Cabo Verde precisa de 163 milhões de dólares por ano para a transformação estrutural

PorJorge Montezinho,4 ago 2024 9:11

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Energia, transportes, educação e transformação digital, pesquisa e conhecimento, estas são as áreas onde terão de haver mudanças no país, até 2030, como mostra o último Outlook do Banco Africano de Desenvolvimento. Isto significa investir 7,3% do PIB todos os anos. Não é impossível, mas estes recursos não estão disponíveis.

Se há uma palavra que simboliza a economia cabo-verdiana é ‘resiliência’, mas, como mostra o relatório publicado esta terça pelo BAD – “Perspectivas Económicas Africanas para 2024 - Impulsionar a Transformação de África: A Reforma da Arquitectura Financeira Global” – o crescimento do PIB de Cabo Verde continua instável por causa da dependência das actividades turísticas intensivas e da vulnerabilidade aos choques relacionados com o clima.

O continente e mundo continuam a enfrentar múltiplas crises: inflação, abrandamento do crescimento económico, agravamento das condições financeiras mundiais, escassez de recursos concessionais, efeitos crescentes das alterações climáticas, conflitos e tudo isto ameaça a recuperação e trava a evolução socio-económica.

“São necessárias reformas transformadoras para aumentar e, se possível, duplicar o potencial de crescimento”, disse o Ministro das Finanças, no webinar que antecedeu a apresentação do documento. “É importante acelerar a transformação económica de Cabo Verde, o que exige políticas arrojadas e metas ambiciosas. Exige coragem política para tomar as decisões certas”, sublinhou Olavo Correia.

Cabo Verde no Outlook 2024

Pela terceira vez, saiu o relatório do país, onde é enfatizado que as reformas políticas para racionalizar os atrasos na cobrança do IVA e a utilização da faturação eletrónica aumentaram as receitas fiscais de 18,1% do PIB em 2022 para 18,9% em 2023, e o défice orçamental diminuiu de 4, 6% do PIB para 4,4%.

O défice da balança corrente deteriorou-se, de 5,8% do PIB em 2022 para 6,1% em 2023, impelido pelas elevadas faturas de importação e pela redução das exportações. As reservas internacionais aumentaram de 626 milhões de euros em 2022 para 728 milhões de euros em 2023 (cerca de 6,7 meses de cobertura de importações), estimuladas pelo desembolso de 21,2 milhões de dólares ao abrigo do Mecanismo de Crédito Alargado do Fundo Monetário Internacional. O risco da dívida externa é moderado e o seu rácio dívida pública/PIB diminuiu de 127,1% em 2022 para 119,9% em 2023 devido ao maior crescimento nominal do PIB e ao desempenho fiscal.

Ainda segundo o relatório, o sector financeiro parece sólido, com um rácio de adequação de capital de 21,4%, muito acima do requisito regulamentar mínimo de 12%. Os empréstimos em incumprimento aumentaram de 7,8% em 2022 para 8,7% em Junho de 2023, após o fim das moratórias de crédito relacionadas com a Covid-19.

E embora Cabo Verde tenha um bom desempenho nos indicadores sociais, a pobreza e o desemprego continuam a ser desafios. A pobreza aumentou de 26% em 2019 para 31,1% em 2022, agravada pela Covid-19. O desemprego era de 14,5%.

Perspectivas e riscos

O crescimento económico está previsto em 5,2% em 2024 e 5,4% em 2025, impulsionado pela agricultura, energia, economia digital e consumo privado. Mas, esta perspectiva baseia-se num ambiente global estável e num turismo vibrante.

Prevê-se que o défice orçamental diminua para 3,0% do PIB em 2024 e 2,1% em 2025, devido a medidas de consolidação orçamental, ao aumento das receitas fiscais e à privatização de empresas públicas. Prevê-se também que o défice da balança corrente diminua para 5,2% do PIB em 2024 e 4,4% em 2025, suportado pelas receitas e remessas do turismo.

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Os riscos para as perspetivas de crescimento incluem um abrandamento económico na Europa, perturbações nas cadeias de abastecimento de petróleo, progressos limitados na reforma das empresas públicas e impactos das alterações climáticas. As acções para reduzir os riscos fiscais das empresas estatais e colmatar as lacunas infraestruturais são consideradas “fundamentais” para o crescimento sustentável.

O Outlook constata que a transformação estrutural da economia de Cabo Verde tem sido lenta nas últimas duas décadas, com uma diversificação económica limitada. A participação da agricultura no PIB desceu de 9,7% em 2000 para 7,8% em 2021, enquanto aumentaram para a indústria (19,7% para 21,8%) e para os serviços (57% para 65%). A proporção de emprego diminuiu na agricultura de baixa produtividade (23% para 10,6%), sendo o excesso de mão-de-obra absorvido pela indústria de alta produtividade (20,5% para 21,8%) e pelos sectores dos serviços (55,9% para 67,6%) entre 2000 e 2021. Diz o BAD que investimentos em competências, na inovação tecnológica e na modernização dos portos e aeroportos “são vitais” para expandir a economia e tirar partido da Zona de Comércio Livre Continental de África.

O relatório recomenda que Cabo Verde poderia aprender com as experiências das Seychelles, no aproveitamento da economia azul através de obrigações azuis e trocas de dívida, e das Maldivas, na diversificação da economia para além do turismo, através da modernização das cadeias de valor da pesca. A reforma da arquitectura financeira mundial poderá mobilizar fundos adicionais em condições mais vantajosas. Para garantir o acesso e a utilização óptima do financiamento para o desenvolvimento, as reformas cruciais a curto prazo incluem a criação de um fundo azul de subvenções e de um fundo azul de investimento, o aprofundamento dos mercados de capitais e o reforço da estabilidade macroeconómica. “A médio e longo prazo, o reforço do financiamento das infra-estruturas, nomeadamente no transporte inter-ilhas, é imperativo para a viabilidade comercial e competitividade”, conclui-se no documento.

A perspectiva do governo

As análises macroeconómicas objectivas do Outlook do BAD servem para que os países percebam os desafios e corrijam as políticas públicas, quando necessárias, para transformar estruturalmente os países e o continente. O relatório, no fundo, fornece aos decisores políticos, aos investigadores e aos investidores uma informação actualizada, baseada em dados concretos, mas também as perspectivas de curto e médio prazo.

Como explicou o Ministro das Finanças, para as reformas estruturais em Cabo Verde, há cinco áreas cruciais: – conectividades e mobilidades; “para duplicarmos o potencial de crescimento de Cabo Verde temos de melhorar de forma substancial o nível dos serviços em relação à conectividade, terrestre, aérea, marítima, digital e humana. Temos de dar um salto para atingir a excelência”, disse Olavo Correia – acção climática; “para que possamos ter mais energias renováveis, energia mais barata para produzirmos água para agricultura mais barata” – transição digital; “pôr a economia digital como um acelerador dos vários sectores da economia nacional, turismo, economia azul, indústria, agricultura, finanças, conhecimento, saúde” – sector privado mais forte, mais competitivo, com mais acesso ao financiamento – e o capital humano; “temos de investir para ter recursos humanos altamente qualificados, promover a excelência ao nível do ensino e da formação profissional, instituições fortes e competentes”.

Como concluiu o governante, “não precisamos de estar sempre a reinventar a visão e a estratégia, precisamos de boa governança, de instituições e de financiamento”.

Fechar a brecha estrutural

Se é verdade que o crescimento económico de Cabo Verde em 2022 e 2023 foi acima da média continental – e as razões deste crescimento são várias, desde a gestão macro que se evidencia pelos baixos níveis de inflação, a mobilização de recursos e o nível de reservas obrigatórias que tem conseguido manter – também é verdade que estes resultados não significam que a missão está cumprida.

Apesar de Cabo Verde mostrar indicadores de desenvolvimento social positivos – 4º melhor país africano no desempenho dos ODS – ainda há algumas bolsas de pobreza extrema que afectam a economia, ainda existe insegurança alimentar e à questão do desemprego jovem, tudo áreas que, diz o BAD, precisam de ser abordados.

“Olhando para o futuro”, afirmou o economista principal do BAD para Cabo Verde e a Gâmbia, Joel Muzima, “esperamos que a economia de Cabo Verde cresça a uma média de 5%, mas é preciso ressalvar que a vulnerabilidade aos choques externos decorre da dependência do turismo e a localização geográfica que torna o país vulnerável às alterações climáticas. Este não é um destino por si, pode ser revertido. Apesar dos riscos, é possível ter medidas de mitigação para acelerar a transformação estrutural”.

Há transformação estrutural quando há três factores: uma mudança gradual da mão-de-obra da agricultura para a indústria e os serviços, ao mesmo tempo uma transição da contribuição do PIB da agricultura para a indústria e os serviços e, em terceiro, um aumento da produtividade na agricultura. De acordo com os dados do BAD, estes requisitos ainda não se cumpriram em Cabo Verde. Porquê? Porque a transição está a ser muito lenta, porque a produtividade, mesmo em sectores não agrícolas, tem estado a decair, e recentemente esta produtividade já está a ser negativa. Se algo não for feito para alterar este cenário, corre-se o risco de ver o potencial de crescimento estagnar. Além disso, mostram os números, a dependência histórica pelo sector do turismo parece estar a mostrar sinais de fadiga.

Além disto, na génese desta não transformação está, principalmente, uma razão: a produtividade dos factores, principalmente o factor trabalho, é extremamente baixa. Por exemplo, tanto a agricultura como a indústria, potenciais motores do desenvolvimento, têm uma produtividade abaixo da média da economia do país.

“É preciso investir mais na transformação agrícola e no agro-negócio”, sublinha Muzima. “E aqui o foco não pode continuar a ser a agricultura tradicional, deve ser numa agricultura mais inteligente, resiliente às alterações climáticas, inovadora, que empregue tecnologias digitais. Investir nos jovens em Cabo Verde não é um favor, não é uma opção, é um imperativo para o futuro de Cabo Verde e de África. Ao investir nestes jovens garantimos a auto-suficiência das ilhas”.

O preço para resolver as lacunas

Para realizar esta transformação estrutural é preciso recursos e Cabo Verde ainda não os tem em níveis suficientes. As estimativas do BAD mostram que seria necessário, em média, cerca de 163 milhões de dólares por ano, até 2030, para se alcançar os ODS em quatro áreas fundamentais: energia, transportes, educação e transformação digital, pesquisa e conhecimento. Significa investir uma média de 7,3% do PIB. “É impossível? Não. Temos recursos disponíveis? Não”, explica Joel Muzima.

“Qual é então a fórmula para a transformação estrutural?”, questiona o economista principal do BAD, “não existe uma fórmula mágica, mas é preciso que haja acção e é melhor agir a partir de agora do que continuar a atrasar o processo. E isso significa o quê? Caminhar neste rumo em que estamos a fazer as reformas de boa governação, reestruturar as despesas ineficientes, garantir uma estabilidade cambial, realocar os recursos de áreas como o comércio, e temos a questão da urbanização e a da melhoria das infra-estruturas, principalmente o transporte inter-ilhas”.

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“Urge tomar medidas”, enumera Muzima, “1) resolver a questão da pressão demográfica – temos uma nação jovem, 65% de jovens com menos de 25 anos, se não encontramos oportunidades para eles em termos de emprego podem tornar-se num risco para a estabilidade social; 2) temos de resolver a questão das alterações climáticas, para voltar a revitalizar a produção agrícola; 3) temos de olhar para o sector informal, não basta apenas querer tributar, não é esta a solução. A solução passa por providenciar incentivos para transitar do informal para o formal, o informal tem de ver benefícios para passar a operar na formalidade ou mantém-se na informalidade”.

Como refere o Outlook, apesar do “forte desempenho económico” e da “notável resiliência”, a transformação estrutural em África tem sido lenta e desigual, e para resolver esta questão será necessário convocar reformas ousadas da arquitectura financeira global para satisfazer as necessidades de financiamento do desenvolvimento do continente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1183 de 31 de Julho de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,4 ago 2024 9:11

Editado porJorge Montezinho  em  20 nov 2024 23:25

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