Duas décadas de escrita ficcional

PorManuel Brito Semedo,25 fev 2020 8:10

Lançado o mais recente romance de Germano de Almeida, O Último Mugido, título que dá continuidade a O Fiel Defunto (2018). Pretexto para um breve balanço sobre a escrita ficcional cabo-verdiana deste Séc. XXI.

“Importa-me que Cabo Verde tenha uma alma, sim, e que nela caibam o som vigoroso e louco do vento no deserto ou o livre e mágico sopro da brisa batendo no coração do mar ou ainda a alegria sincopada de olhares se conhecendo.

Apraz-me que nessa alma caibam o choro, a compaixão, o prazer, a justiça. Que nela caibam todas as gentes, todas as cores, todos os sons livres, as nossas falas em risos, danças ou dores, e as falas do mundo e os seus silêncios. E o sopro da chuva.

Mas sabe, na verdade o que me interessa mesmo é que Cabo Verde seja a nossa alma”.

Dina Salústio, Filhos de Deus, 2018

Depois de, nos finais da década de quarenta e cinquenta, até inícios de sessenta, do século passado, os claridosos terem publicado alguns romances e novelas, hoje clássicos da literatura cabo-verdiana, foram editados nos anos setenta Distância (1973), de Teobaldo Virgínio, Cais de Sodré té Salamansa (1974), de Orlanda Amarílis, e Ilhéu de Contenda (1978), de Henrique Teixeira de Sousa, que viria a afirmar-se nas décadas seguintes como o escritor com mais romances publicados, sendo o último, Oh Mar das Túrbidas Vagas, em 2005.

Nos finais dos anos oitenta viriam a surgir novos autores e novas obras, Cais de Pedra (1989), de Nuno de Miranda, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989), de Germano Almeida, e Odju d’Agu (1986), de Manuel Veiga.

Nos anos noventa, Germano Almeida a afirma-se como escritor e surgem novas revelações, sobretudo no género do conto, com destaque para quatro mulheres, Ivone Ramos, com Vidas Vividas (1990), Leopoldina Barreto, com Monte Gordo (1994), Fátima Bettencourt, com Semear em Pó (1994) e Dina Salústio, com Mornas eram as Noites (1994), Carlos Araújo, com Percurso Vulgar (1990), Fernando Monteiro, com Desassossego (1994) e Vasco Martins, com Tempos da Moral Moral (1993).

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Nos últimos vinte anos, no séc. XXI, confirmaram-se como romancistas Germano Almeida, Prémio Camões 2018, e Dina Salústio, os poetas Arménio Vieira, Prémio Camões 2009, Oswaldo Osório, Carlota de Barros, Vera Duarte e Danny Spínola, a artista plástico Leopoldina Barreto, Samuel Gonçalves, Carlos Araújo, Gualberto do Rosário, Eugénio Inocêncio (Dududa), Eutrópio Lima da Cruz, José Maria Ramos, António Ludgero Correia, Onestaldo Gonçalves, o músico Mário Lúcio Sousa, Joaquim Arena e Evel Rocha. Consolidaram-se como contistas Ivone Ramos, G. T. Didial, Fátima Bettencourt, Ondina Ferreira, Kaká Barboza, Fernando Monteiro, o artista plástico Tchalê Figueira, José Vicente Lopes e Eileen Barbosa, uma revelação.

Um quadro síntese dá conta da dinâmica das publicações nessas duas últimas décadas, num total de cerca de quarenta autores e perto de cem títulos publicados, entre romances e livros de contos.

Em 2011 o Estado deixou de lado a sua política do livro e da leitura, causando uma queda nas publicações, de que a Biblioteca Nacional (Praia) era a principal impulsionadora.

Ressalvo que até essa data, o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro tinha sido a principal editora do país e seu Presidente, Dr. Joaquim Morais, um activo promotor do livro e da leitura. De se assinalar o papel desempenhado pelas editoras privadas – Ilhéu Editora (São Vicente), Edições Calabedotche (São Vicente), Spleen Edições (Praia), AEC Editora (Praia), Edições Artiletra (Praia), Soca Edições (Praia) e Dada Editora (Praia) – algumas delas, entretanto, desaparecidas ou a publicar muito sazonalmente.

A partir do ano de 2015 houve um aumento do número de edições, passando de uma média de seis livros de ficção por ano (antes dificilmente chegava a cinco) para oito, em 2018, e treze, em 2019. Isso, devido, sobretudo, ao surgimento da Rosa de Porcelana Editora (Lisboa), em 2013; DSPROMOARTE (Praia), em 2014; da Livraria Pedro Cardoso (Praia), em 2015; e da Acácia Edições (Praia), em 2016, pela sua dinâmica ao entrar no mercado editorial, com reedições e novas edições.

É durante esse período que se dá um incremento da publicação de ensaios, particularmente de dissertações e teses académicas, e de memórias, para além da poesia.

De referir o importante papel das Editoras Académicas da Universidade de Cabo Verde, da Universidade Jean Piaget e do Instituto Superior das Ciências Jurídicas e Sociais, sediadas na Praia, com publicações académicas, ainda que não muitas e de forma pouco continuada.

A produção ficcional cabo-verdiana dos últimos vinte anos é um retrato da alma de Cabo Verde estando nele as suas gentes, “todas as cores, todos os sons livres, as […] falas em risos, danças ou dores, e as falas do mundo e os seus silêncios. E o sopro da chuva”.

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“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos

A memória bravia lança o leme: 

Recordar é preciso. 

O movimento vaivém nas águas-lembranças

dos meus marejados olhos transborda-me a vida, 

salgando-me o rosto e o gosto”

– Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira,

in Cadernos Negros, vol. 15

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020. 

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Autoria:Manuel Brito Semedo,25 fev 2020 8:10

Editado porSara Almeida  em  20 nov 2020 23:21

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