Justiça : O funcionamento dos tribunais em tempo de pandemia

PorJorge Montezinho,27 set 2020 8:43

Ano atípico, mas com a maioria dos objectivos cumpridos, é assim que o presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial, Bernardino Delgado, resume o ano judicial 2019/2020. O ano atípico deveu-se à influência da covid, já que o principal objectivo era decidir um número de casos superior ao número de processos entrados.

72 por cento dos juízes cumpriram os objectivos traçados pelo CSMJ para o ano judicial que está quase a terminar, disse Bernardino Delgado, depois de entregar, na Assembleia Nacional, o relatório sobre a situação da justiça em 2019/2020.

Na análise ao documento, e observando os números, foram decididos 11.339 processos, que ultrapassa o número de processos entrados, 11.156, resultado alcançado mesmo com o período de confinamento dos Tribunais, e de consequente congelamento dos prazos, que impediu os tribunais de realizar muitas diligências.

No entanto, no relatório, o CSMJ admite que é necessário “acentuar mais e consolidar a inversão da curva da pendência em todas as instâncias, o que parece ser perfeitamente alcançável”. Para concretizar esta descida, foram já adoptadas uma série de medidas, como a nomeação definitiva de 10 juízes, com efeitos a partir de 1 de Outubro; um aumento de juízes no Tribunal da relação de Sotavento; a nomeação de mais um inspector, “uma necessidade premente”, além da implementação do Plano Estratégico no Conselho, já em curso, e a implementação da estratégia para debelar as pendências, igualmente em curso.

Olhando mais em pormenor, os processos em tramitação nos Tribunais e Juízos de primeira instância, durante o ano judicial 2019/20 (1 de Outubro de 2019 a 31 de Setembro de 2020), ascendem a 23.131 processos (dos quais 11.873 são cíveis), menos 943 que no ano judicial transato. Em 2019/2020, deram entrada, em todos os tribunais de comarca do país, 11.156 processos, uma redução considerável em relação ao ano anterior (12.356), sendo 4.229 (38%) de natureza cível e 6.927 (62%) de natureza criminal, o que representa uma redução da demanda na ordem dos 9,7%.

Verifica-se também que entre os anos de 2013 a 2020, não houve alterações significativas no volume de processos entrados, com uma média relativamente constante de 11.564 processos por ano. O ponto mais alto continua a ser o ano judicial 2018/2019, com 12.356 processos.

Neste ano judicial (2019/2020), os Tribunais e Juízos de Cabo Verde dispunham de 23.131 processos em tramitação (menos 1.200 em relação ao ano judicial anterior), na sua maioria processos cíveis (11.873). A maioria dos processos (11.975) são os designados transitados por serem provenientes de anos anteriores em que não foi possível resolvê-los. Os restantes (11.156) são os denominados entrados pois deram entrada nos Tribunais neste ano judicial. É nos Tribunais da Praia e de São Vicente que se encontram a maior parte dos processos, ou seja, 12.389. Os outros 10.742 processos distribuem-se pelos restantes Tribunais do país. Pouco mais de metade dos processos, 11.339, foram resolvidos ficando os restantes pendentes.

Em relação ao número dos processos em tramitação e resolvidos nos últimos 5 anos judiciais (2015/16 a 2019/20), observa-se que o número de processos em tramitação nos Tribunais tem sofrido ligeiras variações ao longo dos anos, com destaque para o ano 2018/19 em que se registou o maior número de processos em tramitação e, também, a maior taxa de resolução (50,8%). No actual ano judicial, foi registado o menor número de processos em tramitação, no entanto, foi no ano de 2016/17 que se registou a menor taxa de resolução (48,9%).

Ao nível dos Tribunais/Juízos, os dados mostram que o Juízo de Família e Menores registou o maior número de processos em tramitação comparativamente aos restantes Tribunais, com 1.576 processos. De seguida vem o Tribunal do Tarrafal, o 4º Juízo Crime da Praia, o 1º Juízo Crime da Praia, o 2º Juízo Cível de São Vicente e o Juízo Cível de São Filipe com mais de mil (1.000) processos em tramitação. Em sentido contrário estão os Tribunais do Paul e do Maio, com os menores registos de processos em tramitação, 113 e 185, respetivamente. Os restantes Tribunais/Juízos variam entre os 235 e os 985 processos.

O Juízo Crime de São Filipe é o que tem a maior taxa de processos resolvidos (84,8%). Já o Tribunal de Tarrafal, tal como no ano anterior, foi o que teve a menor taxa de resolução, 24,2%.

A relação entre o número de processos resolvidos e entrados, em 2019/2020, foi de 11.339 – menos 1.017 processos que no ano anterior (12.356), a principal causa, diz o relatório do CSMJ, foi a situação de pandemia, que condicionou negativamente a prestação dos Tribunais. Ainda assim, na primeira instância, o número de processos julgados (11.339) superou o número de processos entrados (11.156), representando uma ligeira redução da pendência, “num ano judicial atípico, marcado por uma situação pandémica de todo desconhecida e que resultou numa situação de confinamento dos Tribunais e congelamento dos prazos processuais por um período de 3 meses”.

Ainda segundo o documento, alguns Tribunais e/ou Juízos conseguiram uma redução da pendência na dimensão prevista, mas outros ficaram aquém desse objetivo, nalguns casos por conta da forte pressão da demanda processual. No entanto, a tendência geral é a diminuição da pendência, “embora não na dimensão que pretendemos”, sublinha o Conselho Superior da Magistratura Judicial.

Como é referido também no relatório sobre o estado da justiça, nos últimos anos, o número de processos decididos tem vindo a acompanhar o número de processos entrados, “o que, se por um lado não tem logrado uma redução da pendência na dimensão pretendida, por outro, tem funcionado como impediente para que a pendência não aumente”.

Processos cíveis

Os processos cíveis, os que não envolvem crimes, encontram-se em maior número nos Tribunais, representando 51,3% do total. Em 2020, os Tribunais e Juízos de Cabo Verde dispunham de 11.873 processos cíveis em tramitação, uma diminuição de 943 processos em relação ao ano anterior. Estes processos são maioritariamente transitados, ou seja, 7.644 processos cíveis são provenientes de anos judiciais anteriores.

Estes processos cíveis transitados vêm diminuindo nos últimos anos, apesar de 2019/20 apresentar uma ligeira subida. Ao nível dos Tribunais/Juízos verifica-se que a situação é idêntica, a maioria dos processos cíveis em tramitação são transitados, facto que se verifica em todos os Tribunais/Juízos, com excepção dos Tribunais da Brava e Ribeira Grande. Em 2020, 38,5% dos processos cíveis foram resolvidos, mas mais de metade (61,5%) ficará pendente e será transitado para o próximo ano judicial.

Os Tribunais da Brava, do Mosteiros, da Ribeira Grande, de Santa Cruz e do Maio apresentam as maiores taxas de resolução dos seus processos cíveis, com mais de metade deles resolvidos. Os restantes Tribunais/Juízo apresentam uma taxa de resolução menor do que 50%, com destaque para os Tribunais de Boa Vista e São Domingos, que registaram as taxas mais baixas, na ordem de 14,2% e 19,1%, respetivamente.

Ao longo dos últimos 5 anos judiciais, o número dos processos cíveis em tramitação nos Tribunais/Juízos apresenta uma tendência de diminuição, passando de 13.703 processos, em 2015/16, para 11.873 processos em 2019/20. Entretanto, o número dos resolvidos não segue a mesma tendência, sofrendo ligeiras oscilações.

Verifica-se, ainda, que a percentagem dos processos resolvidos face aos disponíveis tem sido inferior a metade, mais especificamente, não tem ultrapassado os 41,8%.

Processos crimes

Os processos crimes representam 48,7% do total dos processos em tramitação nos Tribunais/Juízos de Cabo Verde durante o ano judicial de 2019/20, o que se traduz em 11.258 processos, menos 257 em relação ao ano anterior. Contrariamente ao verificado com os processos cíveis, os processos crimes são, na sua maioria, entrados no ano judicial 2019/2020. Apenas 4.331 processos são provenientes de anos judiciais anteriores. Nos últimos 5 anos, os processos crimes, transitados e entrados, tem apresentado oscilações, com pico no ano 2018/19, por ser o ano com registo de maior número dos processos em tramitação e resolvidos.

Ao nível dos Tribunais e Juízos, também se constata que os processos disponíveis são maioritariamente referentes aos entrados. Isto verifica-se em todos os Tribunais, com exceção do Tribunal de Santa Cruz e do 1º Juízo Crime da Praia.

Globalmente, e contrariamente ao verificado com os cíveis, os processos crimes foram, na sua maioria resolvidos (60,1%).

Em relação aos processos resolvidos por cada Tribunal/Juízo, ou seja, aos processos em que se concluiu a sua tramitação, quase todos os Tribunais/Juízos conseguiram concluir mais de metade dos seus processos, com excepção do Tribunal do Tarrafal, do 1º Juízo Crime da Praia, do Tribunal de Santa Cruz e 2º Juízo Crime da Praia. Os Tribunais de Mosteiros, Maio e Paul resolveram mais de 90,0% dos seus processos crimes. Os processos que não foram resolvidos ficarão pendentes e serão transitados para o próximo ano judicial.

Nos últimos 5 anos, o número de processos crimes em tramitação nos Tribunais tem aumentado a cada ano, excepto em 2019/20 em que se registou uma diminuição de 257 processos, em relação ao ano anterior. O mesmo se verifica com os resolvidos em que apenas 2019/2020 regista uma diminuição de 422 processos.

Verifica-se que a percentagem dos processos resolvidos, mediante os disponíveis em todos os anos, ronda os 60,0%, tendo o pico sido alcançado no ano de 2018/19, com a resolução de 62,4% dos processos crimes.

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O Impacto da COVID no funcionamento dos Tribunais

É caso para dizer que a Justiça teve de descer a máscara que usa sobre os olhos. Na sequência do surgimento dos primeiros casos confirmados da COVID-19 em Cabo Verde, e depois de decretado o estado de emergência, pelo Decreto Presidencial n.º 6/2020 de 28 de março, rapidamente se chegou à conclusão que era praticamente impossível manter os tribunais em pleno funcionamento, o mesmo sucedendo com quase todos os serviços públicos. Na verdade, o Decreto-Lei n.º 36/2020, de 28 de março, veio estabelecer no seu artigo 10º que “São encerradas as empresas públicas, serviços públicos da administração central e local, bem como as empresas privadas e demais atividades do comércio da indústria e serviços, com exceção de: al. p) serviços urgentes dos tribunais judiciais e do ministério público, nos termos da lei. No seguimento desta declaração do estado de exceção, e da declaração do estado de calamidade pública, através da Lei nº 83/IX/2020 de 4 de abril, foi aprovado um conjunto de medidas relativas aos prazos e procedimentos judiciais e administrativos, bem como de funcionamento dos Tribunais, tendo sido adotado um regime excepcional de suspensão dos prazos, nomeadamente processuais e procedimentais e de realização de diligências, com a aplicação aos processos considerados não urgentes do regime das férias judiciais [a aplicação do regime das férias judiciais permitiria não só suspender os actos processuais presenciais (artigo 136.º, n.º 1, CPC), mas também o decurso dos prazos processuais, salvo nos processos urgentes (artigo 137.º, n.º 3, CPC), possibilitando ainda, em relação aos prazos substantivos, que as ações pudessem ser instaurados no dia seguinte ao termo da situação de emergência (artigo 257.º, al. e), CPC)]. Nesta óptica, feitas as devidas articulações, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, fez um conjunto de recomendações, entre elas, que a intervenção dos Tribunais deveria cingir-se aos processos urgentes, ou seja, à prática de actos processuais e diligências nos quais estejam em causa direitos fundamentais [diligências processuais relativas a menores em risco ou tutelares educativos de natureza urgente; Diligências/julgamentos de arguidos presos; primeiro interrogatório de arguidos detidos]; e que os Tribunais não poderiam ser encerrados, ficando, pelo menos, dois funcionários de piquete para assegurar o serviço urgente, que cair na respectiva esfera de competência.

De acordo com as recomendações do próprio Conselho Superior da Magistratura Judicial, durante o período em que vigorou o Estado de Emergência, os tribunais funcionaram em regime de serviço mínimo, o que se refletiu na capacidade global de resposta, porque foram adiadas muitas diligências, muitos julgamentos e muitos processos ficaram por decidir.

A escassez do número de processos realizados neste período tem a ver, segundo o relatório do CSMJ, não só com o facto de os tribunais terem estado a trabalhar apenas os processos urgentes, como também porque os servidores públicos demonstraram muito receio de contágio, razão pela qual evitaram ao máximo a deslocação aos tribunais. Com o levantamento do Estado de Emergência, o processamento das causas manteve-se paralisado, destacando-se os julgamentos suspensos, os processos instaurados com prazos de contestação suspensos, despachos interlocutórios e decisões prolatadas com o prazo de recurso suspensos, processos com prazos de prescrição e de caducidade suspensos, processos executivos com vendas judiciais suspensas, concursos de credores suspensos, diligências de penhora suspensas, tudo agravado com o facto de se antever um aumento da procura nas áreas mais sensíveis, como a jurisdição laboral, a jurisdição de família e menores, o mesmo sucedendo com relação à jurisdição civil comum.

O CSMJ enviou ao Ministério da Justiça e do Trabalho uma proposta para revogar o artigo 6º da Lei nº 83/IX/2020 de 4 de Abril e proceder ao desconfinamento dos tribunais e descongelamento dos prazos. A proposta, inicialmente, foi chumbada no Parlamento, mas logo de seguida foi aprovada através da Lei n.º 92/IX/2020, de 23 de Junho. Mesmo assim, fez prolongar ainda mais o período de congelamento dos prazos e fez agravar ainda mais as consequências decorrentes do confinamento dos tribunais. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 982 de 23 de Setembro de 2020.

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Autoria:Jorge Montezinho,27 set 2020 8:43

Editado porDulcina Mendes  em  6 jul 2021 23:21

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