Num mundo complexo, que futuro para as relações entre países? Fala-se muito nas tendências isolacionistas de uns países no multilateralismo por parte de outros. Qual é o caminho a seguir?
Bem. Nós estamos no meio do oceano, neste magnifico arquipélago de Cabo Verde que faz parte de um continente que deu o melhor sinal nos piores tempos. O que é que eu quero dizer com isto? Se África tiver, como Cabo Verde tem, estabilidade política e conseguir ser muito competitiva do ponto de vista da segurança jurídica dos contratos, que são as duas condições essenciais para os investidores acreditarem, para que haja governos estáveis e para que haja um sistema judicial onde se podem validar os contratos, eu acho que África é o único continente do mundo que tem potencial para ser no século XXI o que a Ásia foi no último quartel do século XX. .
Ou seja, por razões geoestratégicas África é o continente mais jovem do mundo, tem capacidade para ser um dos grandes food suppliers do mundo que vai ter quatro vezes mais habitantes do que aqueles que tinha ainda a meio do século passado. Chamo a atenção que nós tínhamos 2,5 biliões de habitantes em 1950 e agora caminhamos para 9,8 biliões. Vai ser preciso alimentar cada vez mais gente. Com certeza que os códigos alimentares vão mudar, mas algum continente ou sub-continente se vai transformar no grande produtor de alimentação para haver qualidade de vida no planeta. África, como o Brasil, como a Austrália, por circunstâncias muito específicas, pode ser um front runner nesse caminho. E eu digo que a África deu um grande exemplo ao mundo em tempos de proteccionismo e de isolacionismo, porque considero, do ponto de vista geoestratégico, uma proeza o projecto de Acordo de Livre Comércio Continental de África.
Que mais de 50 países de África tenham sido capazes, em cerca de um ano, de passar para a fase da assinatura, para a fase mais difícil da operacionalização de um acordo de comércio continental, que acabou por integrar a Nigéria no último momento, o que já de si prova a força desse acordo, e que neste momento estejam a negociar os detalhes é uma grande esperança. Porque África só tem 15% de comércio entre países africanos, ou seja, África depende muito das suas exportações e das suas importações de outros continentes. O objectivo desse acordo é abater tarifas de fronteira até 90% e, com isso, tornar os preços muito mais competitivos e conseguir fazer subir o comércio entre os países africanos de 15% para cerca de 50%. Eu tenho muita esperança que esse acordo, se conseguir chegar à fase final como eu acho que vai, seja uma grande oportunidade para que as economias africanas sejam mais diversificadas e também que tenham um esforço de conectividade mais relevante.
Sim, o mundo está cheio de complexidades, às vezes parece muito perigoso, mas África é um bom exemplo do caminho certo. Quanto mais comércio, mais paz e quanto mais comércio, mais desenvolvimento e disso eu não tenho dúvidas nenhumas.
Dizia que o objectivo do acordo entre os países africanos é diminuir o valor das tarifas aduaneiras. Mas essas mesmas tarifas são, muitas vezes, uma importante fonte de recursos para os diferentes Estados.
Depende se se olha para o curto ou para o longo prazo. As barreiras alfandegárias são sempre formas de proteger, defender, balancear, equilibrar, por razões políticas e que não têm que ver com o mérito das empresas nem com o valor dos produtos, o comércio. Para mim, a regra deve ser a inexistência de barreiras. Porque na inexistência de barreiras, as empresas são compensadas pelo seu mérito. Quando há muito proteccionismo nas fronteiras as empresas dormem na forma. Porque acham que há sempre um decisor político que vai compensar as suas perdas.
Ora, nós vivemos em globalização e em globalização há várias vantagens. Pode-se estar na periferia e ser central desde que tenha conectividade. E esse é outro aspecto que é importante para África. África tem um potencial de crescimento da economia digital que é até superior ao da Ásia. Mesmo assim, de acordo com os números que eu conheço, em 2020 existirão cerca de 700 milhões de smartphones em África. Isto muda completamente o quotidiano das pessoas, muda a velocidade dos projectos de vida, acelera as migrações. Não é que África queime etapas, mas pode começar a criar uma economia de serviços e uma economia digital muito competitiva.
A idade média dos africanos será de 18 anos quando a da Europa for de 50. A Europa está a envelhecer e África é um continente jovem. O que separa a Europa de África, no seu ponto mais curto, são 14 km entre Marrocos e Espanha.
Eu sou completamente contrário à demagogia sobre as migrações que hoje em dia é dominante na Europa, infelizmente. A Europa precisa de uma combinação de políticas familiares e migratórias, porque está a envelhecer dramaticamente ao mesmo tempo que aumenta a esperança de vida. A Europa vai ter de enfrentar o problema de ter cada vez mais pensionistas, que vivem cada vez mais anos, e vai ter cada vez menos activos para financiar a sustentabilidade do sistema. O que significa que a Europa tem de ter uma política africana a sério que não é uma política condescendente, é uma política de cooperação a sério. A Europa tem de saber transferir tecnologia, tem de gerir com os países de passagem e de origem as questões migratórias. Por outro lado para as empresas africanas e para as empresa europeias, estas questão da proximidade e esta diferença demográfica constituem, a meu ver uma oportunidade.
Ao longo dos últimos 40/50 anos, desde que os países africanos se foram tornando independentes, que se fala no arranque de África. O que é que tem acontecido que tem impedido isso?
Há uma coisa que eu considero muito injusta. África é mais notícia pelos maus exemplos e deveria ser, pelo menos tão notícia, pelos bons exemplos. Há muito boas histórias para contar sobre África e uma delas é Cabo Verde, do ponto de vista dos critérios de governança internacionais. Eu costumo sempre dizer aos meus alunos e às empresas para olharem para África que não depende essencialmente do petróleo e do gás.
Mas que depende muito do investimento externo...
Está a chegar ao ponto. Se uma pessoa olhar com atenção para a última série de crescimento em África, para os últimos 5 anos por exemplo, que países é que lá vai encontrar como países campeões? Ruanda, Costa do Marfim, Senegal, Tanzânia, Botswana, Quénia, eu acho que Cabo Verde está à beira de entrar no clube porque está com um crescimento superior a 5%. Quem cresce, em África, sustentavelmente, nos últimos 5 a 10 anos, acima de 5%, frequentemente acima de 6, e muitas vezes acima de 7% ao ano, o que é espectacular, são estes países. São países que tiveram de fazer o dobro do esforço, porque são países que não podem dormir na forma à sombra do petróleo ou do gás. Têm de ser países que constroem sistemas e modelos de competitividade que atraem os investidores.
É evidente que o investimento e as exportações são dois pilares de desenvolvimento de uma economia moderna e souberam fazê-lo. Portanto, essa África muitas vezes não é notícia é a África para onde os investidores estão a olhar. Porque é que estes países estão a crescer tanto e há tanto tempo? E porque é que de repente África já não depende tanto da Nigéria e da África do Sul?
Mas por outro lado temos a pegada chinesa nas economias africanas...
Eu dou-lhe o exemplo de Portugal. Um país que conhece muito bem África, um país europeu e que quando teve dificuldades teve de diversificar a procura de investimento. Tivemos de o ir buscar à Ásia, às Américas e à Europa. Os países pequenos e médios não devem ser, a meu ver, monodependentes. Não devem ter só uma amizade, têm de ter várias.
Por outro lado, em África, o que eu acho interessante do ponto de vista do olhar externo é que por alguma razão todas as potências do mundo têm um olhar sobre África. Não é só a China. É a Europa, são os EUA, é o Japão, a Rússia, é a Turquia. Todos têm um olhar sobre África. E isso é bom. Se não fosse não se era muito observado.
Eu acho que a China, que fez uma entrada massiva em África, beneficiou de uma certa ausência dos EUA e, até ao momento, tem sobretudo apostado naquilo a que os chineses chamam de modelo de cooperação Sul-Sul. Que é uma expressão muito bonita mas que a partir de um determinado momento não ajuda os países a terem mais performance do ponto de vista da eficácia da sua governança, porque é um modelo que dispensa condições ou critérios em matéria de transparência, de prestação de contas, de utilização rigorosa dos dinheiros. Isso tem um limite no tempo, porque muitos países africanos vão passando para um estádio superior em que querem boas condições de escrutínio sobre como são gastos os dinheiros e querem uma boa aplicação deles para contrariarem a corrupção.
A segunda coisa que eu acho que os chineses, a prazo, não são tão eficazes como são os europeus – desde que estes saibam olhar para África – é que os chineses não têm, por tradição, capacidade de se integrarem nas sociedades. Há sempre uma Chinatown ao lado das outras cidades. É verdade que os chineses, quando vêm para África, trazem os aviões, os bancos, os engenheiros, os operários, mas não chegam a fazer parte de uma só sociedade. E isso é muito diferente da forma como certos europeus, não digo todos, se integram. Depois eu acho que a Europa está em crescentes dificuldades no mundo da globalização e da digitalização e sente, às vezes, a globalização como uma ameaça, o que é muito estranho porque da Europa que partiram os navegadores que fizeram a primeira globalização. Há países europeus que são de longe os que conhecem melhor África e que eu acho que estariam em condições... Se a Europa tiver os meios a sério para uma política com África, que não é uma política de ir vender em África é muito mais que isso. É preciso transferir tecnologia, é preciso ajudar a criar bons sistemas de gestão e capitalização de empresas africanas e isso eu acho que os europeus podem fazer melhor que os chineses. Agora, que eles estão em todos os lados, isso estão.
O mundo mudou mais nestes 40 anos do que em séculos...
Nós temos a ideia que os líderes que mudaram o mundo foram Mikhail Gorbatchov, Ronald Reagan, Margareth Thatcher e o Papa João Paulo II. Isso é tudo verdade. Mas houve uma outra pessoa que mudou a outra metade do mundo. Deng Xiaoping mudou a China. Mudando a China, mudou a Ásia, mudando a Ásia mudou o mundo. A abertura da China que conhecemos começou com ele há 40 anos.
E que papel terá a Europa neste mundo que mudou?
A Europa tem que fazer por si. A Europa está a ficar velha, aconteceu-lhe uma coisa, que eu acho grave, que foi ser ultrapassada pela China em nível de inovação, pesquisa e desenvolvimento sobre o PIB. Isto que dizer que hoje em dia quem mais inova são os EUA e a China e isso tem uma consequência. Nas 10 maiores companhias tecnológicas do mundo sete são americanas e três são chinesas. Por enquanto, a Liga dos Campeões da economia digital, que é a economia do futuro, é disputada pelos Estados Unidos e pela China. A Europa ficou de fora porque, aparentemente, os capitais europeus, provavelmente porque há sistemas fiscais muito pesados, não queriam grandes companhias digitais na Europa, vão criá-las para outros lados. E, por outro lado, porque estamos a esquecer-nos que aquilo que gera valor na economia do futuro é a inovação, como já foi na transição da economia industrial. E estamos a perder esse campeonato.
Eu hoje vejo o Banco Central Europeu aplicar anos seguido de juros negativos. Isso não é normal. E é uma ameaça à poupança. Onde é que as classes médias europeias põem o dinheiro se ele não rende? Pelo contrário, se ao fim de um ano eu tenho menos dinheiro que no início...
A Europa tem um crescimento medíocre, a última previsão é de 1% na zona euro. A Europa tem este crescimento porque o crédito é caro? Não, o crédito já é muito barato. Os problemas da Europa são outros. É um problema de inovação, é um problema de excesso de rigidez nomeadamente nas legislações laborais, é um problema de excesso de peso da carga fiscal e é um problema de flexibilidade. Um americano muda de trabalho onze vezes durante a sua vida. Um europeu muda quatro. Emprego para a vida já não existe.
A Europa tem de olhar para as suas forças, que são muitas, Eu acho a Europa o mercado interno com as regras mais confiáveis e com a estabilidade jurídica mais forte. A Europa tem 508 milhões de consumidores com um bom nível de vida, tem uma história que é visitada por centenas de milhões de pessoas todos os anos. Mas tem de saber olhar para as razões pelas quais está a perder o chão na economia digital e no 5G e na inteligência artificial.
As migrações também mostraram como a Europa estava mal preparada para qualquer eventualidade deste género.
E mostrou como a Europa está, hoje em dia, sequestrada por lideranças muito fracas, por populismos de esquerda e de direita que muitas vezes não são contrariados, porque os políticos moderados preferem não abordar certos temas ou preferem imitar os populistas. A última grande liderança que conseguiu estar mais de 10 anos e teve uma política com princípio, meio e fim foi a da Chanceler Merkel. Hoje em dia, as lideranças políticas na Europa transformam-se de bestas em bestiais e de bestiais em bestas em dois anos.
O Brexit.
Who knows. A Grã-Bretanha está debaixo de um paradoxo terrível, porque tem um primeiro-ministro que quer suspender o Parlamento e tem um Parlamento que quer suspender um referendo. Se uma pessoa olhar para isto com uma certa distância, do ponto de vista democrático não é nada bom sinal.
O erro foi cometido quando foi convocado aquele referendo, mas não se pode ignorar que houve aquele resultado. E eu acho que um dia os ingleses vão ter de perceber, fazer a experiência, do que é viver sozinho no mundo da globalização. É certo que não estão totalmente sozinhos, têm a Commonwealth, são muito bons comerciantes. Mas eu acho que eles vão perceber que vão ficar mais sós, mais livres, é verdade, mas mais sós numa era global. E uma coisa que eles talvez ainda não tenham percebido: já não há Império Britânico.
É possível viver fora de um bloco económico?
Eu não sou inglês e os ingleses são pessoas muito especiais. Sempre tiveram uma visão muito céptica do continente. E sempre tiveram uma política externa cujo ponto de partida era o seu próprio umbigo. Eram os interesses do Reino Unido no mundo.
44% das exportações inglesas são para o mercado interno europeu. Vai ter de haver um acordo de comércio.
Eu gostava de ser justo. Faz-se muitas vezes uma comparação entre Donald Trump e Boris Johnson. É uma questão puramente virtual, porque enquanto Trump é um isolacionista e um proteccionista, os defensores do Brexit são isolacionista porque não querem estar na Europa mas não têm nada de proteccionista, querem fazer comércio livre com toda a gente e nas condições que eles conseguirem negociar bilateralmente e sem depender de Bruxelas. Aí não há linhas paralelas, os ingleses, se puderem, fazem acordos de comércio... Se houver Brexit no dia 31 de Outubro, a primeira prioridade deles é fazer acordos de comércio com toda a gente.
Até porque os prejuízos para a economia deles poderiam ser imensos.
Ou a vantagem. O prejuízo ou a vantagem. Eu acho que estas coisas não são lineares. Aquilo que eu acho que é uma pena é que o Reino Unido já tinha o melhor de dois mundos. Estava na Europa para o que era bom e não estava nem no Euro nem em Schengen. Porque é que eles tinham o melhor de dois mundos e quiseram sair é uma coisa que me transcende.
O presidente Trump, isolacionista, proteccionista, numa guerra comercial com a China.
E nativista. São as três palavras que definem Trump. Isolacionista, proteccionista e nativista.
Os americanos perceberam, com muito atraso, duas coisas. A primeira é que o rival do ponto de vista internacional já não era a União Soviética. Eles ainda há dois ou três anos atrás achavam que era a Rússia. E estava a entrar pelos olhos a dentro que quem ameaça a liderança global dos Estados Unidos é a China.
Obama já tinha feito essa teorização. Sob a forma especial de tweets e de outras coisas parecidas, Trump tirou as consequências. Mas atenção, porque a teorização tinha sido feita por Obama. “Vamos para o Pacífico”, lembra-se?
A segunda coisa que os americanos descobriram tardiamente é que a América já não é o que era. A América que continua a ser a sociedade que proporciona mais possibilidades de realizar sonhos pessoais, familiares e profissionais, era um país WASP – White, Anglo-Saxon, Protestant – que aceitava muitas minorias mas que aceitava um pilar dominante. E esse pilar está a deixar de ser dominante. Em 2040 os brancos anglo-saxónicos e protestantes serão apenas a maior das minorias.
É preciso por as coisas em contexto. De repente os Estados Unidos percebem de repente que o seu adversário, em termos globais é a China, e descobrem, dentro de casa, que a sociedade se tornou muito mais diversificada e que já não há um predomínio absoluto dos WASP que fizeram a América.
Mas a eleição de Obama não deveria ter sido um sinal de que algo estava a mudar?
Sim. Mas é impossível pensar que uma sociedade muda com esta velocidade e esta dimensão sem alguns choques e conflitos.
Imagine que, de repente, metade da população de Cabo Verde mudava. No espaço de décadas.
Não podemos esquecer que em relação aos latinos a questão coloca-se na língua, porque a primeira língua deles é obviamente o espanhol, e coloca-se na religião porque são de origem católica enquanto que a cultura dominante dos EUA é protestante.
E depois o mundo depende muito mais do presidente dos EUA do que os americanos. Metade dos americanos não vota! Já nós não conseguimos ter uma conversa entre família, com amigos, com colegas onde não apreça o Presidente Trump ao fim de cinco minutos.
Como metade dos americanos não vota, o que é relevante para 2020 não é saber quem está à frente. É saber qual dos dois partidos consegue mobilizar com mais energia a parte do eleitorado que vota.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 931 de 02 de Outubro de 2019.