Vamos falar de terceira idade

PorNuno Andrade Ferreira*,2 jul 2023 8:30

Solidão, negligência familiar, condições precárias. Pedaços de muitas vidas, gente que mora na porta ao lado, condenada a uma velhice de exclusão e abandono. Que respostas tem o país para dar aos seus mais velhos?

É um princípio de vida em comunidade: os mais fortes protegem os mais fracos. O dever de amparar as pessoas idosas, assegurar a sua participação, defender a sua dignidade e bem-estar é fundamental, mas a negligência familiar e uma sociedade que vira as costas aos seus mais velhos são realidades que se impuseram entre nós.

O aumento de pessoas idosas a viverem sozinhas e a precisarem de cuidados é uma preocupação das organizações que trabalham estas questões. A promoção da integração da pessoa idosa é um repto para os próximos anos, acentuado pelas perspectivas demográficas.

Estamos todos a envelhecer, sujeitos a mudanças físicas e psicológicas que, a partir de determinada idade, se podem traduzir na perda de autonomia, faculdades físicas e intelectuais.

Com muitos anos de terreno em São Vicente, a Associação Cabo-verdiana para Apoio à Terceira Idade (ACATI) conhece bem o grupo para quem trabalha. A vice-presidente, Arminda Lima dos Reis, apresenta as principais carências identificadas.

“As maiores lacunas que detectámos estão principalmente na área socioeconómica, relacionadas com idosos abandonados, idosos que vivem em solidão e idosos que passam por muita carência, principalmente no cuidado das necessidades básicas alimentares, com uma alimentação extremamente frágil, muito fraca. Idosos que muitas vezes têm somente a pensão social ou então, em muitas casos, nem a própria pensão têm”, enumera.

“Também detectámos dificuldades ao nível da saúde, por exemplo, idosos a viverem em condições de higiene graves, idosos que são acumuladores de lixo, pessoas cujas casas, na época das chuvas, são uma goteira. Outra necessidade que temos notado prende-se com as condições de dormir, como a ausência de colchões como deve ser, de camas”, adiciona.

A estes reptos, a ACATI procura responder com vários projectos, com destaque para a cantina móvel, que de segunda a sábado entrega uma refeição quente a perto de meia centena de idosos espalhados por toda a ilha. A idosos que têm condições mínimas para cozinhar, a associação entrega mensalmente 300 cestas básicas. A compra de medicamentos, o apoio no acesso a cuidados de saúde, a distribuição de fraldas e o empréstimo de canadianas, andarilhos e cadeiras de rodas são outras acções desenvolvidas.

Além de condições materiais insuficientes, preconceitos e estereótipos em relação ao envelhecimento também condicionam a inclusão social dos idosos. A psicóloga Kátia Furtado destaca a degradação do ambiente afectivo, desde logo, no seio familiar e aponta como exemplo a quebra de laços entre avós e netos.

“Hoje, o que notamos é que não temos amizade entre avós e netos, o relacionamento está distanciado. No centro onde eu trabalhava, não havia visitas dos netos, [os idosos] recebiam visitas dos filhos e vizinhos, mas muito poucas”, lembra.

Se os cuidados não existem dentro de casa, a rua aparece como ‘refúgio’.

“Quando a família não tem esta sensibilidade de cuidar dos seus idosos, estes procuram a rua, ou seja, outras pessoas que lhes possam dar um bocado de comida ou outras coisas de que necessitam”, comenta.

A falta de autonomia financeira é outra realidade, incluindo em pessoas que recebem pensões, mas que não têm acesso a elas, porque são retidas por familiares.

Isolamento, depressão e suicídio são resultados esperados – e registados – quando o abandono acontece.

“O isolamento social leva à depressão e estamos a ter muitos idosos com depressão, com transtornos afectivos devido ao isolamento, não autonomia, falta de auto-estima. Muitas vezes, há casos de suicido devido à negligência da própria família ou das pessoas ao redor do idoso”, alerta a psicóloga.

Com sede em Santiago, a Fundação Sima Júlia, trabalha com a terceira idade. A presidente da instituição também realça o papel “fundamental” da família na vida do idoso e o esforço que deve ser feito para termos comunidades mais justas para com este grupo etário.

“O cuidador do idoso é a família. Este, antes, já cuidou da família. É preciso este trabalho pedagógico”, nota.

“É [preciso] trabalhar fortemente com a família para que ela perceba o processo de envelhecimento, porque muitas vezes existem conflitos inter-geracionais, porque as pessoas não percebem bem este processo. Mesmo o idoso, muitas vezes, não percebe ou não está preparado para a questão do envelhecimento. O foco deve ser trabalhar com a comunidade, com os mais jovens, para que respeitem os idosos”, acrescenta.

Mas quando a família não pode ou não quer estar, o que fazer? Para estas circunstâncias, é fundamental a existência de uma rede paralela de apoio, preparada para actuar sempre que necessário, garantindo que ninguém fica sem amparo. No caso da Sima Júlia, isso é feito com recurso ao voluntariado.

“A Fundação criou uma rede de voluntários comunitários, empoderamos essas pessoas para que continuem a apoiar os idosos e para reforçar a competência das famílias, porque sabemos que nem sempre a família está por perto. Há todo um trabalho para que a própria comunidade possa ajudar a pessoa idosa ou a família que tem uma pessoa idosa em casa”, detalha.

Em Cabo Verde, conforme números do governo, existem 3.266 pessoas com mais de 60 anos, a viver sózinhas, sem qualquer suporte. Dessas, 970 têm mais de 80 anos. As desigualdades sociais e de género ao longo da vida também determinam as condições de vida e de saúde na velhice.

As projecções demográficas, no horizonte 2021/2040 apontam para o envelhecimento da população cabo-verdiana, com maior tendência em São Vicente, Sal e Praia.

São razões mais do que suficientes para apoiar a criação da figura do cuidador informal, acredita Teresa Mascarenhas.

“Penso que a figura do cuidador, que o Ministério [da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social] criou é importante, porque há muitos idosos que ficam em casa sem nenhum tipo de resposta”, enaltece.

O actual número de cuidadores formais é insuficiente e está longe de responder às necessidades.

“Por exemplo, em são Lourenço dos Órgãos, onde temos cento e poucos idosos acamados, há três cuidadores. Penso que é necessário aumentar o número de cuidadores ou apostar mais em voluntários comunitários, reforçando as suas competências, além de reforçar as competências das ONG que já trabalham com os idosos”, propõe, somando à análise a necessidade que o país tem de formar técnicos especializados em cuidados geriátricos.

Já a vice-presidente da ACATI aponta para a necessidade de criação de uma rede de apoio aos idosos, até para maior coordenação do amparo aos idosos.

Arminda Lima dos Reis ambiciona reunir numa mesma plataforma todas as associações e organizações não governamentais que trabalham para um mesmo objectivo.

“Uma rede funcional, onde todos nós, que trabalhamos com a terceira idade, possamos trabalhar juntos e ter uma melhor coordenação e desempenho, porque às vezes, o que acontece, é que verificamos a duplicação de ajudas e, por outro lado, temos idosos sem ajudas, exactamente por não haver esta rede”, detalha.

A institucionalização em casas de repouso é uma porta que se abre quando os cuidados diários de que o idoso precisa não estão disponíveis junto da família.

Para muitos, deixar um ente querido num lar é sinónimo de abandono. Ana Gomes, da Casinha da Deola’s, no Mindelo, refuta esta ideia e explica que estes espaços são uma resposta com condições adequadas.

“Não vejo isso como abandono, mas compreendo que seja difícil tirá-los das suas casas, dos seus espaços. É difícil a adaptação, é necessária muita paciência, acarinhá-los e fazê-los sentirem-se em casa, têm de sentir que estão em casa, para não se sentirem abandonados, e na verdade não estão abandonados, porque a família colocou-os aqui para terem um melhor cuidado, temos pessoas adequadas para lhes dar a assistência de que necessitam”, observa.

Na ausência de uma rede pública de residências para idosos, a oferta que existe no país é gerida por instituições de solidariedade social ou tem cariz privado, como é o caso da Casinha da Deola’s, onde a mensalidade é de 35 mil escudos.

Ana Gomes não tem dúvidas quanto à necessidade de um trabalho mais profundo e permanente a nível social, como forma de se mudar estereótipos e preconceitos que persistem em relação à terceira idade.

“Não podemos colocá-los de parte, fazem parte da nossa sociedade, são nossos avós, tios e tias. Quando os colocamos de parte, entram em depressão, solidão. Há aqui pessoas cujas famílias estão no exterior, nós ligamos para que possam estar sempre em contacto e sentirem-se mais perto da família, isto é importante. Estão numa idade em que precisam ter pessoas a cuidar deles”, recorda.

O Plano Nacional de Cuidados enquadra parte importante da abordagem do Estado à terceira idade, em particular a atenção dada a idosos em situação de maior fragilidade. Noventa cuidadores, afectos ao sector público, prestam assistência domiciliar a cerca de 500 idosos. Em paralelo, existem políticas específicas para aqueles que, por exemplo, precisam de apoio nas deslocações médicas ou para pessoas idosas com deficiência.

Diz o ministro da Família, Inclusão e Desenvolvimento Social, Fernando Elísio Freire, que as medidas “são claras”.

“Actuar directamente sobre as pessoas idosas que não têm nenhum suporte, actuar sobre as pessoas idosas que têm rendimento, que têm a sua reforma, mas que precisam de acções complementares e também actuar sobre as pessoas idosas que têm deficiência. Temos actuado imenso nessas três vertentes de uma forma muito assertiva”, garante.

Cerca de 20 mil idosos recebem mensalmente a pensão social mínima. Ao longo de 2023, mais três mil pessoas devem passar a ter acesso à prestação do regime não contributivo.

Reconhecendo que há trabalho a fazer, Elísio Freire está confiante nos resultados dos passos que estão a ser dados.

“O caminho está sendo feito, a situação é hoje muito melhor do que era há uns anos. Há que dizer que hoje estas questões estão na ordem do dia, sinal de que o país está a evoluir, o país está a ver a sociedade como um todo”, comenta.

Este mês, entrou em vigor o Estatuto da Pessoa Idosa. O documento, aprovado por unanimidade no parlamento, em 2022, aplica-se a todos os cidadãos com mais de 65 anos e atribui responsabilidades à família, à sociedade e aos poderes públicos em matéria de direitos dos idosos.

*com Lourdes Fortes e Fretson Rocha

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,2 jul 2023 8:30

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 mar 2024 23:28

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