Cabo Verde quer reforçar conciliação entre trabalho e vida privada

PorSara Almeida,4 jun 2023 8:22

Todos têm a sua vida privada. E praticamente todos têm também a sua vida laboral, seja no sector formal, seja no informal. Mas conciliar as duas, como todos nós sabemos, nem sempre é fácil, principalmente para as mulheres. Cabo Verde já tomou vários passos no sentido desta conciliação – que se traduz em ganhos sociais, mas também maior produtividade – e promete continuar a tomar. Para tal, serão importantes instrumentos como a Convenção 156 da Organização Internacional do Trabalho, que foi alvo de reflexão e plaidoyer na semana passada. Mas, afinal, em que consta e o que se pretende?

Em Abril de 2011, o hotel Vila do Farol, no Sal, inaugurava o seu berçário. Destinado aos filhos das funcionárias com menos de um ano, a ideia era ajudar a promover o aleitamento materno, após o fim da licença de maternidade.

Tudo começara com o repto lançado pela Direcção Regional de Trabalho, em parceria também com várias entidades públicas, no âmbito do projecto APROMA (Associação de promoção de amamentação no local de trabalho) que se pretendia implementar.

O “Farol” abraçou o projecto e arrancou com uma experiência piloto, que se prolongou durante vários anos.

Dois quartos do hotel foram modificados e decorados. Foi comprada madeira para os berços, que foram feitos na oficina da Câmara Municipal do Sal, uma das parceiras do projecto. O hotel comprou também todos os demais materiais, como colchões, banheiras e electrodomésticos, contratou uma monitora e o berçário entrou em funcionamento.

A orientação da Organização Mundial da Saúde é que o aleitamento materno seja exclusivo até aos 6 meses. Assim, e uma vez que as crianças ficavam aqui até completarem um ano, o Hospital do Sal (outro parceiro) disponibilizou uma nutricionista que acompanhava a introdução dos alimentos sólidos e fazia um plano alimentar das crianças.

“Correu lindamente. As funcionárias vinham com as crianças de manhã, a monitora que tomava conta das crianças dava-lhes banho, etc. As mães iam de 2 em 2 horas amamentar e regressavam ao trabalho”, lembra, em conversa com o EI, Anaísa Rodrigues, chefe dos Recursos Humanos do Hotel.

Entre as mães, muitas delas moradoras de Espargos, a 18 km, o contentamento era visível. Não só podiam assim garantir a amamentação, como se sentiam mais tranquilas e concentradas no trabalho por ter os filhos perto de si, num ambiente seguro. A produtividade aumentou.

Vários bebés passaram por aqui. A média, até 2018, foi de 12 bebés por ano e a certo momento, chegaram a ter oito bebés, ao mesmo tempo. Depois, com a pandemia e o congelamento do sector turístico o berçário foi descontinuado. Neste momento, conta a chefe de RH, nenhuma das funcionárias tem filhos tão pequenos, pelo que ainda não se justificou uma eventual reabertura.

Mas, reitera Anaísa Rodrigues, foi “uma experiência muito positiva”. Tanto quanto sabe, o VOI Vila do Farol foi, até ao momento, o único hotel com uma experiência do tipo.

Convenção 152

Há já alguns anos que Cabo Verde tem vindo a trabalhar num sistema de cuidados e legislação que o operacionalize, a par e passo com outras medidas com impacto no sistema laboral do país. O intuito é, entre outros, promover um maior equilíbrio entre a vida laboral e a vida privada de todos.

Agora, o país quer ratificar a Convenção 156 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa aos trabalhadores com responsabilidades familiares, que se alinha com esse intuito.

Foi nesse âmbito que se realizou no passado dia 25 de Maio, uma Sessão de Sensibilização sobre a referida Convenção, organizada pela OIT, Ministério da Família e Inclusão Social e ICIEG, e que contou com a presença de vários parceiros sociais, políticos, diplomatas, activistas, entre outros.

Mas afinal em que consiste esta Convenção, criada já nos anos 80? Acima de tudo, é um compromisso que insta os membros a promover políticas para que quem tem responsabilidades familiares não seja alvo de discriminação e se evitem, “tanto quanto possível”, os conflitos “entre as suas responsabilidades profissionais e familiares”.

Embora a Convenção se aplique aos trabalhadores de ambos os sexos, o impacto é maior junto às mulheres uma vez que, em todo o mundo, são elas as principais cuidadoras e quem mais se ocupa do chamado trabalho não renumerado (como os trabalhos domésticos).

Assim, “esta convenção 156 é particularmente importante para promover a igualdade de oportunidades e tratamento entre os homens e as mulheres em matéria de conciliação da vida privada e vida profissional”, explica Fatime Ndiaye, especialista de género da OIT - Dakar.

Em termos práticos, esta convenção exorta a, por exemplo, uma maior flexibilidade nos horários dos funcionários com responsabilidades parentais. E também ao investimento em estruturas de apoio como creches, sendo que aqui se deve promover a “sensibilização e plaidoyer não somente junto ao governo, mas também junto às organizações de empregadores e trabalhadores e junto às empresas”.

Na verdade, trata-se de uma responsabilidade tripartida entre governo, empregadores e sociedade civil, paradigma que atravessa todas as questões do Trabalho Digno.

Entretanto, a curto, médio e longo prazo os dividendos sociais de investimentos do tipo são imensos a vários níveis, garante Fatime Ndiaye. A longo prazo, por exemplo, a nível do dividendo demográfico que se está a perder. E no curto prazo, é preciso dizer “sobretudo aos empregadores, que quando uma mulher trabalha e tem as suas crianças seguras, a sua produtividade aumenta”.

Foi o caso de um hospital, no Senegal, que criou uma creche para as crianças das funcionárias. “Todo mundo está feliz. O director do hospital diz que agora há menos absentismo, as mulheres estão disponíveis, e quando surgem urgências, ao contrário do que acontecia antes porque tinham de ir tomar conta dos filhos, mostram-se agora disponíveis”.

“Então, é necessário que reflictamos assim: a convenção é um benefício para as mulheres, mas é também um benefício para as empresas e para a sociedade. Não há dúvidas e todos os estudos o mostram”, conclui.

Percurso

Como referido, Cabo Verde tem já um percurso feito. Cada vez mais trabalhadores, incluindo do sector informal, estão segurados na Previdência Social. Foi estabelecido um sistema de cuidados, no qual se continua a trabalhar. Feito um plano nacional de cuidados (2017) no sentido da implementação desse sistema. O PEDS-II alinha-se com estes princípios.

“É um processo”, e há muitos passos importantes a relembrar, aponta Maritza Rosabal, ex-ministra da Família e Inclusão Social e especialista de género, que apresentou na Sessão de Sensibilização um painel sobre “o estado da Arte” destas questões em Cabo Verde.

A ex-ministra, destaca entre esses passos apontados, o referido sistema de cuidados (que começou a ser implementado sob a sua tutela) defendendo “temos de continuar a investir nessa área”. O sistema, recorda, viu várias acções não avançarem como previsto devido à pandemia da Covid-19 e direccionamento da parte orçamental para reforço de subsídios (RSO e RSI), mas deverá agora continuar na sua implementação e alargamento.

No que toca à Convenção 156 em concreto, a especialista considera que para Cabo Verde, “ratificar a Convenção é uma oportunidade”. “Quando o fazemos, temos de apresentar relatórios. Tudo isso são oportunidades de aprendizagem, de reflexão, que são muito importantes”, além de permitirem maior transparência, sobretudo na prestação de contas.

E, “ao apresentar e avaliar o que se faz aqui no país a nível internacional recebe-se input, mas é também um relatório que, a nível nacional, orienta as acções. Portanto, são instrumentos que ajudam a continuar e a melhorar”, conclui.

Plano de Acção

Durante os dois dias que antecederam a Sessão de Sensibilização (23 e 24 de Maio) foi realizado um Atelier Tripartido, com cerca de 40 intervenientes do sector público e privado, do qual resultou um “Plano de Acção de Promoção dos Investimentos Nacionais que favoreçam a partilha equilibrada de responsabilidades familiares”.

Este Plano, apresentado no evento pela Presidente do ICIEG, Marisa Carvalho, contempla três grandes objectivos, tidos como necessários para a efectiva conciliação vida privada-trabalho.

O 1.º, como explica, tem a ver com a regulamentação do quadro normativo. Embora este seja bastante bom, a sua aplicação por vezes é problemática. “Precisamos de leis que façam a devida regulamentação”, considera.

Neste objectivo está também incluída a ratificação da Convenção 156, bem como a Convenção 183 (destinada às mulheres empregadas em temas como a amamentação ou licenças de maternidade). E ainda as alterações ao Código Laboral, já em curso, e a Lei da Responsabilização Parental, já entregue à Assembleia Nacional e que aguarda agendamento.

Face ao panorama actual, “em andamento”, a presidente do ICIEG acredita que este objectivo será “facilmente concretizável”.

O 2.º objectivo diz respeito aos Recursos Humanos para a implementação do próprio Plano de Acção. Também se pretende a actualização do Plano de Saúde do Trabalho”, que data já de 2014, na qual deverá ser incluído “tudo o que tem a ver” com a igualdade de género, com a protecção laboral e com as questões do assédio moral e sexual no contexto laboral.

Por fim, o Plano de Acção contempla a criação de estruturas de cuidados, “o que está relacionado com a actualização do Plano Nacional de Cuidados”. Nesse sentido, está também a ser levado a cabo, sob o paradigma da referida responsabilização tripartida, um trabalho de sensibilização “junto dos empregadores para que eles possam também criar estruturas de cuidados para os funcionários”.

Marisa Carvalho reconhece que para as empresas, na actual conjuntura, possa ser difícil priorizar estas questões. Contudo, também ela lembra que esse investimento não tem apenas influência no bem-estar do trabalhador, como na produtividade da própria empresa.

“Estamos a tentar demonstrar o quanto [a conciliação] é importante para a produtividade, para além de todo o carácter social e de paz social e da comunidade, em que podem também dar o seu contributo”.

Ademais, tendo em conta o tecido empresarial [composto essencialmente por micro e pequenas empresas] e as dificuldades da actual conjuntura, a ideia é criar “sinergias e parcerias, principalmente com o ICIEG e com a direcção geral de inclusão social”, no sentido de juntar valências e esforços e proporcionar essas estruturas.

Ou seja, caso as empresas disponibilizem um espaço, este poderá ser equipado pelo ICIEG em parceria com a tutela, e os cuidadores serem pagos por quem precisar do serviço ou “assumidos por nós, se conseguirmos o devido financiamento – esta Sessão também é para isso”. A empresa em si não teria, pois, nenhuma despesa para além do espaço que disponibiliza.

Um exemplo apontado destas estruturas, que já está a ser implementado, são os projectos de capacitação e formação promovidos pelo ICIEG.

“Quando fizemos o protocolo com o IEFP, solicitamos que nos cedessem uma sala para que possamos contratar um cuidador”, que tomará conta dos filhos das formandas que o necessitarem. Pretende-se assim, não só garantir o acesso à formação como a sua permanência nela.

Outro exemplo

Falando de formação e terminando com outro exemplo de boa prática, voltamos ao Sal. A TUI Care Foundation, do grupo TUI, lançou no final do ano passado a Tui Academy Cabo Verde e proporciona neste momento apoio de cuidados às formandas que têm filhos.

“Contactamos as creches, fazemos a inscrição, pagamos a matrícula, e pagamos a mensalidade das creches. [Fazemo-lo] para as mães não terem de se preocupar com as suas crianças quando estão a frequentar este programa de formação para o emprego”, explica ao EI, Vera Martins, gestora do programa nacional da TUI Care Foundation.

Tem tido bom resultado? A resposta é tão óbvia que a pergunta parece nem fazer sentido. “Sim, não têm de se preocupar com as crianças enquanto estão na formação ...”

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Novas regras de licença paternal em breve alargadas ao regime privado

O ministro da Família e Inclusão Social também anunciou, durante a Sessão de Sensibilização sobre a Convenção 156, iniciativas na calha para melhorar a conciliação vida privada e cuidados e vida profissional no país.

Conforme disse Fernando Elísio Freire, a licença de maternidade, que já foi alargada de 60 para 90 para as trabalhadoras da função pública, passará também a ser aplicada, sob as mesmas condições, no sector privado. O mesmo acontece com a recentemente criada licença de paternidade, que não existia (o trabalhador-pai tinha apenas direito a dois dias de faltas justificadas) e que contempla agora um período de licença de 10 dias.

Para tal, está prevista a apresentação no parlamento, na segunda sessão de Junho, de uma iniciativa legislativa de alteração no Código Laboral. “Isso será feito imediatamente, enquanto vamos trabalhando em uma reforma mais profunda do Código Laboral ao longo de 2023”, disse.

Outra novidade é que está previsto, no âmbito do sistema nacional de cuidados, a introdução de mais uma figura de cuidadores: os cuidadores informais.

“São pessoas que dedicam o seu tempo a cuidar dos familiares que são dependentes, mas que não é contabilizado como tempo de trabalho produtivo. Isso passará a ser reconhecido, com uma ligação à segurança social e ao Sistema Nacional de Saúde, no sentido de permitir que haja mais tempo livre das famílias para poderem trabalhar e, também, mais tempo com remuneração, quando cuidam dos seus dependentes”, explicou. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.

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Autoria:Sara Almeida,4 jun 2023 8:22

Editado porDulcina Mendes  em  28 fev 2024 23:28

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