Foi um caso que mexeu com a política cabo-verdiana e que “terminou” com um despacho de encerramento extenso e pormenorizado, no entanto, alvo de interpretações várias. Tanto, “que parecia estarmos perante documentos diferentes”, considera o PGR. Casos complexos não podem ter leituras simples, e aos prazos de prescrição face ao tempo necessário tratar os processos, muitas vezes não são realistas, considera.
Fundo do Ambiente
“Em relação à Justiça todos têm opinião. É normal que isso aconteça e demonstra a importância da Justiça na sociedade”, considera o Procurador Geral da República, Luís José Landim.
Mas nem todos os casos despertam a atenção e comentários da sociedade. Os que o fazem são geralmente aqueles relativos a crimes e polémicas.
Um desses casos mediáticos, polarizados e polémicos é o da gestão do Fundo do Ambiente, despoletado por uma queixa do presidente da Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde, Manuel de Pina. Estávamos em 2015 quando o Ministério Público iniciou a sua investigação e a 17 de Setembro deste ano, cerca de quatro anos depois, foi conhecido o despacho de encerramento do “Fundão”.
O conteúdo do despacho não agradou a todos e foi alvo de várias críticas. E embora o Procuradoria encare essas críticas como “naturais”, Landim critica também uma certa leviandade. Ou melhor, citando: “Às vezes essas críticas vieram de sectores, de pessoas, que talvez não tenham lido bem o despacho de encerramento do MP”.
Na verdade, comentários e (até notícias) sobre o mesmo documento, truncaram determinados pontos, importantes para a visão global do processo, e o despacho foi até interpretado de forma diferente.
“As pessoas apressaram-se, entende-se que algumas pessoas queiram tirar alguns dividendos, então que tenham algum interesse em apresentar apenas uma parte, mas houve reacções muito rápidas”, diz, considerando que muitas pessoas não chegaram a ler o documento ou pelo menos não terá lido com o cuidado devido, “para poderem perceber o que está aí”.
“Parecia às vezes que não se tratava do mesmo documento. Uns disseram ‘foi tudo arquivado’, outros, ‘afinal houve uma acusação’, mas o despacho é o mesmo. Tivemos até de intervir e esclarecer a situação”.
Ora, reitera, “há uma parte arquivada, e há uma parte acusada”. Nem tudo foi arquivado, nem tudo segue para acusação.
Opinião vs Justiça
Para o PGR esta foi, sublinha, uma das instruções mais completa que viu. Num caso altamente complexo, dois magistrados foram colocados a título exclusivo na investigação, e o despacho final explica de forma “muito mais pormenorizada que o normal”, “todos os passos dados e as dificuldades encontradas”.
O resultado é um longo documento de cerca de 70 páginas, não só pormenorizado, mas que abarca várias ramificações do caso, a análise de vários tipos de crimes e consequentes “finais”.
Como se dizia, na Justiça, quase toda a gente tem a sua opinião, mas a justiça em si não pode funcionar com base em percepções e nessas opiniões.
No despacho houve alguns arquivamentos, que não decorreram da prescrição – que indignou várias pessoas – mas da não verificação legal de determinado crime. Isto porque, explica, por vezes nas denúncias de um determinado facto, embora o denunciante pense que este corresponde a um crime, isso não se verifica.
“O magistrado tem de analisar e ver se os factos apresentados preenchem esse tipo legal de crime, e senão for, o que aparentemente pode parecer um crime, pode não sê-lo em termos jurídicos”, específica.
Isso aconteceu em alguns factos relatados, e é informação que está no despacho. “Foram analisados todos os tipos de crimes possíveis de ser integrados”, e viu-se que afinal alguns factos não se enquadram em nenhuma tipologia do quadro legal.
Por exemplo, no caso de peculato ou corrupção, nos fluxos nas contas bancárias, não se apurou “praticamente nada”.
“Apenas um caso concreto e, por esse facto, a pessoa foi acusada, mas eu vi que foram feitas várias leituras”, reitera.
Inclusive de que não teria havia acusação…
Prazos problemáticos
Entretanto, o que mais parece ter revoltado a opinião pública, olhando os comentários figuras públicas e anónimas, foi o facto de alguns crimes terem sido dados como provados, mas prescrito.
Sobre isso, o procurador geral tem uma visão pragmática, observando a necessidade de rever alguns prazos estabelecidos na lei para a prescrição, face à realidade do país.
Falando uma forma geral, “temos pendentes na transição de um ano judicial para o outro, cerca de 68 mil processos. Desses, naturalmente alguns prescrevem.” O reconhecimento da exiguidade de prazos face às pendências já terá sido, inclusive mote para alterações da lei.
“Não é por acaso que em 2015 houve alteração da lei para aumentar o prazo de prescrição, porque havia alguma falha legal, os prazos eram bastante curtos”.
Neste caso em concreto, complexo e com várias ramificações, não era possível ser proferido um despacho de encerramento em menos tempo do que foi.
“O crime de corrupção de uma forma geral, em sentido lato, é de difícil investigação, sempre. Sabemos que são crimes essencialmente documentais, e às vezes quem denuncia não tem muitos dados para fornecer”, explica.
Basta “ouvir dizer” para poder denunciar, mas “a Justiça não funciona desta forma”.
Assim, é preciso investigar, ter provas no processo e ainda conhecer a lei penal “de uma forma geral para se poder tirar uma conclusão”.
“Foram centenas de documentos, centenas de contas bancárias, centenas de pessoas envolvidas, que receberam e que entregaram dinheiro do Estado”, recorda.
Face a esse volume de dados foi inclusive decidido que as ramificações aferidas no caso vão agora ser averiguadas nas comarcas onde terão ocorrido factos passíveis de constituírem irregularidades /ilegalidades.
“Há indícios de que terá havido irregularidades. Agora é nas comarcas que se vai saber se essa aplicação foi feita correctamente e se o dinheiro não foi aproveitado em proveito próprio”. Ou seja, esse processo continua, nas comarcas, onde uma equipa do MP acompanha as investigações.
No Caso do Fundo do Ambiente eram arguidos Moisés Borges, então diretor geral do Fundo do Ambiente, Antero Veiga à época ministro do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território e Tatiana Neves, funcionária do ministério. Terá ficado provado que todos eles teriam responsabilidades nas irregularidades e ilegalidades detectadas na gestão do Fundo em 2012, 2013 e 2014. Entretanto, nem todos os factos foram dados como provados e outros foram provados mas procedeu-se ao arquivamento por prescrição. Houve no entanto uma outra parte que seguiu os trâmites para a acusação, “requerendo o julgamento para efeito de efectivação de responsabilidade criminal de dois dos arguidos”, Moisés Borges e Tatiana Neves.
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Alex Saab
Este é mais um caso polémico: a detenção em Junho, de Alex Saab, empresário colombiano próximo do regime de Nicolas Maduro, e acusado pelos Estados Unidos de lavagem de capitais. A defesa alega que Saab viajaria com passaporte diplomático, mas o PGR garante que nada, no processo, “aponta até agora que ele era um agente diplomático”.
“A magistratura, devido ao seu direito de reserva, em termos lato, não pode vir a praça publica responder a todas as crises que se fazem porque, precisamente, temos de dar o exemplo de respeitar a lei e o andamento dos processos nos tribunais”, começa por dizer o PGR quando questionado em relação a este caso, relembrando porém os vários comunicados já emitidos pelo MP sobre o caso Alex Saab, sempre que necessário, e quando a lei permite que se o faça.
A lei cabo-verdiana, bem como as convenções internacionais de que Cabo Verde é parte, é também o que está a ser aplicado neste caso, desde o início, garante.
Foi feita a detenção no cumprimento de um mandado internacional, emitido pela Interpol e logo feito um pedido de extradição por parte dos EUA.
“Trata-se de um pedido natural no âmbito da cooperação judiciária internacional, aliás, o pedido veio depois da detenção. Já se falou muito, mas isso claramente é uma estratégia da defesa, que é legitima, em tentar passar informações que não correspondem” à verdade, aponta.
Assim, o caso tem seguido os trâmites normais, sem interferência.
Estratégias e factos
Alex Saab é acusado pelo EUA de ter branqueado 350 milhões de dólares para pagar actos de corrupção do Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, através do sistema financeiro norte-americano.
Um dos grandes argumentos da defesa é o alegado facto de que Alex Saab seria um agente diplomático ao serviço da Venezuela, e portanto, não poderia ser detido.
Contudo, “não há nada no processo que diga que ele é agente diplomático, e por isso é que os tribunais, nas várias instâncias, têm decidido nesse sentido” de manter a detenção e processo via a extradição.
“Nós temos de agir de acordo com os documentos e regras internacionais que existem a esse respeito, e nada até agora aponta que ele era um agente diplomático”, reitera o PGR.
Sobre a extraditação, explica Luís Landim, que todos os parâmetros se cumprem. “O que se exige é que de facto haja dupla incriminação, ou seja que esse crime, esses factos sejam puníveis no estado requerente e no estado requerido, desde que não sejam puníveis com pena morte ou prisão perpetua, portanto é possível sempre haver extradição”, diz.
Retorno à Relação
Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu reenviar o processo para a Relação, algo que o PGR relativiza, uma vez que este é um procedimento normal.
“Cabo Verde respeita sempre as garantias de defesa e a nossa lei permite que se recorra até ao Tribunal Constitucional se necessário, para se defender. O papel do Supremo Tribunal de Justiça é precisamente ver se há alguma falha processual e, se houver, suprir ou mandar repetir”, explica.
Neste caso em concreto, conforme recorda, o Supremo terá entendido que deveria ter dada “mais oportunidade de contraditório”.
“Não anulou”, sublinha. Apenas retornou à instância anterior, para que o Tribunal da Relação “dê à defesa chance de se pronunciar sobre certos factos”.
“É função do Supremo corrigir actuações”. Assim, terá havido uma falha, “mas não sobre os factos em si”.
Factos sobre se há ou não requisito de extradição, a pessoa é ou não agente diplomático, não foram colocados em cheque.
O Supremo, na verdade, ainda não se pronunciou sobre o mérito, o fundo da questão, algo que deverá surgir numa fase posterior, se houver recurso.
Entretanto, recorda o PGR, “já houve situações em que a Relação concedeu a extradição e o supremo revogou essa decisão”.
Seja como for “Cabo Verde e as suas autoridades judiciárias já deram exemplos claros no passado recente de que não se deixam levar pela pressão”, sublinha, reiterando que não há queixas a fazer” da justiça cabo-verdiana no processo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 987 de 28 de Outubro de 2020.