Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit : A digitalização já não é uma questão de “se”, é uma questão de “quando”

PorJorge Montezinho,16 fev 2020 8:44

Paddy Cosgrave
Paddy Cosgrave

Diz que não passa de um “vendedor de bilhetes” (“ticket seller”), mas o irlandês Patrick “Paddy” Cosgrave está na lista dos 100 nomes mais influentes no mundo da tecnologia.

Co-fundador da Web Summit, a maior conferência de tecnologia do planeta – a última edição atraiu a Lisboa 70 mil participantes – Paddy veio a Cabo Verde, a convite do governo, participar no CV Next e ver o que o país está a fazer no campo digital.

Nesta conversa com o Expresso das Ilhas, o homem que cresceu numa quinta e que aprendeu a programar aos 12 anos, fala do que viu, da cena tecnológica africana, de inovação, de regulação e das próximas tendências.

O secretário de estado Pedro Lopes tinha referido, antes da sua visita, que queria que o Paddy conhecesse o potencial cru do país, o talento local e a estratégia do governo para o digital. Quais são as suas primeiras impressões?

Penso que é incrivelmente impressionante, e não só as políticas, porque os políticos seniores, que, podemos dizer, são de uma geração diferente muitas vezes longe destas ideias, estão completamente dentro desta estratégia. O entusiasmo não é só do secretário de estado da inovação, é de todos, e podemos ver esse entusiasmo no Primeiro-Ministro, no Presidente da Assembleia Nacional, no Ministro da Cultura, mesmo não sendo a sua área está totalmente empenhado. Penso que isso é o mais importante, se não houver empenho desde baixo até ao cimo é apenas retórica. A segunda coisa é que este centro é incrível [a entrevista decorreu no Data Center, na Achada Grande Frente], não esperava encontrar algo assim, parece quase outro universo, é impressionante. Essas são para mim as coisas mais fantásticas.

Como vê esta ideia de fazer de Cabo Verde uma ilha digital?

Penso que ser digital é necessário, não há como evitar a digitalização, é como voltar 50 anos atrás à Irlanda, quando se questionava se a ilha devia ser toda electrificada ou não, hoje isso já nem se debate, da mesma forma que daqui a 10 anos não haverá debates sobre estas políticas, não é uma questão de “se”, é uma questão de “quando”. E a digitalização não é apenas sobre start-ups, é sobre os jovens, que vimos hoje a prenderem uma língua muito importante, programação. No fundo, é a nova literacia. Do meu ponto de vista, a nova literacia já não é apenas saber ler e escrever, é saber programar. E a digitalização não é apenas start-ups, ou jovens, são também as empresas já estabelecidas, mostrar aos executivos que lideram as grandes empresas que se eles se mantiverem como até aqui, o futuro vai ultrapassá-los, depende deles moverem-se de acordo com os novos tempos. E muitas vezes isso é difícil para estes empresários estabelecidos, porque hoje são bem sucedidos, vivem em belas casas, conduzem grandes carros, os jornais escrevem maravilhas sobre eles, ou seja, onde está o interesse em mudarem? Mas a verdade é que grandes companhias simplesmente desapareceram, como é o caso da Kodak.

Já disse que gostava de ver mais iniciativas em África. sabemos que a cena tecnológica na Europa é relativamente recente, por isso pode servir como um exemplo de que é possível construir uma cena tecnológica num curto espaço de tempo?

Sim. Mas penso que na Europa muitas vezes se pensa que a inovação é uma via de sentido único, do Ocidente para África, mas esse não é o caso. Muita da inovação no Fintech [empresas que redesenham a área de serviços financeiros com processos inteiramente baseados em tecnologia] vem de África, em parte porque África tem uma grande parte da população que não é cliente formal de bancos e quando apareceram os smartphones os empreendedores criaram apps como o mobile banking. Por isso, penso que a inovação tem várias vias, e que não partem só da Europa, ou de África, há também a Ásia. E penso que isso é algo que os europeus, do meu ponto de vista, não percebem ainda.

Recomendaria uma espécie de Web Summit em África para traçar os caminhos futuros?

Sim, porque não? Mas, veja-se no caso de Portugal, o Web Summit são três ou quatro dias, os outros 360 dias do ano são mais importantes. O Web Summit cria um momento no ano em que pessoas de todo o mundo se reúnem num sítio, cria energia, cria contactos, mas o que realmente importa, para mim, não é o que acontece nesses dias, mas o que acontece depois durante o ano. Seria óptimo fazer algo desse género em África, talvez aqui em Cabo Verde, mas, como referi, para mim a questão seria como é que esse evento poderia contribuir para os outros dias do ano.

Há um tempo certo para a inovação?

Bem, o mundo está sempre e esteve sempre a inovar. Todos os países inovam, no que diferem é na velocidade dessa inovação. A um dado momento da nossa história, a Índia e a China foram os países mais inovadores do Planeta, depois mudou para a Europa, depois da Europa para a Costa Oeste dos Estados Unidos e, actualmente, está a mudar novamente para a China e vemos África a crescer. Não podemos esquecer que houve uma altura em que a Europa estava a cair na Idade das Trevas e toda a gente andava a queimar livros e a matarem-se uns aos outros, ao mesmo tempo, no Médio Oriente, criava-se a álgebra e a matemática que ainda hoje utilizamos e se mantinham-se vivos os textos clássicos ou a Astronomia. Portanto, a inovação sempre aconteceu, apenas está a acontecer mais rapidamente em certas partes do mundo, e mesmo isso muda continuamente.

Ou seja, nenhum país pode afirmar que já perdeu o comboio da inovação?

Não. É claro que podemos cair do comboio, mas podemos sempre voltar a entrar. Só que às vezes, voltar a apanhar o comboio requer mais tempo e paciência. Se olharmos para Portugal, por exemplo, penso que as mudanças em apenas um ano foram significativas. Olha, é como aprender a tocar piano, o primeiro ano é incrivelmente doloroso, no segundo ano é mais fácil e aprender a tocar uma nova canção já não leva tanto tempo e depois de alguns anos basta um momento para tocar uma música nova. É o mesmo com a inovação, é preciso tempo para construir as fundações, para investir no capital humano, para desenvolver capacidade inovadora, e isso pode ser muito frustrante e difícil para os políticos, porque muitas vezes só têm 4 ou 5 anos para fazerem grandes mudanças, mas muitas vezes essas mudanças levam décadas.

E há um limite para a inovação?

Não penso que haja um limite, vê o exemplo da Coreia do Sul. Há cinquenta anos era mais pobre do que o Gana, tinha o mesmo PIB per capita que o Sudão. E hoje é um dos países mais ricos do Planeta. Por isso, não podemos chegar ao Sudão e perguntar às pessoas se já perderam a esperança, daqui por cinquenta anos pode ser semelhante à Coreia do Sul, apenas é preciso tempo e as políticas certas.

Podemos dizer que Cabo Verde, actualmente, está ainda numa idade de ingenuidade tecnológica, mas é também uma idade de paixão, e penso que é positivo as pessoas estarem com vontade de fazer coisas. Mas, devia haver também uma forma de preparar as pessoas para os momentos mais frustrantes?

Bem, penso que África tem uma coisa que a Europa, ou o Japão e a China, não têm, que são os jovens. Toda a energia, toda a mudança, todas as disrupções, todas as inovações geralmente vêm dos jovens. Quanto às frustrações… Penso que isso até é uma coisa boa, queremos pessoas infelizes com o estado do mundo, se toda a gente estiver feliz nada muda. Por isso precisamos de pessoas com vontade de mudar, sejam músicos, artistas, empreendedores, cientistas, pessoas que sintam que o mundo não é o correcto.

Fiz-lhe esta pergunta porque o Paddy já referiu que o mais provável para uma start-up é falhar. Depois têm de tentar novamente e falhar melhor. Por isso, além de programação, não devemos ensinar também à próxima geração uma certa forma de falhar de forma elegante? Para que não desistam à primeira?

Sim, isso pode ser um problema. Diferentes culturas lidam com as falhas de maneira diferente. na Suécia, por exemplo, podemos falhar à vontade porque o Estado social é forte e ampara-nos. Por isso, se falharmos e não tivermos uma família rica, não há problema. Na América, hoje e infelizmente, se queremos tentar alguma coisa temos de ter um suporte familiar com dinheiro, porque se falhares estás lixado. Não sei como é em Cabo Verde…

Em Cabo Verde há uma mentalidade parecida com a dos países latinos, onde o falhanço não é bem aceite, onde não se dá grandes espaços para um regresso à ribalta.

Pois, muitas vezes confunde-se o falhanço com a fraude, e quem falha é quase considerado como um trapaceiro, quando são duas coisas muito diferentes, mas esse é o papel dos jornalistas, explicar a diferença (risos). Não cabe aos políticos, nem aos empreendedores, cabe a vocês educar as pessoas, que houve um esforço honesto, que se tentou criar algo, mas que pode ter acontecido na altura errada, ou que o financiamento não aconteceu, ou que um competidor fez um trabalho melhor.

Há uma preocupação muito grande do governo com o ecossistema digital, e o Paddy considera que este ecossistema é fundamental. No fundo, quanto mais vibrante for este ecossistema, mais crescimento e emprego haverá. Portanto, é sempre uma parte-chave de qualquer desenvolvimento digital.

Certo, mas algumas tecnologias criam mais empregos do que outras. Muitas tecnologias não criam muitos empregos. Por exemplo, o Data Center é como o coração do ecossistema, os cabos submarinos são as veias, mas os Data Center empregam pessoas muito bem preparadas e bem pagas, mas não vão proporcionar tantos empregos como outras tecnologias. O que eu quero dizer é que os Data Center são essenciais, mas não criam, necessariamente, muitos empregos. Em Portugal, por exemplo, há Data Center, mas há também manufactura automóvel e são estes que empregam muita gente.

E como mostrou, ao escolher Lisboa, a localização é fundamental para atrair empresas.

Sim, sem dúvida. Acho Lisboa incrível, a Web Summit acontece em Novembro, mas o tempo é ainda bom, o país é fantástico. No caso de Cabo Verde, acho incrível toda esta passagem de cabos submarinos, é uma espécie de encruzilhada entre continentes e hoje o mundo move-se pela informação. Não posso afirmar o que isso pode originar, mas de certeza que vai proporcionar oportunidades, cabe aos decisores políticos descobrir quais são essas oportunidades.

Paddy, tem um dos trabalhos mais interessantes do mundo…

(interrompe) Sou um vendedor de bilhetes (risos)

Vende bilhetes que fazem com que as pessoas se juntem e partilhem ideias, é quase como estar num pub irlandês…

Sim, é como estar num pub irlandês gigante. É claro que é um privilégio, ano após ano, estar com as pessoas que fazem as coisas mais interessantes e muitas vezes encontrá-las antes que o mundo as conheça. Pessoalmente, não me interesso pelas empresas já estabelecidas. Acho incrível que essas pessoas tenham construído empresas que valem triliões, como a Amazon, ou a Google, mas para mim a energia vem das companhias com 2 ou 3 anos e acho que é por isso que as pessoas vêm ao Web Summit, para descobrir o que vem a seguir. É sempre a questão das pessoas certas a conhecerem as pessoas certas. Espero que sim (risos).

Defende que haja mais regulação tecnológica, mas isso não pode coartar a inovação?

Vejo isso como a indústria automóvel. Os carros, como a Internet, foram uma tecnologia fundamental, foram revolucionários, mas também tinham riscos. Quer dizer, os carros matam pessoas. E desde que os carros apareceram as coisas foram mudando, é preciso licença para conduzir, há luzes que regulam o tráfego, polícia de trânsito, mas houve uma altura em que as pessoas se limitavam a ir a uma loja, compravam um carro e faziam o que queriam, conduziam depois de beber, não olhavam para os espelhos, não ligavam as luzes à noite e depois tivemos de descobrir como conviver com os carros da forma certa. As redes sociais são uma coisa boa? Eu acho que redes socias equilibradas são uma coisa boa. Os carros saem das fábricas, hoje, equipados com airbags, cintos de segurança, são feitos testes antes de andarem nas estradas, por isso, penso que se pudermos fazer isso para outras tecnologias, podemos melhorá-las. E lembra-te, as empresas automóveis nunca quiseram estes regulamentos, porque diziam que tornavam a produção mais lenta, aumentava os custos, que lhes dificultava a vida, mas no fim, foi o melhor para todos.

Uma última questão, está sempre atento às novidades, da sua experiência, o que virá a seguir?

A China. Posso estar muito enganado, mas penso que o século XXI vai ser chinês. Espero que seja uma coisa boa, porque acredito que um mundo multipolar é melhor que o mundo unipolar. Hoje a América domina, isso é bom para algumas pessoas, mas é mau para a maioria das pessoas, por isso, um mundo equilibrado, provavelmente, será um mundo melhor.

  Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,16 fev 2020 8:44

Editado porFretson Rocha  em  11 nov 2020 23:21

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