Um país desequilibrado

PorJorge Montezinho,31 ago 2025 15:38

Ao longo da última década confirma-se uma forte centralização em algumas ilhas (Santiago, São Vicente, Sal e Boa Vista), quer na demografia, quer na actividade económica. Aliás, há inclusive ilhas a perder quota nestes 10 anos. Os cálculos foram feitos pelo economista Paulino Dias, que falou com o Expresso das Ilhas sobre o cenário e as (possíveis) soluções.

Ao longo dos últimos 10 anos confirma-se uma forte centralização nas ilhas centrais (Santiago, São Vicente, Sal e Boavista), quer na demografia, quer na económia. Em população, o peso do grupo central sobe de 78% em 2010 para 81% em 2021, enquanto a população activa e a empregada permanecem estabilizadas em cerca de 84% nas ilhas centrais. A população jovem (25–34 anos) reforça a concentração no centro (de 82% para 83% ao nível dos grupos e, olhando ilha a ilha, com especial atracção de Santiago, Sal e São Vicente), sugerindo manutenção dos fluxos migratórios internos em direcção aos principais polos de emprego.

No plano económico, a quota do PIB real permanece estável nos 86% para o grupo central entre 2015 e 2023, enquanto o volume de negócios das empresas desce marginalmente de 97% para 96% e o pessoal ao serviço passa de 92% para 90%, sinalizando uma discreta, mas persistente, recomposição para fora do eixo central. Em dinâmica, o grupo central regista entre 2015 e 2023/24 aumentos de 31% no volume de negócios e 68% no pessoal ao serviço, ao passo que o grupo periférico cresce 74% e 95%, respectivamente, evidenciando maior dinamismo relativo nas ilhas periféricas, ainda que a partir de bases muito mais baixas.

“Cabo Verde continua a correr a diferentes ritmos”, explica Paulino Dias ao Expresso das Ilhas. “Naturalmente, não se pode esperar que todas as ilhas vão crescer ao mesmo ritmo ou vão ter a mesma participação num dado indicador como por exemplo o PIB, porque as ilhas são estruturalmente diferentes, possuem recursos diferentes. O que quis analisar é como é que evoluiu essa dinâmica, esse nível da concentração na última década. E aqui a primeira conclusão é que continuamos tão ou mais concentrados do que há 10 anos em vários indicadores, excepto um ou outro em que se notou alguma dinâmica nas chamadas ilhas periféricas”.

O indicador turismo

A introdução do indicador total de turistas permite distinguir claramente fluxos de estadas. Em termos de fluxos, a centralização quase não se altera: as ilhas centrais receberam 94% dos turistas em 2015 e 95% em 2024. Porém, nas dormidas há uma ligeira desconcentração: a quota das ilhas centrais desce de 97% para 95%. Esta divergência traduz-se numa mudança da duração média de estadia: nas ilhas centrais, os turistas crescem 109% mas as dormidas apenas 49%, indicando encurtamento médio das estadias; nas ilhas periféricas, os turistas crescem 70% e as dormidas 189%, sugerindo alargamento das estadias fora do eixo principal.

“O turismo é o principal carro-chefe da economia. Já representa 25% da economia. Tem um peso substancial na criação de empregos em Cabo Verde, isso também está vastamente demonstrado por números”, refere o economista, “mas o que aconteceu é o seguinte, o fluxo turístico aumentou a concentração nos últimos 10 anos. Em 2015, Sal e Boa Vista representavam 75% do fluxo turístico, em 2024 passaram a representar 83% do fluxo turístico. As ilhas chamadas periféricas, isto é, as demais ilhas que não Sal e Boa Vista, acabaram por perder quota de mercado e naturalmente isto tem várias implicações, entre as quais a criação de empregos, os fluxos migratórios, etc”, sublinha.

Aqui surge a questão, o que teria acontecido se tivesse, pelo menos, conservado a estrutura de quota de mercado, isto é, se em 2024 as restantes ilhas que não se Sal e Boa Vista tivessem mantido os 25% de quota de mercado que tinham em 2015, o que é que isso significaria para a economia das ilhas periféricas?

“Teria representado mais 90 mil turistas a circular pelas outras ilhas”, contabiliza Paulino Dias “representaria 430 mil dormidas e mais 2,9 milhões de contos em gastos diretos de turistas nestas outras ilhas que não Sal e Boa Vista. Por esses três números vê-se qual é o impacto da concentração de turistas em termos da perda de oportunidade, em termos de receitas geradas nas restantes ilhas, mas o que também é muito importante em termos de oferta de emprego nestas ilhas”, refere o economista.

Como mostrou o recente relatório do BCV sobre o estado da economia em 2024, o turismo rebocou a economia cabo-verdiana no ano passado e foi ainda o principal responsável pelo superavit da balança corrente, superior a 10 milhões de contos.

As ilhas da Boa Vista e do Sal continuaram a ser o destino preferido dos turistas estrangeiros e nacionais, com as maiores taxas de ocupação-cama do país, (91% na Boa Vista e 62% no Sal). As duas ilhas receberam cerca de 83% do total das entradas de hóspedes nos estabelecimentos hoteleiros do país.

“As ilhas do Sal e Boa Vista acabam por atrair a população activa das restantes ilhas e isto é evidente também quando analisamos os indicadores demográficos entre as outras ilhas que não são Sal e Boa Vista e que estão a perder população a favor da Ilha daquelas ilhas. Essa conclusão requer uma discussão muito séria, uma análise maior, um debate muito profundo porque introduz, ou agrava, as assimetrias regionais em termos da produção económica, em termos da criação de emprego e de fluxos migratórios.

image

Nos dados cedidos pelo economista, a desagregação “Sal+Boa Vista” versus “restantes ilhas” mostra que Sal e Boa Vista concentram a esmagadora maioria dos turistas (75% em 2015 e 83% em 2024) e das dormidas (91% em 2015 e 83% em 2024). Contudo, em dinâmica, Sal+Boa Vista aumentam turistas 127% e dormidas apenas 40%, com forte expansão de capacidade (+69% em quartos), o que aponta para estadias médias mais curtas e/ou maior rotação. Em contrapartida, o conjunto das restantes ilhas (incluindo Santiago e São Vicente) cresce 45% em turistas e 173% em dormidas, com acréscimo mais moderado de capacidade (+37%), o que é consistente com estadias médias mais longas, provavelmente associadas a produtos de natureza, cultura, trekking e turismo interno/regionais que favorecem permanências superiores.

Santo Antão mais do que duplica as dormidas (+167%) para um aumento de 86% em turistas, indicando estadias mais longas; São Vicente exibe comportamento semelhante (turistas +39%, dormidas +135%); Santiago tem crescimento expressivo nas dormidas (+189%) face aos turistas (+35%), compatível com a consolidação do turismo urbano, de negócios e de natureza na ilha; Sal e, em menor grau, Boa Vista, apresentam maior crescimento em entradas do que em dormidas, compatível com encurtamento relativo de estadias e com a expansão da oferta formal; São Nicolau e Fogo mostram ganhos muito significativos nas dormidas a partir de bases pequenas, com ritmos de turistas mais modestos, também traduzindo estadias mais longas; Maio melhora em ambas as métricas, ainda que mantendo pesos estruturais reduzidos.

As (possíveis) razões da concentração

Dados do PIB por ilhas, publicados pelo INE, mostram que Santiago, São Vicente e Sal são responsáveis pela criação de 81,8% da riqueza nacional. Os restantes 18,2% dividem-se pelas outras seis ilhas. As ilhas com menor peso são Brava (0,9%), Maio (1,2%) e São Nicolau (2,2%).

Aliás, desde 2015 que a estrutura do PIB nacional é dominada pelas mesmas três ilhas o que pode ser indicativo que ainda falta muito tempo para reduzir as assimetrias. Pelo que se impõe a questão, o que está por trás da concentração verificada?

“Apontaria claramente o transporte, o deficiente serviço de transporte entre as ilhas como, provavelmente, o principal factor para a continuidade desta concentração económica”, responde Paulino Dias. “O transporte afecta não apenas o fluxo turístico, mas afecta também a questão do transporte de mercadorias de ilhas para mercados consumidores. Naturalmente poderão haver outros factores, mas estou em crer que o deficiente serviço de transporte, que se registou na última década entre as ilhas, terá contribuído fortemente para a preservação deste nível de concentração entre as diferentes ilhas de Cabo Verde”.

E se a última década confirma uma estrutura altamente concentrada — cerca de 80–85% do PIB, emprego, empresas e turismo permanecem nas ilhas centrais, estarão as ilhas periféricas irremediavelmente condenadas ao crescimento anémico? Paulino Dias diz que há soluções, pelo menos para recuperar a quota de 25% que já tiveram. Mas o tempo já não é muito.

“É possível e é desejável. Só que nós temos que acelerar o passo porque o que é que já está a acontecer? Em determinadas ilhas, estamos a atingir um ponto de não retorno. Porquê? Hoje, por exemplo, se alguém quiser investir num hotel em Santo Antão ou em São Nicolau e precise de 100 pessoas para trabalhar vai ter dificuldades de encontrar mão-de-obra naquelas ilhas. E isso acaba por gerar um ciclo vicioso em que a inexistência da mão-de-obra nessas ilhas pode dificultar a atracção de investimento que poderia reter a população, reter mão-de-obra. Esse é o aspecto dramático deste ciclo vicioso”

“Mas acredito que ainda é possível”, acredita o economista. “Para isso, é preciso atacar duas grandes questões nessas ilhas, a primeira questão é a criação de emprego, mas emprego qualificado. Não podemos perder a perspectiva que a população está cada vez mais educada, o nível da escolaridade média aumentou nas últimas décadas, portanto, quando falamos da criação de empregos, temos que ter este elemento em perspectiva. O segundo ponto mais importante a trabalhar é a conectividade entre as ilhas. Quer a conectividade marítima, eu diria até especialmente a conectividade marítima, por causa da ligação entre mercados produtores e mercados consumidores de produtos, mas também a conectividade aérea. Quanto maior e mais eficiente e mais acessível for o serviço de transporte entre as ilhas maior será a possibilidade, quer de se atrair investimento gerador de emprego para as ilhas, quer para se escoar produtos dessas ilhas para outros mercados”.

image

“Se estivermos de acordo quanto a essas duas prioridades, a próxima pergunta é qual será o sector económico, ou as atividades económicas, em cada ilha, capazes de gerar, de forma competitiva, empregos qualificados que a ilha precisa”, continua Paulino Dias. “Aqui avançaremos para a regionalização das soluções, porque uma estratégia em termos de priorização da atividade económica que pode funcionar em Santo Antão, pode não funcionar em São Nicolau, pode não funcionar no Fogo. Temos que combinar esse entendimento geral global do que é preciso fazer, mas em cada ilha, perceber qual é o sector económico, quais são as atividades económicas que têm potencial para a geração desse nível de emprego qualificado que a ilha precisa”.

As (potenciais) consequências

Os números do PIB por ilhas são um espelho das assimetrias que assolam o país. Santiago (50,8%), São Vicente (18,5%) e Sal (12,5%) são as que têm maior peso. Com menor peso, destacam-se as ilhas da Brava (0,9%), Maio (1,2%) e São Nicolau (2,2%). As restantes três ilhas contribuíram para a riqueza nacional com 5,5% (Santo Antão) e 4,2% (para Boa Vista e Fogo).

E como o próprio INE escreveu, a análise do PIB por ilha não só proporciona uma compreensão mais clara da performance económica regional, como também revela as desigualdades e os desafios específicos enfrentados por essas áreas. Além disso, ao comparar o PIB entre as diferentes ilhas, pode-se identificar padrões económicos e tendências que ajudam a formular estratégias para promover um crescimento mais equilibrado e sustentável.

“Afectar a unidade nacional vejo como um risco bastante remoto”, diz Paulino Dias. “Não podemos nunca dizer que nunca, mas eu diria que é um risco bastante remoto. Pode sim aprofundar clivagens sociais, pode aprofundar alguma percepção de desequilíbrio em termos de ritmo de desenvolvimento que depois pode ter influência, ou pode incentivar, a emergência ou aprofundamento de determinados sentimentos entre a população, sobretudo das ilhas ditas periféricas”.

“O impacto disso pode ser imprevisível”, avisa o economista, “pode dar espaço à emergência de tendências até demagógicas populistas, que se aproveitam desta desigualdade para passar mensagens que efetivamente podem não contribuir para o sentimento de unidade nacional que nós precisamos, de patriotismo, de olhar o Cabo Verde como um todo. Mas eu diria que a urgência maior seria estancarmos os desequilíbrios macroeconómicos a nível das ilhas, que acabam por ter impactos sociais bastante aprofundados, entre as quais aqui o que estamos a vivenciar, que é a redução da população das chamadas ilhas periféricas”, conclui Paulino Dias. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1239 de 27 de Agosto de 2025.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Jorge Montezinho,31 ago 2025 15:38

Editado porSheilla Ribeiro  em  2 set 2025 14:19

pub.
pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.