O projecto de lei ainda terá que ser aprovado na especialidade e na globalidade antes de ser enviado ao presidente da república para promulgação. A controvérsia que se instalou sobre a maioria exigida na deliberação provavelmente não vai desaparecer e poderá ressurgir num outro momento do processo legislativo. De facto, de acordo com o nº 2 do artigo 161º da Constituição e 131º do regimento da AN os projectos e propostas de lei são aprovados por maioria absoluta dos deputados presentes. A aprovação por maioria simples, ou seja, sem contar os votos nulos, em branco e as abstenções como determina o nº 3 do artigo 121º da Constituição é, segundo os constitucionalistas, apenas um princípio subsidiário que cede quando a Constituição dispõe de forma diferente e determina que a maioria é absoluta, é de dois terços ou de quatro quintos. A prática parlamentar de sempre tem sido essa e a maioria simples só tem sido adoptada nas resoluções e mesmo nelas só quando a Constituição não estipula uma outra maioria.
De qualquer forma, a declaração do presidente da assembleia nacional a dar por aprovado o projecto de lei já foi de grande significado político. O teor do debate havido e as opções de voto dos deputados revelou o nível de polarização político-ideológica que a questão da língua portuguesa provoca. O ministro da cultura que publicamente se tinha oposto à iniciativa do projecto de lei no debate parlamentar não se fez presente nem o governo manifestou apoio à sua posição. O MpD, partido que suporta o governo, votou maioritariamente no projecto de lei juntamente com a maioria dos deputados da UCID enquanto no PAICV, pelo contrário, só uma pequena minoria foi favorável. Considerando o desenlace, ministros antes de reagirem desabridamente a iniciativas dos deputados e em particular da maioria parlamentar deviam ter em devida conta que, além de responderem perante o primeiro-ministro, são politicamente responsáveis perante o parlamento.
Ao longo do debate ficou evidente a quase impossibilidade de se discutir o estado da língua portuguesa e a necessidade de se elevar o seu nível de proficiência como condição para a cidadania plena, excelência no sistema de ensino, acesso ao conhecimento científico e da história e literatura de Cabo Verde e comunicação efectiva no plano internacional. O contraditório a partir da posição que o crioulo está a ser vítima e que não é suficientemente dignificada como língua materna efectivamente bloqueia o debate e acaba por revelar a polarização típica que se cria nas guerras culturais e identitárias da actualidade.
De facto, não pode ser considerada língua inferior aquela que pode ser utilizada pelo presidente da república, pelos deputados e em qualquer função do Estado, actividade social ou cultural como todos os dias se assiste no país através dos órgãos de comunicação social. O crioulo só tem limitações no seu uso porque ainda não se acordou numa forma estandardizada e na sua expressão escrita. Por isso é que não é língua de ensino, o boletim oficial e outros documentos do Estado não têm uma versão em crioulo nem tão pouco contratos e sentenças judiciais são redigidos em crioulo. A falta de uma versão mais formal da língua também prejudica a comunicação oral em contextos como debates parlamentares, cerimónias oficiais e apresentação de trabalhos académicos que, por razões de protocolo, exigem linguagem mais sofisticada e precisa do que a fala coloquial. O sentimento geral que há alguma degradação nos trabalhos parlamentares provavelmente não estará alheio ao crescente uso do crioulo nos debates sem a formalidade que seria de exigir na linguagem utilizada num órgão de soberania.
Sem ter um padrão do crioulo escrito e aceite pela comunidade nacional não há como ultrapassar a situação actual. Oficializar a língua não resolve o problema: criam-se obrigações custosas para o Estado de disponibilizar informação e serviços em crioulo sem ter os recursos para isso e na ausência de uma língua padronizada. Luxemburgo com todos os seus recursos levou décadas, com tentativas falhadas pelo meio, a padronizar o luxemburguês, mas o nível de utilização na sua forma escrita continua baixo. Ainda a melhor solução é procurar cumprir o comando constitucional que se deve continuar a criar as condições para ter paridade com a língua portuguesa.
Entrementes devia-se evitar criar um ambiente de conflito entre as duas línguas que arraste consigo sentimentos de vitimização, ressentimento e rejeição da língua portuguesa que interferem directamente com a vontade de fazer a sua aprendizagem adequada. Insistir na via que já demonstrou num primeiro embate não ter maioria na assembleia representativa dos cabo-verdianos só estará a prejudicar o presente e o futuro do país pela má vontade que cria nos alunos em relação à língua essencial para aprendizagem e conhecimento. De facto, vai-se para escola fundamentalmente para aprender ler e escrever. Com capacidade de leitura pode-se resolver problemas de matemática, aprender ciências, aceder a toda a literatura publicada e ser um produtor e transmissor de conhecimento. Não sendo uma língua com escrita padronizada é evidente que o crioulo não pode ser ainda uma língua de ensino.
As crianças em geral aprendem as suas respectivas línguas logo nos seus primeiros anos de vida. Depois na escola vão aprender a ler e a escrever e comunicarem-se em linguagem formal e estandardizada. A iniciação na literatura começa também aí. Se a língua materna da criança não é uma língua escrita e como no caso de Cabo Verde é a língua falada por todos e em quase todas as ocasiões, a escola tem um papel suplementar de ensinar a língua do ensino e do conhecimento com um nível de proficiência que garanta sucesso na aprendizagem a todas crianças que nela ingressa. É uma enorme responsabilidade que recai sobre os professores e os pais, mas que a sociedade no seu todo deve assumir. A criação de um ambiente propício para todas as crianças e jovens aprenderem a língua é essencial para garantirem no presente o seu sucesso escolar e depois profissional e também fundamental para o exercício de uma cidadania plena.
Do governo exige-se visão e liderança para que os enormes investimentos feitos na educação não sejam desperdiçados e nem o futuro hipotecado porque não se soube criar a motivação suficiente para elevar o nível de capital humano no país, aumentar competitividade e a produtividade e tornar o país mais atractivo para o investimento externo. Aos jovens não se pode deixar a única opção de querer emigrar para trabalhar em sectores de baixo salário. E tudo porque se permitiu que questiúnculas ideológicas e guerras culturais atrapalhassem o maior investimento que o país pode fazer que é dar uma educação de qualidade às suas gentes.
Imagine-se onde estariam a Singapura com os seus grupos étnicos e as Maurícias com sua história de colónia francesa e depois inglesa se tivessem ficado enredados em questões identitárias que prejudicasse a assunção respectivamente do inglês e do francês e inglês como língua oficial e do ensino. Quase cinquenta anos volvidos após a independência, é preciso que Cabo Verde se compenetre que não tem todo o tempo do mundo para tomar o caminho certo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1116 de 19 de Abril de 2023.