Coronavírus e o impacto na economia : É preciso saber como o Estado vai pagar pelas despesas extraordinárias

PorJorge Montezinho,28 mar 2020 10:23

Nas últimas semanas os economistas estão debruçados sobre as máquinas de calcular para tentarem descobrir o impacto do coronavírus na economia. A verdade é que, até ao momento, não há uma única certeza. Há quem diga que, em comparação, a crise de 2008 vai parecer uma brincadeira, há quem acredite que uma resposta coordenada a nível global poderá amenizar as quebras anunciadas. O que se sabe mesmo é que as instituições internacionais (Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, etc.) estão a projectar uma significativa desaceleração do crescimento mundial, no melhor dos cenários, ou uma recessão global em 2020, em cenários menos optimistas.

Enquanto o mundo olha atarantado para um lado e para o outro, completamente impreparado para a pandemia que o atingiu, a economia global parece a televisão pública dos anos 80, com a emissão interrompida e a ser retomada quando for possível. Mas a economia não é um conceito abstrato, mexe com a vida das pessoas, tem implicações directas no rendimento das famílias, promove ou restringe o consumo e o bem-estar geral, qualquer paragem pode levar ao caos. Antes de serem conhecidas as medidas anunciadas pelo governo, esta terça-feira, o Expresso das Ilhas falou com o antigo governador do Banco de Cabo Verde, Carlos Burgo, sobre as acções a curto prazo que deveriam ser tomadas. “No imediato, as acções prioritárias do Estado e de toda a sociedade devem, naturalmente, procurar por todos os meios impedir ou conter a propagação da infecção pelo covid-19. Ao mesmo tempo, devem ser reforçadas as capacidades sanitárias do país. Todas as instituições e todos os cidadãos devem cooperar na prossecução desses objectivos, cabendo ao Estado disponibilizar os recursos necessários. É o que está sendo feito e espera-se que as medidas adoptadas venham a ter a necessária eficácia”, diz o economista.

Já em relação à economia pura e dura, e sabendo-se que as políticas públicas não evitam o abrandamento da economia, mas podem assegurar que este não seja mais prolongado e profundo que o necessário, as prioridades, aponta Carlos Burgo, devem ir para a “protecção dos trabalhadores que podem perder o emprego e os seus rendimentos. Mas interessa, igualmente, proteger a capacidade produtiva e o stock de capital das empresas para que, uma vez passada a pandemia, possa haver uma rápida retoma da actividade económica e do ritmo de crescimento. Revela-se, neste contexto extraordinário, com toda a evidência, o papel do Estado enquanto segurador de última instância da economia e dos seus agentes. E é fundamental para o bem-estar da comunidade e para o nosso futuro que o Estado assuma esse papel com eficácia e eficiência, através de medidas bem desenhadas e com a necessária amplitude, orientadas para a protecção dos trabalhadores e a manutenção da capacidade produtiva”.

Ainda na semana passada, Christine Lagarde, Presidente do Banco Central Europeu, escrevia que estamos a assistir a um choque económico extremo, que exige uma resposta ambiciosa, coordenada e urgente em termos de políticas em todas as frentes, a fim de apoiar as pessoas e as empresas em risco.

Contrariamente a 2008-2009, o choque actual é universal: afecta todos os países e segmentos da sociedade. “Todos temos de reduzir as nossas actividades quotidianas e, por conseguinte, a despesa, enquanto estiverem em vigor as medidas de confinamento. Essencialmente, durante um período temporário, uma grande parte da economia está a sofrer uma interrupção”, acrescentava a responsável do BCE.

Cabe à política monetária desempenhar um papel vital. A política monetária tem de preservar a liquidez no sector financeiro e assegurar condições de financiamento favoráveis para todos os sectores da economia. Tal aplica-se do mesmo modo aos particulares, às famílias, às empresas, às instituições de crédito e aos governos.

“O nosso sector financeiro é constituído fundamentalmente pelos bancos e é sobejamente sabido que a liquidez dos bancos, financiados fundamentalmente por depósitos, depende essencialmente da confiança na sua solidez”, explica Carlos Burgo. “Por conseguinte, em situação de crise, importa sobremaneira garantir que se mantenha a confiança na solidez do sector bancário. No nosso caso, isso é particularmente importante, considerando o elevado peso dos depósitos dos emigrantes que, embora sejam em moeda nacional, são de agentes que via de regra e de facto são não residentes”.

“Acresce que, estando a paridade da moeda nacional fixada em relação ao Euro e num contexto da sua crescente convertibilidade, não há muita autonomia no que tange à política monetária, isto é, na gestão do balanço do banco central que não pode expandir o seu balanço pela via da aquisição de ativos em moeda nacional, sob pena de comprometer a credibilidade do regime cambial. Dito isto e estando a base monetária (a moeda do banco central) coberta pelas reservas externas do país, há margem para o banco central garantir a liquidez das instituições bancárias libertando, se necessário, reservas obrigatórias constituídas pelos bancos no banco central. Ademais, o banco central pode baixar a taxa de referência, sinalizando um afrouxamento das condições monetárias. Essa taxa situa-se actualmente em 1.5%, mas na realidade é ineficaz visto que o sistema se caracteriza por um significativo excesso de liquidez. Estas medidas podem ser complementadas a nível prudencial pela acomodação de eventuais soluções (moratória de juros, carência de capital ou mesmo a suspensão integral do pagamento) que venham a ser adoptadas pelos bancos para a protecção de clientes – particulares e empresas – que, por causa da crise, venham a ter dificuldades no pagamento do serviço da dívida. Nesta situação extraordinária, todas as instituições devem contribuir para a protecção da comunidade e, certamente, os bancos procurarão atender às dificuldades dos seus clientes e contribuir para a manutenção da capacidade produtiva do país através de soluções inovadoras”, refere o antigo governador do BCV.

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Carlos Burgo é um defensor, desde há já bastante tempo, que a resolução do problema de financiamento de projectos e iniciativas empresariais passa, particularmente em Cabo Verde, pela assunção de risco pelo Estado, designadamente através de mecanismos de partilha de risco. “O actual governo assumiu esse propósito através do desenvolvimento do chamado ecosistema de financiamento. O momento actual deve servir para todos os envolvidos fazerem uma avaliação da situação com vista à adaptação das soluções aos actuais constrangimentos (redução de receitas e problemas de tesouraria, ajustamento dos planos de negócio) e adoptarem medidas com vista à aceleração da implementação das medidas necessárias nesse domínio”.

A actual situação cria pressões agudas ao nível dos custos financeiros das empresas e dos trabalhadores, ameaçando a sobrevivência das empresas e dos postos de trabalho. Compete às políticas públicas proporcionar-lhes apoio, mas numa economia frágil como a cabo-verdiana, essa tarefa fica mais difícil. E numa altura que se pede a coordenação e a cooperação global, o governo devia ser desobrigado, pelos parceiros, das metas fiscais, desde que esses recursos sejam usados no combate à pandemia? Ou ser desobrigado, pura e simplesmente, sem condições pré-estabelecidas? “A real limitação na actuação Estado não são eventuais condições impostas pelos parceiros, designadamente, o Fundo Monetário Internacional, mas os recursos disponíveis”, diz Carlos Burgo. “Creio que não haverá objecção dos parceiros a que Cabo Verde adopte as medidas necessárias para reforçar as estruturas sanitárias, proteger os trabalhadores, em particular os mais vulneráveis, bem como para manter a capacidade produtiva da sua economia. Antes pelo contrário, as instituições financeiras internacionais assim como os demais parceiros de desenvolvimento estão encorajando as autoridades que assim façam. Mas uma coisa é certa, temos de fazer as contas e saber como o Estado vai pagar pelas despesas extraordinárias. Justifica-se que recursos futuros sejam usados na solução dos problemas do presente, através do endividamento do Estado e eventual alívio ou renúncia da cobrança de contribuições devidas à Previdência Social. Mas temos de ter em conta que esses recursos já não estarão disponíveis no futuro e que temos de fazer as necessárias reformas a nível das despesas e do financiamento do Estado bem como da Previdência Social. E, à luz da nova realidade, devemos reavaliar as políticas que vêm sendo seguidas, nomeadamente a nível das Finanças Públicas. Os recursos provenientes da buoyancy na cobrança das receitas numa conjuntura favorável nos últimos anos foram usados em grande parte para aumentar os salários da função pública, em particular dos mais elevados. Foram negligenciados os investimentos e mesmo outras despesas correntes necessárias à eficiência na prestação dos serviços públicos, incluindo a saúde. E isso aconteceu ao mesmo tempo que as populações rurais sofriam (ainda sofrem) as maiores privações em consequência de anos sucessivos de seca. Naturalmente, estes recursos não estão agora disponíveis para fazer face a esta crise extraordinária. Tivesse já sido feita a reforma da previdência social para reduzir a parafiscalidade, como de resto consta do Programa do Governo, o impacto da crise e os custos de algumas eventuais medidas de protecção dos trabalhadores seriam agora bem menores”.

Crucial, dizem todos os analistas é que os governos não deixem empresas em insolvência, falirem e demitirem trabalhadores. No fundo, defendem que o Estado deve ir até onde for possível para proteger os trabalhadores e contribuir para a manutenção da capacidade produtiva e do stock de capital. Desde logo, deferindo ou mesmo renunciando ao pagamento de impostos e contribuições à previdência social e no âmbito do chamado ecossistema de financiamento deve promover o financiamento de empresas, assumindo riscos, como acabaram por mostrar as medidas anunciadas.

“É importante, todavia, que os incentivos sejam bem desenhados e que se traduzam, de facto, na protecção dos trabalhadores e na manutenção da capacidade produtiva. Comportamentos oportunistas por parte de empresas e empresários devem ser combatidos. Estes devem prescindir da remuneração do capital no actual contexto e assumir compromissos perante o Estado, particularmente no que respeita à manutenção dos postos de trabalho, o pagamento das remunerações devidas aos trabalhadores e à limitação na remuneração dos gestores” sublinha o antigo governador do Banco Central.

“Igualmente importante é que os incentivos do Estado não sejam desviados para o financiamento de empresas e projectos ineficientes ou inviáveis. Aqui, o risco é particularmente elevado no sector empresarial do Estado. A presente crise não deve servir de pretexto para o financiamento de empresas públicas ou participadas pelo Estado que sejam inviáveis e/ou de risco incomportável para o Estado. Ocorre-me o caso da operação de transportes aéreos internacionais cujas dificuldades, como é visível a olho nu, não se devem à atual crise. Trata-se de um projecto com objectivos louváveis mas cuja viabilidade é questionável e cujo risco pode não se justificar que seja assumido pelo Estado. Havendo oportunidade de negócio, o parceiro estratégico deveria entrar com capital e expor-se ao risco, o que, pelas informações vindas a pública, não parece ser o caso”, refere Carlos Burgo.

Outra certeza que os analistas têm é que a crise económica vai afectar o PIB, o emprego e o consumo das famílias, mas o choque vai atingir as famílias de forma desigual. Em Cabo Verde, por exemplo, ainda não se sabe como vai ser garantido o rendimento das pessoas que trabalham na informalidade. “Numa economia dual, com elevado peso da informalidade, como a cabo-verdiana, os custos dos choques e crises, são suportados desproporcionalmente pelos trabalhadores do sector informal, que têm vínculos laborais mais precários, vivem de trabalhos ocasionais ou se ocupam no comércio informal. E não se pode ignorar que as mulheres que fazem o comércio informal comummente são chefes de família que têm a seu cargo filhos menores. As restrições adoptadas para evitar a propagação da pandemia penalizam desmedidamente as pessoas que vivem da rua e na rua. Infelizmente, a informalidade, que é incentivada, sobretudo, pela fiscalidade, pela parafiscalidade e pelas dificuldades burocráticas, e condiciona fortemente o acesso ao crédito, impossibilita a utilização desses canais para a protecção das pessoas. Contudo, as privações dessas camadas da população podem ser grandemente mitigadas, facilitando o seu acesso a serviços de saúde e de educação, que embora não proporcionem rendimento, têm impacto determinante no seu nível de bem-estar. As crianças das famílias mais vulneráveis podem ser protegidas através da acção social escolar e os mais idosos, deficientes ou incapazes através dos esquemas de protecção social de base não contributiva. As privações por que irão passar os mais vulneráveis da nossa sociedade em consequência da crise interpelam-nos a fazer o melhor uso dos recursos adicionais que serão destinados a combater os efeitos da crise, a aumentar a eficácia e eficiência das despesas públicas, a promover um emprego mais justo dos recursos públicos e, a prazo, a construir uma economia moderna e uma sociedade mais equitativa” conclui Carlos Burgo. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 25 de Março de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,28 mar 2020 10:23

Editado porJorge Montezinho  em  31 dez 2020 23:20

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