspensão para condenados vulneráveis, mas a não suspensão quando em causa estiverem crimes de prevenção geral ou especial.

A nível da suspensão da execução da pena de prisão condicionada a deveres, são reforçados os deveres que devem ser cumpridos pelo condenado, nomeadamente de não contactar a vítima (se morar com ela, não pode permanecer nessa casa), não exercer determinadas profissões, entre outros.

O juiz pode determinar que a pena por si estipulada, entretanto, fica suspensa se a pessoa condenada cumprir o conjunto de deveres determinados. “No fundo, é uma espécie de uma opção alternativa para que a pessoa se redima, para que a pessoa no fundo se recupere perante a sociedade”, explica a ministra.

image

Uma forma de encontrar equilíbrio num quadro que é mais duro, mas também mais flexível em diversas questões, perante diferentes crimes, arguidos e condicionantes.

Liberdade Condicional

O novo código é também mais rígido no tangente à concessão de Liberdade Condicional, verificando-se uma “densificação dos critérios” para a mesma, que mudam completamente o panorama desta ‘benesse’. Desde logo, apenas pode ser concedida após cumprimento de 2/3 da pena, nunca de metade (o que actualmente também é permitido). “Está-se a uniformizar”. E deixa de ter um carácter obrigatório e passa a ser facultativa, mediante avaliação concreta de cada caso.

“De certa forma, [a liberdade condicional] agora é [concedida] de forma automática para alguma criminalidade. O que se vem dizer é que se vai fazer uma avaliação pontual, caso a caso, o que no fundo vai permitir que o tribunal de execução de penas em especial faça uma avaliação, sendo certo que tendo um quadro de execução de penas já aprovado, com os mecanismos já definidos, essa avaliação sempre poderá ser feita da melhor forma”, explica Janine Lélis.

Ademais, prevê-se que a liberdade condicional não seja concedida a reincidentes, nem se não houver reparação de danos para a vítima.

Nova reincidência

Uma das alterações mais significativas do novo Código Penal é a questão da reinicidência que sofre uma mudança no próprio conceito.

De acordo com a proposta do governo, passa a ser reincidente quem tenha sido condenado por um crime independentemente de ter ou não cumprido prisão efectiva de um ano. É que até agora, só quem cumpriu prisão efectiva é considerado como tal. Se, por exemplo, o agente do crime tiver recebido uma pena de prisão subsitutiva (como uma multa), mesmo que cometa posteriormente o mesmo crime não é considerado reincidente.

“Isto é uma falha”, aponta a ministra. Mas uma falha que esta alteração vem corrigir, garante.

Ao mesmo tempo, “pretende-se afastar os reincidentes de beneficiar da possibilidade de substituição da pena de prisão por multa, dando um sinal de que a reincidência não compensa”.

Homicídio e feminicídio

Há várias novos tipos penais introduzidos nesta revisão. O feminicídio, já em vigor em outros países, não é um deles. Contudo, mesmo não existindo enquanto tipo penal, “existe o agravamento” tendo por base as relações intimas. Ou seja, se o homicídio é praticado contra um cônjuge ou um ex-cônjuge, unido de facto, ex-unido de facto, está contemplada uma agravação (assim como para em estado de gravidez ou puerpério).

Porque não foi incluído então o tipo penal do feminicídio? ”Terá a ver com a prática cultural dos países. O importante é que o sistema resolva e dê resposta [ao crime] independentemente daquilo que é a denominação ou a conceptualização que se tem à volta do facto criminosos, e isto é que é importante referir”, defende a ministra.

A maneira como está descrito o agravamento também permite abranger crimes em que a vítima é ele e não ela, acrescente-se.

Uma nova tipologia que é sim introduzida, e que embora não tenha tanto a ver com género acabam por ser as mulheres as maiores vítimas, é a da perseguição. Perseguição é aqui concebida como “uma espécie de pressão indevida exercida sobre uma pessoa que lhe vem provocar medo ou receio”.

Essencialmente devido aos fenómenos migratórios a que Cabo Verde tem assistido, outro tipo penal que passa a fazer parte do Código é a mutilação sexual.

Esta revisão tem assim, uma perspectiva de género, agravando os crimes que de alguma forma possam ser determinados por esse factor.

Menores

Na mesma linha, há também uma atenção especial aos menores, nomeadamente no que toca aos crimes sexuais que são agravados. A moldura proposta aumenta, em geral, em todas as idades consideradas, cerca de dois anos às penas.

Contudo, é de ressalvar que o marco em Cabo Verde para ser considerado menor não é 18 anos (como no Estatuto da Criança e Adolescente e em várias convenções internacionais), mas sim 16 - maioridade criminal (ou seja, quando alguém passa a poder reponder criminalmente perante a justiça).

“Não faz muito sentido que a gente venha a considerar que a protecção legal em relação a crianças seja para além dessa idade”.

Entretanto, há uma outra idade que é considerada no que toca à determinação dos crimes sexuais e que é a idade do consentimento. No Código Penal revisto, esta mantem-se nos 14 anos.

“É a idade pela qual se admite que a pessoa tenha discernimento, ou auto-determinação, para poder decidir sobre as suas relações afectivas”, explica a ministra.

“O direito penal vem dar uma protecção dentro daquilo que é o quadro natural do desenvolvimento da pessoa humana, então há uma diferenciação entre o conceito da criança que está nas convenções internacionais e no estatuto da criança. O conceito da criança é uma coisa, a idade do consentimento é outra. Há um momento da puberdade, que é a preparação do indivíduo para determinadas relações”, expõe a ministra da Justiça quando questionada sobre a opção de manter essa idade no quadro legal.

Relações afectivas, entenda-se, não de abuso ou agressão. No caso de abuso sexual de menores entre 14 e 16 anos, entretanto, há também acréscimo de dois anos na moldura penal.

“Acho que é muito importante e relevante, alterarmos a natureza dos crimes, porque parcialmente são públicos, parcialmente não são. Eu sou apologista, mas é algo que tem de ser tratado em sede da Comissão Especializada porque é algo que gostaria de fazer mediante consenso, exactamente porque essas questões são sempre muito sensíveis”, avança.

Entretanto são também introduzidas alterações com vista a densificar o tipo de exploração de menor ou incapaz para fins como espectáculos pornográficos e alinhar a moldura penal abstrata com a da pornografia infantil prevista pela cooperação internacional.

Quadrilha

Além da perseguição e mutilação sexual feminina, de que já falámos, outros tipo penais introduzidos são o tráfico de órgãos humanos, os maus tratos a ascendentes da economia doméstica e o maus tratos a animais.

É ainda tipificada como crime a organização em quadrilha ou bando.

Até esta revisão existia apenas a tipologia da associação criminosa – que aliás, é crime que também sofre um agravamento de penas nesta revisão. Esta por definição exige que se consiga identificar chefias e níveis de hieraquia dentro dessa associação.

“É algo muito complicado de se identificar e vários acórdãos têm mostrado isso”, aponta Janine Lélis.

Criando o novo tipo penal quadrilha ou bando prevê-se que não sendo possível especificar o nível de liderança ou nível de coordenação se consiga estabelecer o crime.

“É um crime de mera conduta, independentemente do resultado”, sendo apenas necessária a pertença ao bando ou quadrilha, mesmo sem que seja praticado o acto criminoso pela pessoa em causa, para que seja já tipificado o crime.

“Isso tem um efeito preventivo forte, ou seja, a prática do crime não tem de acontecer. Basta que exista esse “ajuntamento” para essa prática”, clarifica.

O fim do TIR tal como é

Complementarmente, a par e passo com o Código Penal, anda o Código de Processo Penal (CPP), cuja discussão de proposta no Parlamento foi adiada para Outubro. Entre as grandes novidades da proposta do CPP está a extinção do Termo de Identidade e Referência (TIR) como medida de coacção.

Como o próprio nome indica, o TIR é, em tribunal, registar “quem é a pessoa, e onde é que a pessoa mora”.

“Isto tem-se revelado uma prática de uma eficácia muito ténue”, avalia a ministra da Justiça.

Assim, o TIR vai ser retirado da lista de medidas de coacção passíveis de serem aplicadas e remetido para o Estatuto do Arguido.

Qualquer arguido terá de ser identificado e dizer a sua morada, informação registada por escrito e, portanto, esta não será uma medida cautelar, mas sim uma “obrigação que decorre naturalmente daquilo que é o estatuto do arguido”.

Ainda sobre as medidas de coacção: a legislação em vigor prevê sete opções. A primeira é o TIR, a última a prisão preventiva. Pelo meio há a caução, apresentação periódica à autoridade; suspensão de exercício de função, profissão ou direitos; interdição saída do país e proibição e obrigação de permanência. Sai o TIR ficam as outras. E “em relação à prisão preventiva faz-se uma espécie de enumeração exemplificativa para os casos em que o tribunal deve considerar que as outras medidas seriam insuficientes. Basicamente é ditado em função da periculosidade das pessoas, do crime em si, do perfil”. Esta é, reforce-se a última opção das medidas cautelares que não são uma antecipação de sentença, mas uma forma de evitar fugas à justiça.

Outra alteração importante, relacionada com a reincidência, tem a ver com uma queixa, frequentemente ouvida, de que as forças policiais fazem o seu trabalho, levam os criminosos ao tribunal e, aí chegados, o tribunal solta-os.

“A percepção do tribunal faz-se mediante os factos que tem. O que não existe no processo não existe no mundo”, diz a ministra da Justiça. Assim, por muito mau que seja o “historial” de crimes do detido, se não há provas ou informação suficiente, o tribunal não pode considerar esse histórico.

A alteração ao CPP estipula agora que as polícias juntem, nas denúncias ao Ministério Público, os registos e informações que têm referentes ao detido.

“Significa que irá com o processo, a informação que irá permitir ao juiz fazer a avaliação da periculosidade da pessoa, e poder de facto determinar uma medida de coação mais ajustada”, mesmo sob a presunção de inocência que nunca pode ser ignorada, explica.

O novo CPP também traz alterações em relação às vítimas, propondo um reforço da sua protecção no processo, garantia do direito à informação, assistência, participação mais activa, e maior protecção da identidade em caso de vítimas menores.

Traz ainda novidades em termos de “presença” em julgamento. Por exemplo, abre-se agora a admissão de videoconferências, evitando a deslocação dos reclusos e os enormes custos que representam para o Ministério da Justiça.

“Ao introduzir essas alternativas está-se a criar mecanismos de eficácia, de poupança também. Mecanismos que têm acima de tudo em conta a previsão de que o país é arquipelágico”, sublinha.

Também por isso se introduz a possibilidade de alguém ser ouvido em comarca diferente daquela em que praticou o crime (ainda que depois o tenha de ser pelo juiz natural), evitando, por exemplo, incumprimento de prazos legais, devido a dificuldades nas viagens ou transportes.

Depois, a Contumácia que vai ser introduzida vem permitir fazer o julgamento de pessoas ausentes.

“Há uma grande mobilidade no país, se alguém é procurado numa ilha, sai para outra ilha”. Assim, esgotando-se as hipóteses de notificação previstas na lei, o prevaricador é declarado contumaz, é emitido o mandato de captura e, caso não seja apanhado, é julgado considerando-se que está devidamente representado pelo seu advogado.

“Porque já se esgotou todas as vias normais de o contactar e notificar, mas pelo menos a justiça vai-se realizar. É algo novo, importante que vai permitir a resolução de muitas pendências e de muitos processos”, antevê.

“Em resumo, não temos poupado esforço para termos os melhores instrumentos para responder à Justiça. Essa é a parte que [no governo] podemos fazer. Há uma boa parte que tem de ser feita e garantida pelos magistrados, pelo bom funcionamento dos tribunais porque eles é que são os aplicadores da lei e eles, na verdade, é que realizam a justiça em nome do povo”, finaliza.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 975 de 5 de Agosto de 2020. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Sara Almeida,8 ago 2020 9:07

Editado porAntónio Monteiro  em  23 mai 2021 23:21

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.