O resultado desse labor está condensado na Lei Constitucional nº 1/V/99, publicada no dia 23 de Novembro de 1999.
Foi, entretanto, um XX aniversário que passou de forma despercebida.
Mas, não devia ter sido assim. Efectivamente, tratou-se de uma etapa do nosso percurso constitucional que demanda uma reflexão sobre os seus aspectos essenciais e o seu significado mais profundo.
E isso se justifica porque em 1999, pela primeira vez, à excepção da pontual revisão extraordinária de 1995, a Constituição da República foi assumida conjuntamente, para ser aprimorada, por todas as forças políticas presentes no Parlamento.
Para melhor se compreender o significado desse singelo momento de cooperação e construção, vale recordar que na sua origem a Constituição de 1992 deu azo a acesa polémica, centrada essencialmente numa interessante questão, à primeira vista de índole meramente doutrinária, mas que acabaria por se revelar de enorme e profunda repercussão política.
Tal questão consistia (e consiste) em saber se os poderes de revisão constitucional concedidos por uma Constituição em vigor (poder constituinte derivado) podem ser usados por uma maioria parlamentar para a feitura de uma nova Constituição. Numa palavra, como se problematizou na altura, se a revisão constitucional é a via idónea para a novação constitucional.
Para além da Oposição e de vozes da sociedade civil que se manifestaram contra tal opção, por ocasião da promulgação do texto já aprovado pelo Parlamento o próprio Presidente da República (PR), António Mascarenhas Monteiro, fez ouvir a sua voz. Por sinal, a voz de quem tinha sido eleito para o cargo, e eleito pela primeira vez por sufrágio universal, directo e secreto, pela esmagadora maioria dos Cabo-verdianos.
Efectivamente, de forma solene, pois que em mensagem dirigida à Nação, o PR começou por enaltecer a dimensão histórica do momento que se vivia, colocando ênfase nalgumas virtudes do texto aprovado, particularmente no que se refere aos direitos, liberdades e garantias.
De seguida, lamentando a ausência do consenso, deixou saber a sua firme discordância do uso que se tinha feito dos poderes de revisão constitucional para se aprovar uma nova Constituição, agravado pelo facto de se ter alterado substancialmente o estatuto de um Presidente da República, em pleno exercício do seu mandato. No fundo, uma substancial alteração do sistema de governo.
Aliás, a citada comunicação do PR Mascarenhas Monteiro à Nação, seguramente um dos textos históricos do Direito Constitucional Cabo-verdiano, foi publicada na íntegra no jornal Voz di Povo sob o sugestivo título “No alicerçamento desta nossa II República, se perdeu a oportunidade de dar ao país uma Constituição consensual”.
Consolidava-se, assim, aquilo que ficaria conhecido como a questão da Constituição, dissenso que só viria a esvanecer com o tempo, cedendo lugar, ao que tudo indica, a uma predisposição dos diversos protagonistas para olharem em frente.
Ora, sendo esses os antecedentes, então parece que não haverá exagero se se disser que o mais profundo significado da revisão constitucional de 1999 reside no facto de ela se ter erigido, ao contrário do que sucedera em 1992, em momento de sólido e abrangente consenso, envolvendo partidos, demais actores do sistema político cabo-verdiano e até largos segmentos da sociedade, em torno da Constituição da República.
E uma das linhas-força dessa revisão passou precisamente pela racionalização do sistema de governo, com a atribuição de efectiva função moderadora e de arbitragem ao Presidente da República – um órgão de soberania eleito, por alguma razão, por sufrágio universal -- nomeadamente no que se refere ao seu poder de dissolução do Parlamento, o que implicou desde logo que o parecer do Conselho da República, que precede o exercício dessa competência, tenha deixado de ter força vinculativa.
Essa preocupação de se conferir maior relevância ao PR dentro do sistema político, em contraposição à percepção da sua subalternização que tinha marcado os primeiros anos de vigência da CRCV de 1992, teve ainda expressão no aligeiramento de outros condicionalismos da sua actuação por parte do Parlamento e do Governo.
Assim, assistiu-se à significativa redução dos actos do PR sujeitos à referenda do Governo, isto é, à assinatura final do Primeiro Ministro. Do mesmo modo, suprimiu-se da Constituição a obrigatoriedade de se sujeitar a promulgação dos actos legislativos do Parlamento, pelo PR, à assinatura final do Presidente da Assembleia Nacional.
Várias outras opções, beneficiando quase todas elas de amplo consenso, concorreram também para que a primeira revisão ordinária da Constituição de 1992 ganhasse lugar de destaque na nossa história constitucional.
Algumas reconfiguraram a estrutura institucional da Constituição, com a criação de novos órgãos, como o Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça. Outras valorizaram certos elementos identitários da República, como a constitucionalização do hino nacional e a assunção de que a língua cabo-verdiana deve ser oficializada, em paridade com a língua portuguesa. Reforçou-se também o exercício da democracia e da cidadania, com a constitucionalização da acção popular e da iniciativa legislativa dos cidadãos.
Merece finalmente referência a alteração de paradigma que se registou em sede da Constituição Administrativa, particularmente no que diz respeito às relações entre a Administração Pública e os cidadãos, com destaque para significativos direitos fundamentais que a estes foram reconhecidos na sua interacção com aquela.
Cumpre, porém, notar, como aliás tem sido assinalado por especialistas do Direito Administrativo, nacionais e estrangeiros, que talvez seja a almejada Reforma do Contencioso Administrativo, sempre adiada, a face mais emblemática do que resta por implementar da revisão constitucional de 1999.
Nada que possa, entretanto, diminuir o alcance e o significado dessa revisão constitucional, a qual merece ser lembrada, quanto mais não seja pelo elementar dever de se preservar, com a exactidão possível, a memória constitucional da República, afinal elemento da nossa própria identidade, como Estado e como Nação.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.