O exercício das funções presidenciais em colisão com a Constituição causa tensão política

PorAntónio Monteiro,7 jan 2024 12:35

Jacinto Santos, ex-presidente da Câmara Municipal da Praia
Jacinto Santos, ex-presidente da Câmara Municipal da Praia

Baseado na técnica da sociologia politica, o ex-presidente da Câmara Municipal da Praia lança um olhar sobre os principais temas que marcaram o ano político no país e perspectiva os seus desenvolvimentos em 2024: o “caso” do salário da Primeira-Dama; as eleições autárquicas deste ano tendo como pano de fundo as crises nas câmaras da Praia e de S. Vicente e a tensão no relacionamento entre o Presidente da República e o Governo em que Jacinto Santos considera que o Presidente está a trabalhar com uma Constituição na cabeça que não corresponde ao que está estabelecido na Constituição de 1992, defendendo a introdução do princípio do impeachment quando o Presidente entra em confronto directo com a Constituição.

2023 foi o ano das instituições de costas voltadas. Como vai ser em 2024?

Eu, na minha análise e de acordo com as informações que disponho, podemos caracterizar ou definir que de 2021 a esta parte o sistema político cabo-verdiano esteve sob tensão. Falando do ponto de vista técnico da sociologia política, encontramos factores de desestabilização política, para não dizer de instabilidade política. Porquê? Porque a instabilidade não acontece apenas com golpes de Estado, ou com a substituição violenta dos governos e dos poderes instituídos. Mas, do ponto de vista da democracia, a instabilidade acontece quando actores do mesmo sistema têm entendimento ou práticas quase antagónicas em relação às regras e às práticas constitucionais estabelecidas. Nós temos isso de uma forma clara, visível, no relacionamento entre o Presidente da República e o Governo em que praticamente a ordem política estabelecida na Constituição de 1992, baseada no princípio da separação e interdependência dos poderes, o que significa que cada poder, de acordo com as suas competências, ou atribuições constitucionais, se posso falar nestes termos, só pode agir no quadro estritamente das suas competências ou prorrogativas constitucionais. Mas o que temos visto é uma colisão, diria quase que sistemática do Presidente da República no sentido de tentar entrar na esfera de competências que só é permitido ou permissível num regime presidencial, o que não é o caso. Portanto, o regime que temos é parlamentar racionalizado em que o governo só responde politicamente perante o parlamento e é fiscalizado pela oposição democrática, e temos o Presidente da República que não responde nem perante o governo, nem perante o parlamento, mas sim perante os eleitores directamente, uma vez que é eleito em lista uninominal. Portanto é um órgão uninominal. Então, as reivindicações que o Presidente faz não têm enquadramento e é uma afronta à Constituição da República de Cabo Verde. Ele está a trabalhar com uma Constituição na cabeça que não corresponde ao que está estabelecido na Constituição: uma Constituição que ele jurou cumprir e fazer cumprir. Então, temos elementos de tensão e crispação e de uma desestabilização política e com comportamentos assumidos publicamente, em termos de comunicação ao país, de discordância pública das decisões do governo no âmbito das suas competências em matéria de política externa; posicionamento em relação à reivindicação do jornalista contra o Ministério Público; disputa sobre quem recebe o Presidente de um outro país, entrando também concretamente na política externa e ameaçando com medidas, mas no nosso sistema político o Presidente não tem nenhuma medida a tomar em relação ao governo no âmbito das suas competências e isso criou indicadores de tensão muito fortes no sistema.

Como é que poderão serenar as águas no âmbito do relacionamento entre os dois órgãos de soberania?

Aqui teria que funcionar a razão. Ou seja, que todos os actores devem respeitar o que está estabelecido na Constituição e agirem dentro da esfera das suas competências, uma vez que não há uma relação de hierarquia entre os órgãos de soberania. Naturalmente que tem que haver uma outra postura, particularmente do Presidente da República. Tem que haver muito diálogo, mas o padrão, a referência, é de que cada um deve trabalhar na esfera das suas competências e fazer o diálogo que o próprio sistema permite. Porque o sistema é, ao fim e ao cabo, um conjunto de interacções entre os actores - aqueles que têm a função de representação política e os outros agentes da sociedade: a opinião pública, a comunicação social, o cidadão e outras instituições, pois a democracia exige um sistema político equilibrado, como está estabelecido na Constituição.

O nosso sistema político tem funcionado bem até aqui, mas tem também fragilidades.

Bom, eu não sou constitucionalista, mas o que é importante é acompanhar o desenvolvimento político que, segundo Fukuyama, é a mudança das instituições políticas com o tempo. Nós tivemos uma mudança das instituições políticas depois de 15 anos de regime de partido único, em que tivemos um regime totalitário, um partido força dirigente da sociedade e do Estado do qual emanavam todas as outras categorias e instituições que estavam subalternadas ao partido como Partido-Estado. Com a passagem para a democracia começamos a entrar num outro desenvolvimento político com as três categorias fundamentais de qualquer instituição política: o Estado, o primado do Direito e o principio e os mecanismos da responsabilização. Não vejo que 32 anos depois esteja sobre a mesa um outro desenvolvimento político, portanto a mudança das instituições políticas, porque as nossas instituições estão longe das suas potencialidades efectivas, têm algumas fragilidades e há que introduzir aprimoramentos. Por exemplo, eu neste momento sou claramente a favor da introdução do princípio do impeachment, ou seja, do impedimento do Presidente da República quando entra em confronto directo com a Constituição, quando tem práticas constitucionais consensualmente rejeitadas pela sociedade. Aliás, o poder público de representação política democrática não deve ser exercido de forma discricionária, mas sim no estrito respeito pelo primado da lei. Assim determina o Estado democrático de direito. Portanto, está controlado e está a ser escrutinado permanentemente. Eu acho que o nosso sistema político vai evoluir cada vez mais para um parlamentarismo cada vez mais racionalizado. Um parlamentarismo em que os partidos continuam se afirmando como pilares do sistema. Portanto, daí resulta a escolha democrática dos cidadãos, mas também um sistema político que precisa ser mais aberto para permitir a emergência de outras forças políticas para dar mais representatividade ao próprio Parlamento. Porque, muitos cidadãos, muitas pessoas dizem que não se sentem suficientemente representados e uma das crises da democracia representativa que está a surgir no Ocidente é porque as pessoas não se sentem suficientemente representadas e não consideram que os seus representantes estão lá para defender os seus interesses e os interesses da comunidade. Isso faz com que em sede da lei eleitoral se encontrem mecanismos para abrir o sistema político, sobretudo o Parlamento ao surgimento de outras forças políticas com regras não muito rígidas que no nosso caso, a serem mantidas, vão consolidar à bipolarização que resulta no sistema que temos hoje que é um sistema bipartidário perfeito. Isto é, os dois partidos de vocação maioritária detêm 94% dos votos e 94% dos deputados parlamentares. Isso significa que não é preciso muita eficácia para que o partido de esteja na oposição volte ao poder. Basta o desgaste de quem estiver a governar.

2023 foi também o ano do ‘caso’ Primeira-Dama. Que solução antevê para o término deste caso?

Em primeiro lugar penso, salvo melhor opinião, que é redutor resumir a crise política e institucional instalada da Presidência da República ao caso Primeira-Dama, mais concretamente ao salário que lhe foi atribuído pelo Presidente da República.A questão tem duas dimensões interligadas: política, porque o responsável é o Presidente da República, que tem a obrigação de cumprir e fazer cumprir a Constituição e demais leis da República. A segunda dimensão é de natureza legal, porque, de acordo com as informações veiculadas no espaço público, não existe uma base legal permissiva, que autoriza o Presidente a fixar o salário da Primeira-Dama, com o fundamento de que se ocupa da função/cargo a tempo inteiro. Aliás, a decisão do Presidente, em suspender o salário da Primeira-Dama, depois de dois comunicados reiterando que as “coisas” terão sido feitas de acordo com a lei, é o reconhecimento de que não terá cumprido a legalidade na contratação da Primeira-Dama.Sobre este assunto - a ilegalidade do acto praticado pelo PR - deve-se aguardar pelo relatório do Tribunal de Contas e o contraditório que deverá ser feito pela Presidência da República.Mas o que me preocupa é a tensão política existente no relacionamento institucional entre o Presidente e o Governo, que é o resultado, do meu ponto de vista, da concepção e do exercício das funções presidenciais que estão em colisão frontal com o que está fixado na Constituição da República. Tecnicamente falando ocorre neste momento uma desestabilização institucional, que põe em causa a natureza do Regime Político estabelecido na Constituição da República de Cabo Verde. É que somos um regime parlamentar, que está em antagonismo irredutível com o regime semipresidencial. Aqui reside a questão fundamental e não sei como será o relacionamento entre os dois órgãos de soberania até ao final do mandato.Desfecho? Não faço conjecturas, mas não dá para ignorar, a situação política do PR. Mantendo-se no cargo, numa situação de clara erosão política, o que lhe vem fragilizando do ponto de vista político e institucional. Não é bom para o sistema ter um Presidente na defensiva até ao final do seu mandato. Do ponto de vista do primado da lei, tudo depende do trabalho do Tribunal de Contas.Se for confirmada a ilegalidade no pagamento do salário da Primeira Dama, o PR ficará numa posição política insustentável. Como um político experiente e com uma longa carreira política, pela certa, será consequente, face a uma percepção maioritária da opinião pública em como terá agido em função de interesses próprios em detrimento do interesse geral e da protecção do bem-comum!

2024, ano das eleições autárquicas. Os presidentes das câmaras da Praia e S. Vicente irão mudar este ano a forma de governação municipal?

Não sei. Mas a democracia local, se posso falar neste termo, ficou ferida de morte na Praia e em S.Vicente, concretamente dois maiores centros políticos do país, porque não é aceitável numa democracia em que os actores cheguem ao poder pela via da escolha democrática, não representam a si próprios, é a expressão de uma vontade popular resultante do escrutínio directo, universal, secreto e igual, mas funcionam nas antípodas daquilo que são as regras democráticas básicas de um sistema político democrático que é a maioria. Se eu não tenho maioria legal, ou faço acordos para ter essa maioria e assegurar a governabilidade, se não conseguir não posso continuar a exercer. Isso é uma verdade de La Palice. Como é possível, em pleno século XXI, numa democracia moderna, que um município funcione durante quase três anos sem uma maioria legal para deliberar?

O presidente da Câmara da Praia pode ser reeleito em 2024.

Tudo é possível. As eleições no município da Praia são sempre altamente disputadas. E a margem de vitória de um partido em relação a outro, salvo raras excepções, atinge patamares que podemos dizer esmagadora em momentos de crise, 2016, mas a diferença não é muito esmagadora de um partido porque estamos num sistema bipartidário perfeito. Portanto nunca se poder dizer à partida quem vai ganhar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1153 de 3 de Janeiro de 2024.

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Autoria:António Monteiro,7 jan 2024 12:35

Editado porEdisângela Tavares  em  1 mai 2024 23:28

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