De acordo com o governo, na nota que acompanha a publicação em BO, a lista é publicada “após um trabalho minucioso de levantamento, recolha e filtragem de dados e documentações”, relacionadas com o processo. “Conseguiu-se apurar quase que por completo o valor da pensão financeira mensal que cabe a cada uma das vítimas”, acrescenta. Nem todos os dossiers estão fechados, ficando de fora, por enquanto, eventuais beneficiários cujos processos não estão concluídos.
Há 42 anos, a 4 de Junho de 1977, foi detido, em São Vicente, um grupo de conhecidos mindelenses, acusados de serem contra-revolucionários e de estarem a preparar ataques terroristas, mas que entretanto se tinham limitado a distribuir panfletos. O regime de partido único reagiu com violência, torturando os presos. As averiguações são feitas com recurso a sevícias, que incluíram espancamentos, coacção psicológica, ameaças e choques eléctricos, e muitos dos presos ficam encarcerados por meses sem qualquer culpa formada.
A segunda data que o Barlavento não esquece é a do dia 31 de Agosto de 1981, o culminar do anteprojecto da reforma agrária. A implementação da reforma agrária foi entendida como essencial para a emergência da justiça social nos campos do Sahel insular e para a superação definitiva dos entraves socioeconómicos ao desenvolvimento agrário de Cabo Verde bem como ao florescimento de uma democracia social e económica. O certo é que a reforma agrária não foi bem recebida em Santo Antão. Fosse por desconhecimento dos laços estreitos que uniam proprietários e agricultores, fosse pelo objectivo político, tentou impor-se uma ideia que não se coadunava com aquilo que os santantonenses tinham em comum: as relações com a terra.
Muitos trabalhadores rurais entregam as terras aos donos, dizendo que não queriam saber da história da reforma agrária. Sentiam que iam ser prejudicados e que podiam perder um compadre e um amigo. Estes sentimentos começaram a fervilhar e acabaram por desembocar no 31 de Agosto. No dia anterior, 30, houve uma reunião do PAICV em Figueiral onde surge uma manifestação que gritava contra o partido. Essas pessoas foram presas. O dia 31 começa bem cedo, com uma mobilização popular para fazer outra manifestação com a intenção de pedir a libertação desses homens. Os militares esperam-nos em Boca de Figueiral. O povo não arredou o pé. Ficaram lá a gritar: “não à reforma agrária”, “libertação dos presos”. Os militares disparam, matam Adriano Santos e ferem outros.
Nessa mesma noite, começam as prisões, acompanhadas de espancamentos, coronhadas, pontapés, murros. Agressões praticadas sem uma única palavra. Sem uma única explicação. Quem não foi preso – na manifestação de Boca de Figueiral estariam entre três mil a cinco mil pessoas, dependendo das fontes – vivia sob o espectro de um dia ter os verdugos a arrombarem-lhe a porta.
Os prisioneiros são todos levados para o Externato de Ribeira Grande onde continuam a ser espancados. Eram na altura 21 presos, muitos não tinham estado na manifestação, como Osvaldo Rocha [que acabou por morrer devido às agressões]. Se caiam no chão, devido às agressões, eram pisados pelos militares. Nessa noite sofrem maus tratos durante duas horas: murros na cara, na boca, na cabeça, pontapés, coronhadas. Depois trouxeram camiões e os militares fizeram duas filas, os prisioneiros passavam no meio e continuaram a ser castigados com pontapés e coronhadas.
Mais tarde são transportados para São Vicente, onde as agressões continuam. Seguiram-se os interrogatórios. Diários. Passavam mais de doze horas de pé, num calor insuportável e isso quando tinham sorte. Quando eram postos de joelhos dois militares batiam nas solas dos pés. Por horas e horas e horas. Foi um mês de interrogatórios seguidos, de dia e de noite, sem hora marcada.
Os interrogadores, cansados, eram substituídos. Um dia começam os choques eléctricos, o flagelo durava horas, dependendo do interrogador. Se tivessem pressa era durante uma hora a duas horas. Os outros levavam mais tempo. Faziam perguntas, se não tinham a resposta davam um choque. Sentavam os prisioneiros encostados à parede, assim que punham a máquina a funcionar a cabeça e o corpo batiam no betão. O julgamento acontece três meses depois das prisões, em tribunal militar. As penas variaram entre 9 anos e 2 anos de prisão.
Nesta primeira fase, a pensão é atribuída a 47 pessoas – 22 em São Vicente, 25 em Santo Antão – nalguns casos a título póstumo, beneficiando, nesses casos, os herdeiros da vítima.
O montante do complemento é igual à diferença entre a pensão de reforma recebida pelo beneficiário e a pensão que resultaria da aplicação da lei aprovada em 2019. Assim, os valores a serem pagos variam entre os 16.977$00 e os 75.000$00 (pensão completa).
A Lei nº 67/IX/2019 foi aprovada em Julho, no Parlamento, em votação final global. O diploma, recebeu, na altura, 40 votos a favor do MpD e três da UCID. O PAICV votou contra (22 votos), alegando tratar-se de uma “armadilhada, enganadora e demagógica”.
A promulgação, pelo Presidente da República, aconteceu em Setembro. Na altura, Jorge Carlos Fonseca defendeu o alargamento do direito à pensão a todo o país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.